Entre as personagens marcantes da existência humana, contam-se certamente o amor, a vaidade e a morte. Mas nem só de grandes papelões se faz o nosso drama comum. Há realidades menos celebradas na literatura, menos iluminadas nos anais da história, que exercem uma influência decisiva no tempo que passamos aqui. O queixume – esse estranho prazer negro, capaz de rarefazer a atmosfera em redor – é uma delas.
Existem muitos locais de trabalho em que abrir a porta de entrada é levar com uma dose avassaladora de queixas. E todos conhecemos pessoas para as quais calar um infortúnio seria um exercício demasiado ascético para poder sequer ser ponderado. O que surpreende mais, porém, não são esses casos extremos de necessidade de lamentação. É a amplitude do fenómeno. Em grau maior ou menor, ele está por todo o lado; se o protesto não sai da boca, parece estar entalado na garganta; são autênticos heróis da paciência – ou apenas vegetais inúteis – os que não caem na tentação de encher o mundo com as suas reclamações.
Quando nos queixamos, é a particularidade do mal-estar que sobressai. O absurdo deste salário, ou a maçada deste vizinho, ou o desconforto desta peúga, que no seu singularíssimo despropósito comprometem a ordem geral do cosmos. Mas, percebendo a universalidade do queixume, somos levados a crer que o problema é de outra escala e radica em aspectos estruturais da nossa relação com a vida. De onde vem a tendência irresistível para dizermos mal do que se passa? Três notas sobre o assunto, curtas demais como filosofia, longas demais para o jornal.
A primeira tem a ver com a afirmação de Valéry em Tel Quel: “A ideia de que a existência deveria ser diferente é um sentimento invencível”. Valéry não diz nada contra a teoria de que este é o melhor dos mundos possíveis. E Valéry não tem de estar amargurado para escrever o que escreveu. A frase refere-se a um sentimento, não uma convicção, e a um sentimento que todos conhecemos, sob a forma da irritação, da dúvida ou da tristeza em estado bruto. Nem o mais agradecido dos homens terá alguma vez confundido este lugar com o paraíso. É curioso reparar, aliás, que nem sabemos imaginar a que é que corresponderia a vida ideal – sabemos apenas que teria de ser melhor do que os toscos e fugidios prazeres com que já entrámos em contacto. Muitos pensadores disseram-no, eu repito: a característica mais desconcertante da condição humana é a desproporção entre vontade e poder. Daí a queixarmo-nos, como se perceberá, é um pequeno passo. Queixar-se é traduzir por palavras, sob expressões mais ou menos descabidas, um dado incontornável da existência, o fosso entre ideal e actual.
A segunda nota prende-se com um velho vício, que a Bíblia apresenta como um vício comum mas os humanistas juram ser apanágio de um rol limitado de sujeitos malvados: a soberba. “Porque se ensoberbece quem é terra e cinza, quem, ainda vivo, tem os intestinos cheios de podridão?”, lê-se em Ben-Sirá. É uma boa pergunta. Mas fiquemo-nos por considerações mais tangíveis. Esta pequena criatura chamada homem, que veio parar aqui sem saber como, cuja inteligência se atrapalha quando uma mosca voa nas redondezas, tem tendência a reclamar para si um estatuto especial na economia do mundo. À desproporção entre vontade e poder, soma-se assim a predisposição para nos julgarmos o centro de tudo – aquele que merece a preferência dos elementos e sabe como as coisas deviam ser. Essa auto-proclamada condição soberana leva-nos a entrar em conflito com o curso da realidade, que insiste em seguir estapafúrdias vias alternativas; portanto, queixamo-nos. Há queixas justas, claro, que se limitam a denunciar infracções a direitos básicos. Mas aquilo que me interessa aqui – o estado permanente de queixa, no qual nos insurgimos contra tudo e o seu contrário – pressupõe uma forma peculiar de auto-reconhecimento: a ideia de que eu estou na posição de determinar, com a segurança de um iluminado, como é que tudo devia acontecer. Queixar-se, no sentido mais lamuriento da palavra, é tomar-se como o juiz do mundo e denunciar irregularidades em relação à mais sacrossanta das leis. A lei dos próprios apetites.
Chegamos por fim à terceira nota, mediante a qual o autor procura explicar em poucas linhas a desabrida explosão do queixume nos tempos hodiernos. Há dois princípios elementares de auto-limitação em matéria de queixa. Um é a vergonha: não me queixo para não ser mal visto pelos outros. Outro, a submissão a critérios éticos superiores: não me queixo porque, apesar de me sentir extremamente arreliado com a minha situação presente, acredito que há razões para aguentar isto e que a minha tarefa principal é transformar-me a mim mesmo. Ora, uma época caracterizada pelo dogma da auto-afirmação vazia é uma época em que os diques da contenção rebentaram. Na filosofia do “sê quem tu és”, no culto do “descobre a tua verdade”, não há motivos fortes para contrariar a primeira impressão de falta de sentido. E, por isso, aqui vai disto: queixas por qualquer sombra no prato e queixas sem piedade para com o próximo. Longe de mim negar que há hoje um respeito maior pela fragilidade de algumas pessoas e que se têm desmontado, a partir daí, lógicas abusivas de poder que vigoraram impunemente durante muito tempo. O que também me parece claro é que está em curso uma normalização do queixume, que por vezes se transforma numa espécie de culto da vitimização. Se no espaço público estas tendências dão azo a reivindicações delirantes ou a discussões cómicas, nos ambientes familiares e profissionais o resultado pode ser uma convivência destrutiva.
Quando se fizer a história do século XXI, falar-se-á deste ou daquele amor célebre, da vaidade exponenciada pelas redes sociais, da morte de um figurão importante, de acontecimentos com uma ressonância mediática evidente. É justo. Mas peço-vos, senhores historiadores do futuro, não se esqueçam também de incluir esta personagem da vida quotidiana que assolou tantas casas e tantos escritórios da época em que vos escrevo. O queixume. Um estranho prazer negro, capaz de rarefazer a atmosfera em redor, ao ponto de, por vezes, ser difícil respirar a promessa que é existir.
O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico