O livro é um festim, do ponto de vista imagético e na narrativa, que compõe uma espécie de ficção documental, uma vez que, no enredo, há um intuito de documentar. Estamos na época da Grande Depressão, no que é conhecido por Dust Bowl, na década de 30, um período de seca extrema e tempestades de areia nas Grandes Planícies norte-americanas entre Oklahoma, Kansas e Texas. Isto, causado por métodos agrícolas inadequados, aliados às condições naturais inevitáveis, levou à falta de recursos alimentares e a movimentos migratórios. O resultado foi dramático para as populações residentes, que tiveram de encarar pobreza, fome, migração ou morte. Quem lê o livro depara-se com esta paisagem e este sofrimento, e o traço ajuda a que se sinta tudo turvo, coberto, sufocante. Até o papel passa a saber a pó, e o leitor acompanha a vida de quem tenta salvar a casa e os pulmões da poeira que existe em todo o lado.
Entre 1937 e 1942, a administração de segurança agrícola norte-americana encomendou fotografias a vários fotógrafos. O objectivo era, através de um programa de fotografia de influência, dar a conhecer a América aos americanos. O programa incluía também escrita: fotógrafos e escritores publicavam imagens e artigos em revistas como a Life, lidas por milhões. Numa ponta do país, conhecia-se a outra, ou pelo menos o que lá chegava como verdade, o que não implicava, como veremos, que não fosse uma versão: também dentro do documento pode haver enviesamento, ficção, tentativa de adulterar uma imagem ou mesmo adulteração de uma imagem, provocando uma impressão diferente. Volta e meia, como se sente na narrativa de Dias de Areia, é mais importante a reacção provocada por uma fotografia do que a veracidade de uma imagem que é divulgada pelo seu carácter documental. E, de qualquer forma, peça nenhuma abrange tanto quanto a vida: há sempre um olhar, há sempre limites, há sempre qualquer coisa que fica de fora. É sobre isso que a novela gráfica se debruça.
Título: “Dias de Areia”
Autora: Aimée de Jongh
Tradução: Helena Guimarães
Editora: ASA Editores
Páginas: 288
A autora usou o arquivo referido para construir Dias de Areia. Ao longo do livro, Jongh usou a fotografia como elemento dominante, incorporando as fotografias tiradas por John Clark, o fotógrafo ficcional nova-iorquino que é o protagonista deste livro. De Nova Iorque, o fotógrafo dirige-se para a região, tendo uma lista de fotografias para tirar, e pelo caminho o leitor vê as paisagens com o traço inigualável da ilustradora. A figura de Clark vai interessando ao leitor, sobretudo a forma como a viagem o transforma. Ali chegado, o fotógrafo tem o objectivo único de fotografar: à assalariado, quer cumprir a sua tarefa, marcar um visto no papel com a lista e voltar para casa. Assim, longe de ter de esperar que a oportunidade se lhe apresente, nos encontros com os habitantes da zona começa a fazer pedidos para conseguir as imagens pedidas.
Logo aqui, há um embate, uma vez que a população se queixa de ser paisagem, sendo cavado um fosso entre ambos. Nesta parte, a autora brilha: no mesmo quadrinho, mostra Clark a tirar a fotografia, mostra a fotografia captada e mostra todo o entorno que não é captado, dando contexto e fragmento em simultâneo, permitindo ao leitor ver de que forma a ausência do primeiro desvirtua o segundo. Nisto, o desenho vai sendo aliado à fotografia, fotografia essa também desenhada pelo traço inesquecível de Jongh. A escolha dos referidos fragmentos também é fruto de interesse do próprio fotógrafo, e consequentemente do leitor, que tem acesso aos dois planos, num mise en page de interesse maior
À medida que a estadia de Clark se prolonga, o seu olhar também muda. De tanto conviver, quase se transforma num dos habitantes, o que faz com que a perspectiva deixe de ser a de querer sugar imagens planeadas para poder mostrá-las tal como foi perspectivado por quem lá não esteve – a miséria, a fome, a aparente falta de futuro, até a orfandade. Quando a realidade não correspondia, o fotógrafo tinha nas suas mãos a forma de limitá-la. Isto vai tendo um grande interesse na narrativa, porque ao leitor deixa de caber ler simplesmente, recebendo acriticamente. Pelo contrário, a narrativa impõe que se cogite o peso de uma fonte documental, assim como o seu valor, partindo-se do princípio de que mesmo o que aparenta ser factual é fruto de interferência e de decisão humana e que, em última instância, estas são manipulações.
O traço de Aimée de Jongh é cheio de cor e vida, com linha fina, e aqui a autora usa cores quentes que reflectem a paisagem, mostrando o impacto da poeira que transforma a vida toda num amarelado permanente. É tudo exuberante, o que não faz com que deixe de ser realista. Finalmente, numa decisão que ajuda a relevar o papel da fotografia neste trabalho de ilustração, os capítulos são espaçados pela reprodução de fotografias reais.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia