Título: Livro de Obra. O edifício d’«A Nacional» nos Aliados
Textos: Cristina Guedes, Francisco Vieira de Campos e outros
Fotografia: Francisco Ascensão
Design: João Faria / Drop
Editor: Dafne Editora
Apoio: Fundação Marques da Silva e Direcção Geral das Artes
Páginas: 184
Preço: 21€
Destacado numa esquina da Avenida dos Aliados, no Porto, o prédio da companhia de seguros A Nacional projectado por José Marques da Silva (1869-1947) em finais de 1919, aprovado pelo Município em Junho de 1920 e estreado em 1924 — «um edifício de grande qualidade, quer na sua concepção, quer no requinte de alguns aspectos da sua construção», porém «feita com poucos meios» (p. 80) — foi reabilitado entre 2021 e 2024 para ser convertido em apartamentos de luxo. Tratou-se, assim, duma «mudança radical que exigia transformar quase tudo» (p. 7), todo um processo, desafiante e complexo, que este livro elege como «exemplo contracorrente» face às «incontáveis demolições que substituem o existente por cópias desqualificadas, materiais desajustados e simulacros de um passado construtivo que já não existe» (p. 8). «A velocidade cruel do estaleiro não permite a nostalgia», lê-se quando no final. Obras são momentos críticos na vida de edifícios «em profunda transformação» (p. 14), e uma campanha fotográfica que registe a evolução do estaleiro, exibindo o construído e as suas «vísceras» — «Vísceras» é o título dum capítulo, aliás como «Ossos», como não podia deixar de ser, pelo mesmo critério — como não voltarão a ser vistas, representará sempre, além de um estudo de caso e memória profissional tecnicamente interessantes, o admirável salto dado, cem anos depois, nos «padrões de conforto, segurança e desempenho da construção» (p. 38). Faz sentido.
Tudo se passou — curiosamente — quando decorriam grandes obras na Avenida, toda ela delimitada por tapumes, e ao mesmo tempo, «envolto em andaimes e telas de protecção, o edifício desapareceu». «Imaginado como marco de urbanidade da cidade, com fachadas falantes e elaboradas, fechou-se sobre si próprio e viveu um momento introspectivo de renovação» (p. 143). Mas no labirinto dos regulamentos públicos, o belo elevador foi «um combate perdido contra os burocratas da certificação» (p. 145).
A Dafne Editora, que recentemente publicou Cidade de Pedra. A Arquitectura do Porto de Domingos Tavares (324 pp. ilustradas), junta-se a outros editores de livros de arquitectura mais atentos à lição dos principais processos de reabilitação, restauro e reconfiguração de imóveis ocorridos na última década no nosso país, desta feita numa parceria — amplamente justificada, de resto — com a Fundação Marques da Silva, que salvaguarda o arquivo do arquitecto que lhe dá nome e é, na cidade do Porto e no país, um pólo — também editorial — de debates e de conservação de outros espólios do nobre ofício. A Fundação promoveu a campanha fotográfica de Francisco Ascensão e facilitou a consulta dos esquissos e outros documentos da construção do edifício d’A Nacional, o que permitiu aos arquitectos do ateliê Menos é Mais darem-se conta de alterações do próprio projecto ocorridas durante o processo construtivo original (v. pp. 8, 29, 39, 78, 88, 98).
Marques da Silva desenhou o prédio d’A Nacional cinco anos depois de ter concebido os Grandes Armazéns Nascimento (1914) — ali a Santa Catarina, um vendo o outro… —, porém este estabelecimento só foi inaugurado em 1926, dois anos depois daquele, e em Novembro de 1940 daria lugar ao famoso Café Palladium, que há muito deixou de ser o que era. Todavia, o livro não relaciona estes edifícios, nem o primeiro com quaisquer outros que o arquitecto assinou por aqueles anos. O que está à nossa frente é um «livro de obra», exactamente a expressão utilizada para descrever o percurso — «praticamente um exercício de relojoaria» (p. 71) — que vai do estirador do ateliê à chave na porta do futuro proprietário ou inquilino. Para evocar a função primordial do prédio d’A Nacional, os novos e pequenos apartamentos — cinco por piso (p. 83) — foram organizados com «caixas-fortes», à maneira de «núcleos de serviços concentrados que condensaram as novas funções» (cozinha, casas de banho, armários articulados, etc.; p. 19), uma solução deveras elegante porém sem padronização viável, para se «responder às especificidades de uma planta geometricamente tortuosa» (p. 26), em particular nas mansardas, que têm «espaços generosos e formas peculiares» (v. pp. 42-43). Agora protegidos por «níveis elevados de insonização» (p. 54), «o principal valor dos apartamentos são os magníficos janelões» lançando vistas sobre a Avenida dos Aliados, diz-se à p. 41 — todavia, não temos ainda imagens fotográficas do efeito final pretendido.
A enorme clarabóia que ilumina o saguão de forma natural, a ponto de lhe dar uma «transparência celeste», é sem dúvida um pilar estético deste edifício. A cobertura original de madeira, «mais tarde substituída de modo displicente por betão armado», é agora de aço, o que permitiu «reajustar a mecânica estrutural das coberturas e abrir espaço para novos apartamentos com áreas generosas, agora acessíveis a partir do espaço gerado pela nova clarabóia» (p. 88), desenhada seguindo os desenhos originais de Marques da Silva mas reinventando-os, qualificando-a para «performances térmicas e funcionais contemporâneas» (p. 97).
Se a reabilitação do edificado urbano é a melhor e a mais sensata prioridade para o futuro, os arquitectos do Menos é Mais também deixam clara a lição da renovação do Nacional: «Esta combinação entre materiais resgatados de há cem anos [através da industrialização e digitalização da produção contemporânea], uma execução industrializada com grande flexibilidade para incorporar várias linguagens e formas, e uma disponibilidade económica para compatibilizar os vários sistemas em obra, foi o que permitiu dar ao resultado uma expressão coerente, em que os vários tempos do edifício se integraram numa unidade contínua» (p. 166). O mesmo é dizer: para se fazer muito bem, é preciso muito dinheiro.