Nasceu na Corunha, foi adotada por outra família numa história que só mais tarde viria a conhecer de forma mais detalhada, rapidamente despertou o foco das principais instâncias do atletismo espanhol, deixou o primeiro cartão de visita quando se sagrou campeã mundial de juniores em Barcelona com 14,17. Quase de forma natural, Ana Peleteiro transformou-se na grande coqueluche do triplo salto feminino do país com um conjunto de pódios em grandes provas, de Mundiais a Europeus absolutos ao Ar Livre e em Pista Coberta. Em Tóquio-2020, na primeira participação olímpica, entrou numa das finais mais disputadas dos Jogos que foram adiados para 2021 devido à pandemia e concretizou mesmo o sonho de medalha, acabando de bronze com recorde nacional a 14,87 atrás da recordista mundial Yulimar Rojas e de Patrícia Mamona.
Parecia ser o ponto intermédio de uma carreira em ascensão que ambicionava mais do que uma vitória nos Europeus em Pista Coberta de 2019 mas a “ressaca” dos Jogos fez-se sentir, não indo além de um sexto lugar nos Mundiais ao Ar Livre de Eugene, em 2022. Até este ano, essa foi a última grande competição onde esteve numa carreira onde parou para concretizar o outro sonho de ser mãe, fruto da relação com o também atleta francês Benjamin Compaoré. Durante essa ausência das pistas devido à maternidade, Ana Peleteiro, antiga namorada de Nelson Évora numa fase em que o português estava também no grupo de trabalho de Iván Pedroso em Espanha, falou pela primeira vez sobre o companheiro gaulês que também já foi campeão europeu e sobre um relacionamento tóxico que mantivera no passado sem nunca falar em nomes.
“Estava a treinar em Portugal e quando vi a entrevista comecei a chorar porque passei pelo que esta rapariga estava a contar sem saber que era abuso sexual. Estive numa relação de manipulação, tóxica, mas perceber que a pessoa com quem estiveste fez isto é pesado. Foi algo que me afetou bastante, foi o choque com a realidade”, tinha referido numa entrevista ainda em 2022 a Sindy Takanashi, “influencer espanhola que se tornou um ícone da luta pela igualdade”, como descreveu o El Mundo, entre revelações sobre a sua família.
“Os meus pais adotaram-me com dois dias de vida, a minha história é pesada. Pensei que a minha mãe tinha morrido no parto e que por isso eu tinha sido adotada. Em 2016 disse à minha mãe adotiva: ‘De que terá morrido a minha mãe? No parto?’ Ao que ela respondeu: ‘A tua mãe não está morta, ela abandonou-te. Deu à luz em casa sozinha e deu-te para a adoção. A única coisa que pediu foi que não fosses adotada por ninguém da sua família e disse que tinhas uma irmã’”, contou na entrevista ao podcast.
Mais tarde, já depois de ter sido mãe, Peleteiro voltou a abordar o tema à Yo Dona – e, mais uma vez, sem abordar o nome de Nelson Évora. “Eu e o Benjamin vínhamos de relações supertóxicas, de onde saímos muito queimados. Sem saber como, segui-o no Instagram, sem nenhuma intenção e vi que ele fez o mesmo. Antes seguia-o mas o meu ex obrigou-me a deixar de seguir todos os homens do atletismo”, contou antes de revelar um episódio em Tóquio, quando já tinha terminado a relação com o campeão olímpico português (que até originou um “caso” na comitiva nacional, pela forma como se ia expressando nas bancadas durante a final do triplo salto masculino em que não participou ao contrário de Pedro Pichardo).
“O Benjamin viu-me nos Jogos Olímpicos, cinco anos depois do nosso primeiro encontro, e percebeu que eu agora já era uma mulher. Vi-o na pista mas foi super incómodo porque estava a fazer-lhe olhinhos à frente do meu ex [Nelson Évora]. Horrível! Não falámos. Só trocámos olhares. Eu estava intoxicada da minha relação e não era capaz de sair desse círculo. Mas no final conseguimos ambos sair das nossas relações tóxicas ao mesmo tempo. O meu objetivo era ficar solteira durante pelo menos um ano mas isso foi tudo ao ar. Estive só uns 15 dias. Ainda que já estivesse sozinha no coração e na mente há muito”, revelou.
Ana Peleteiro, que voltou às pistas em grande este ano com a vitória no Campeonato da Europa ao Ar Livre e a medalha de bronze nos Mundiais em Pista Coberta (nos Jogos de Paris acabou por não ir além da sexta posição com 14,59, a oito centímetros das medalhas numa prova ganha por Thea LaFond que não contou com a lesionada Yulimar Rojas), não mais voltou a falar do tema até esta segunda-feira, gravando um vídeo o Tik Tok no âmbito de uma trend em Espanha com várias mulheres a partilharem as suas experiências.
“Acordava de noite a ter relações sexuais sem consentimento. Mesmo assim, fiquei. Mudou absolutamente tudo em mim. A minha forma de vestir, o cabelo, a forma de ser com a minha família, distanciar-me de muita gente. Mesmo, assim fiquei. Dizia-me que a nossa relação se iria deteriorar se não tivéssemos relações sexuais sempre que ele quisesse e que, no final de contas, quem não comia em casa acabava por comer fora. Se me tivesse sido infiel, não me surpreendia nada. Mesmo assim, fiquei. Ia para a casa dele aos fins de semana, desaparecia e, de repente, não sabia de nada. Ele durante todo o fim de semana dizia-me aqui e ali ‘Bom dia’ e pedia desculpa, dizendo que necessitava do seu espaço, que tinha de confiar nele e deixá-lo fazer as suas coisas porque era normal numa relação. Mesmo, assim fiquei. Voltava com chupões no corpo e dizia-me que eram picadas de bichos ou do colchão. Mesmo assim, fiquei”, partilhou.
“Colocou um ecrã espelhado, que não permitia que visse o telemóvel a não ser que estivesse de frente porque dizia que não parava de olhar para ele cada vez que escrevia. Mesmo assim, fiquei. Tinha amigas novas todos os meses e inventada filmes de que eram amigas de há mil anos. Era mentira, eram amantes. Cada vez que suspeitava que estava a falar com outra miúda, ou que estava a ponto de descobrir uma infidelidade, dizia-me que estava completamente louca, que eram invenções da minha cabeça. Descobri centenas de emails com a sua ex-namorada, onde a deixava louca, dizendo que estava obcecada por ele. Mesmo assim, fiquei. Recebia cartas das suas amantes em casa. Muitas vezes era eu quem as recebia e, por desconfiança, lia-as. Ele dizia que eram fãs loucas, que estavam obcecadas com ele. Mesmo assim, fiquei”, prosseguiu a atleta.
“Se se identificarem com algum destes sinais, por fora, fujam! Nunca vão ser felizes e estão a causar-vos muito dano. Tentei recorrer a terapia porque sair de uma relação com um narcisista é muito complicado, já que reduzem o teu amor próprio a menos 20. Com ajuda e pessoas ao nosso redor que te querem bem e a começar do zero, a viver um amor real, bom e bonito”, concluiu Ana Peleteiro num vídeo que não demorou a ser partilhado por toda a imprensa espanhola pelo impacto do relato e onde mais uma vez voltou a não identificar o companheiro da relação, referindo apenas que “não é muito difícil” saber de quem fala.
Esta terça-feira de manhã, aproveitando uma série de comentários de programas televisivos espanhóis sobre o tema, a atleta voltou a abordar o tema num vídeo feito também no Tik Tok. “Estou a receber mensagens, chamadas de quase todos os meios de comunicação do país, tudo isto parece incrível…. Vou tentar explicar tudo para que fique claro. Se isto me acontecesse hoje, que sou uma mulher com uma educação sexual maior e diferente daquela Ana, provavelmente logo no primeiro dia ia a correr à policia e fazia uma denúncia. O problema é que não tinha consciência, muitas mulheres, e também há casos de homens, quando sofrem este tipo de situação, não sabem que isto não é normal. Era o que me acontecia. No meu caso, aquilo que eu achava era que tudo o que acontecia era de uma relação normal e que tinha de aguentar. Só quando comecei a fazer terapia e a falar com amigas é que percebi que não era uma coisa normal”, explicou.
“São atitudes que não se podem permitir. A todos aqueles que me seguem há bastante tempo, como se devem recordar em 2022 fui ao programa da Sindy Takanashi agradecer pessoalmente porque fazia um mês e meio que tinha sofrido abusos sexuais por causa de um vídeo que tinha visto no seu programa. Quando vi, pensei ‘Era isto que se passava comigo’. A diferença de idades era enorme, a diferença de aprendizagens e da vida era completamente diferente. Claro que teria feito uma denúncia mas só mais tarde é que tive consciência do que se passava, quando me disseram ‘Rapariga, não é normal, o que estás a fazer da tua vida?’. Era só uma miúda, que não tinha consciência. Não quero fazer disto um circo, só falo para que pessoas que sintam e vivam o mesmo. Hoje não tenho provas, passaram muitos anos. Agora ia logo à polícia. E não me interessa nada quem não acredite em mim, é-me igual. Eu tenho de falar porque é a realidade”, salientou.