Publicado postumamente em 1901, A Cidade e as Serras, o último dos grandes romances de Eça de Queiroz, foi construído na comparação entre a Paris buliçosa de onde Jacinto, o protagonista da história, parte, e o idílio pacato da povoação fictícia de Tormes que encontra no interior de Portugal. 124 anos após a publicação da obra, o país volta a pender a sua atenção entre o urbano e o rural, com os restos mortais do escritor a serem transportados de Baião para Lisboa para serem depositados no Panteão Nacional na próxima quarta-feira, dia 8.

Todavia, antes dos despojos do autor de A Relíquia ou O Primo Basílio regressarem à capital, a Fundação Eça de Queiroz preparou para este fim de semana de 4 e 5 de janeiro aquilo que concebe como um “primeiro momento das honras de Panteão Nacional”. As palavras são do presidente da instituição, o escritor Afonso Reis Cabral, que consta também entre os descendentes do homenageado enquanto trineto.

Fundada em 1988, esta instituição seria responsável um ano depois pelo transporte da urna de Eça de Queiroz de um jazigo onde se encontrava no cemitério do Alto de São João, em Lisboa, para o local onde desde então se encontrava depositada, em Santa Cruz do Douro — a localidade que inspirou a “Tormes” literária e onde está sediada a casa a partir da qual esta fundação opera.

É por isso que, se sábado é pautado por várias iniciativas gravitando à volta de Eça de Queiroz, domingo é dominado por uma única, de maior solenidade. “A urna, contendo os seus restos mortais, estará em câmara ardente no átrio principal da casa de Tormes. É um momento de despedida desta casa, que Eça de Queiroz conheceu como Quinta de Vila Nova”, afirma Afonso Reis Cabral ao Observador.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dada a importância do momento, a Fundação Eça de Queiroz quis “com alguns parceiros, fazer uma programação de facto de homenagem”. Exemplo disso são os acervos cedidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros que, durante o fim de semana, vão estar expostos. “Teremos os relatórios diplomáticos de Eça de Queiroz sobre a situação dos chineses em Cuba. Foi um grande momento da sua vida diplomática, em que ele alertou para a situação de escravatura em que os chineses viviam na ilha depois de terem chegado lá via Macau — portanto, com responsabilidade portuguesa”, frisa o presidente da instituição.

Documentos como este vão estar disponíveis para admirar nas visitas guiadas a acontecer ao longo de sábado, das 9h30 às 16h30, sem ser necessária marcação prévia. Além disso, também vão estar expostos “alguns objetos que normalmente não mostramos ao público”, adianta Afonso Reis Cabral, como “um álbum de desenhos de Eça de Queiroz e de pequenos poemas, alguns documentos também pessoais, como vistos diplomáticos, cartas, etc.” A par de tudo isto, também estarão presentes as primeiras edições das obras do escritor, partilhadas pelo Núcleo Luís Santos Ferro, que deve o seu nome a “um grande queirosiano e cuja família cedeu toda a biblioteca após a sua morte”.

Outras iniciativas de sábado passam pela organização de uma oficina de escrita de ficção dinamizada pela escritora Filipa Melo, cuja inscrição é gratuita mas limitada à lotação de 60 lugares, e por um jantar-tertúlia com o escritor Mário Cláudio, se bem que este se destina apenas aos alunos do ensino superior vencedores do Concurso de Leitura Ensino Superior do Plano Nacional de Leitura.

Ao Observador, Filipa Melo diz ter concebido esta oficina enquanto pesquisa à “vitalidade das personagens de Eça de Queiroz como invenções ainda vívidas e surpreendentes, também a nível técnico”. “Elas são retratos realistas, composições tipificadas para a pintura crítica de um país numa determinada época, é verdade, mas saem dela e animam-se a cada leitura”, defende. Quanto a este programa organizado em Baião, diz ser “uma honra participar como escritora nestas comemorações” e “uma alegria enquanto membro do Conselho Cultural da Fundação Eça de Queiroz”. “No caso de Eça, que não deixou expressa uma vontade final inequívoca, as honras de Panteão não só representam o reconhecimento da grandeza do seu génio artístico pelo Estado português, mas também garantem a perenidade da homenagem que qualquer cidadão português lhe queira fazer através de uma visita ao local onde jazem, a partir de agora em definitivo, os seus restos mortais”, conclui.

Durante a tarde, dá-se o momento institucional do programa, com os anúncios dos escritores selecionados para a terceira temporada das Bolsas de Residência Literária Eça de Queiroz na casa e da abertura das candidaturas ao Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz / Fundação Millennium BCP, cuja última vencedora foi Joana Bértholo, em 2022, com A Casa de Roma.

Esse momento também será marcado por vários discursos: de Paulo Pereira, presidente da Câmara de Baião, de Pedro Delgado Alves, em representação da Assembleia da República, e de Dalila Rodrigues, ministra da Cultura, que anunciou na véspera a concessão de 75 mil euros do Estado à Fundação Eça de Queiroz para “assegurar projetos futuros”.

