Os franceses nunca foram muito fortes nem no cinema de imagem real nem na literatura de ficção científica (FC). Já na animação e na banda desenhada do género (sobretudo nesta), o panorama é bastante melhor, graças aos filmes de René Laloux no primeiro caso, e no segundo, a séries como Valérian, Agente Espacio-Temporal, de Mézières e Christin, Os Pioneiros da Esperança, de Roger Lécoureux e Raymond Poivet, Os Náufragos do Tempo, de Jean-Claude Forest e Paul Gillon, a Barbarella, do mesmo Forest, e os trabalhos irrotuláveis de Moebius  (com e sem Jodorowsky) e de Philippe Druillet, entre vários outros.

É natural que os filmes animados de FC franceses que vão aparecendo apresentem fortes influências estéticas, formais e narrativas da BD local, e também da japonesa e da respetiva animação, tendo em conta o grande peso destas no mercado franco-belga. É o caso de Mars Express, a primeira longa-metragem de Jérémie Périn, uma FC cyberpunk, policial e de ação, que às marcas da BD junta ainda, para a definição da sua identidade visual, óbvias referências a fitas como Robocop-O Polícia do Futuro, ou Blade Runner-Perigo Iminente, de Ridley Scott, e a títulos nipónicos como os filmes Ghost in the Shell.

[Veja o “trailer” de “Mars Express”:]

Mars Express passa-se no século XXIII, num planeta Marte há muito terraformado e colonizado, onde a Inteligência Artificial faz parte integrante do quotidiano, tal como os robôs e os androides. A agente humana Aline Ruby e o seu parceiro androide Carlos Rivera, um “Ressuscitado” (ou seja, uma pessoa que morreu mas que cujo acervo de memória, intelectual e emocional foi guardado, e implantado e reavivado num corpo robótico com uma cabeça virtual), investigam um caso que envolve robôs que estão a ser “destrancados” por hackers ativistas — ou seja, libertados dos programas que os fazem trabalhar para os humanos e não terem autonomia —, e o desaparecimento de duas estudantes de robótica. E acabam por descobrir uma conspiração que pode mudar o futuro da humanidade.

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[Veja uma entrevista com o realizador Jérémie Périn:]

Realizado com um orçamento bastante confortável, Mars Express é, visualmente, um regalo para os apreciadores de FC, dado o trabalho de construção de um mundo futuro high tech pormenorizado e verosímil por Jérémie Périn e pela sua equipa: paisagens urbanas harmónicas, interação profunda e sofisticada entre pessoas, computadores e humanoides, respeito pelas leis da robótica asimovianas, fabrico de “duplos” cibernéticos dos humanos, automóveis magnéticos potentes e naves espaciais elegantes, “quintas” de mineração cerebral, cibermáquinas de defesa e guerra, tecnologia avançada de apoio ao quotidiano e assistência pública, sexo hetero e homossexual com androides e robôs, etc.

[Veja uma sequência do filme:]

Se por um lado Mars Express não consegue evitar alguns clichés (a mega-corporação todo-poderosa e conspirativa, os protestos contra os robôs e o seu peso e importância na sociedade, as sequências de ação algo estereotipadas) e o atarefado enredo nem sempre tem a clareza e a arrumação necessárias, pelo outro, Jérémie Périn mostra ter uma visão cinematográfica própria, a realização é estilizada e com estaleca, e o filme abunda em boas ideias sobre os problemas gerados pela evolução das sociedades hipertecnológicas: as relações pessoais e sociais que se estabelecem entre humanos, robôs e androides, e as situações criadas pela ciber-ressuscitação (ver a angústia de Carlos quando visita a ex-mulher, a filha e o novo marido daquela) ou pela duplicação.

A fita é rematada por uma original resolução, que contraria o barbudíssimo lugar-comum da revolta dos robôs que a certa altura tememos ir manifestar-se. E se em vez de se rebelarem e entrarem numa senda de destruição, morte e conquista do poder aos humanos, eles muito simplesmente nos voltassem as costas e fossem embora? Pela personalidade e homogeneidade da animação, que consegue conglomerar a multiplicidade de influências e alusões, e pelo investimento de inventividade e de complexidade em toda a envolvência de FC, vale a pena apanharmos este Mars Express.