Ministério da Cultura atribui 75.000 euros à Fundação Eça de Queiroz

Dados os convidados, Afonso Reis Cabral espera “ter auditório cheio” nesse evento, mas onde recaem as maiores expectativas é mesmo  sobre a sessão em câmara-ardente de domingo, que decorre das 9h30 às 16h30 e terá direito a uma guarda de honra feita pela Confraria Queirosiana. “Esta é a única confraria, penso eu, que é dedicada a um escritor, que tem um tema literário. Todas as outras confrarias são tipicamente dedicadas a vinho, a comida, etc… A Confraria é sediada no Solar dos Condes de Resende em Vila Nova de Gaia e há também aí uma ligação à história de Eça de Queiroz porque este casou-se com uma filha do Conde de Resende [Emília de Castro], ou seja, tornou-se seu cunhado. Ou seja, é historicamente uma casa de uma família também ligada a Eça de Queiroz”, sinaliza o presidente da fundação.

Uma cerimónia de “perfil adaptado a cada homenageado”

Em Lisboa, a cerimónia que culminará na trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão “obedece a um figurino que está já há muito estabilizado”, afirma Pedro Delgado Alves ao Observador. O deputado do PS é o coordenador do grupo de trabalho responsável por “definir e orientar o programa de trasladação” de Eça de Queiroz, como se lê na Resolução da Assembleia da República n.º 55/2021, na qual, por unanimidade, se aprovou a concessão de honras de Panteão Nacional ao escritor.

Este tipo de iniciativa tem um protocolo próprio que não tem divergido muito entre as diferentes cerimónias de trasladação decorridas no século XXI — Amália Rodrigues em 2001, Manuel de Arriaga em 2004, Aquilino Ribeiro em 2007, Sophia de Mello Breyner Andresen em 2014 e Eusébio em 2015. “Há, essencialmente, uma componente principal que é o cerimonial do próprio dia, portanto está muito ligada a protocolos do Estado, a um circuito que envolve o elogio fúnebre da pessoa homenageada, intervenções do Presidente da Assembleia e do Presidente da República”, afirma o deputado.

É por isso que, conforme é possível constatar no programa disponibilizado pela Assembleia da República (AR), a cerimónia vai começar pelas 9 da manhã com uma série de procedimentos em frente ao Palácio de São Bento. Diversos elementos — entre eles, o Presidente da AR — ligados à cerimónia aguardarão na escadaria principal pela chegada da urna do escritor, coberta pela bandeira nacional, para ser colocada por elementos da Guarda Nacional Republicana numa essa. Nesse momento, ouvir-se-á o hino nacional, tocado pela Banda de Música e Fanfarra da GNR, antes dos despojos serem colocados no breque fúnebre, que será acompanhado por uma “escolta de honra a cavalo” até ao Panteão Nacional. Já na Igreja de Santa Engrácia, juntar-se-ão o Presidente da República e o primeiro ministro.

O que normalmente muda de cerimónia para cerimónia é não só o percurso — por exemplo, a procissão de Eusébio partiu do cemitério do Lumiar e fez uma passagem pelo Estádio da Luz — ou quem profere o elogio fúnebre da pessoa homenageada. “Adicionalmente, tenta-se comportar momentos culturais, se quisermos chamar-lhes assim, ligados à personalidade homenageada, através da passagem de uma peça emblemática da sua obra, de discos ou peças musicais contemporâneas, ou até da passagem de um vídeo ou de depoimentos de pessoas relevantes. Portanto, a cerimónia, no fundo, tem um perfil adaptado a cada homenageado”, afirma Pedro Delgado Alves.

Como exemplo disso, se Sophia teve direito a dançarinos da Companhia Nacional de Bailado no decurso da sua cerimónia, com Aristides de Sousa Mendes — que não foi trasladado mas teve direito a uma lápide evocativa em 2021 — ”recuperaram-se depoimentos de sobreviventes, alguns que tinham sido já gravados, estavam conservados há mais tempo”.

No caso de Eça de Queiroz, dado o seu desaparecimento há quase 125 anos e tratando-se de um escritor, a cerimónia no Panteão vai intercalar a leitura de excertos das suas obras como momentos musicais. Para começar, à chegada pelas 11h00 da sua urna será interpretado o Hino Nacional pelo maestro João Paulo Santos e pela soprano Sara Braga Simões do Coro do Teatro Nacional de São Carlos.

Depois, entre o elogio fúnebre de Afonso Reis Cabral e os discursos de Marcelo Rebelo de Sousa e José Pedro Aguiar-Branco, serão lidos excertos dos romances Os Maias, O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e A Cidade e as Serras, assim como de textos e obras de cariz cronístico e analítico, como As Farpas, Uma campanha alegre, O francesismo, A Europa e Notas contemporâneas. Pelo meio, serão interpretados temas como Où voulez-vousaller? e Medje, de Charles Gounod, A Pastoral Song, de Joseph Haydn, e, talvez mais significativamente, parte da opereta A Morte do Diabo, de Augusto Machado, cujo libreto foi escrito por Eça de Queiroz a quatro mãos com Jaime Batalha Reis.

No final, regressa a atuação protocolar, com o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro a encaminharem-se para a mesa que se encontra junto do Altar, para assinatura do Termo de Sepultura do Panteão Nacional, regressando depois aos respetivos lugares. Após esse momento, o Hino Nacional será executado pela Banda da GNR, seguido do toque de “silêncio” de um Terno de Charameleiros da GNR. A urna será então transportada por militares da GNR até à sala onde se encontra a Arca Tumular de destino, sendo depositada após a bandeira colocada sobre a urna ser devolvida ao Presidente da República para a dar a um membro da família de Eça de Queiroz.