Há quatro anos, Julián Fuks foi eleito pela edição brasileira da revista Granta um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros. Mas ele podia nunca ter entrado nesta lista. Se nasceu em São Paulo, em 1981, foi porque os pais, argentinos, foram ali obrigados a procurar exílio de uma Argentina em plena Guerra Suja. Com eles veio um bebé, adotado numa altura em que centenas de crianças foram levadas de famílias de dissidentes e entregues pelos militares a outras pessoas. Sabemos tudo isto através das páginas auto ficcionais de A Resistência, quarto livro do autor de 34 anos, o primeiro lançado em Portugal.

Na verdade, esta história que parte da adoção de Emi, o irmão de Julián Fuks adotado na Argentina, era para se chamar O Irmão Possível. Só que, quando mais de metade do livro já estava escrito, Chico Buarque lança de surpresa pela mesma editora — a Companhia das Letras — O Irmão Alemão, narrativa que mistura ficção e realidade para contar a descoberta de um irmão perdido na Alemanha e que aborda também a história do Brasil sob ditadura militar.

“O meu livro sairia seis meses depois se chamando O Irmão Possível. Pareceria uma paródia do livro do Chico, ou um plágio. Na verdade os livros não se parecem tanto, mas a sinopse é muito parecida, são narrativas auto ficcionais centradas na figura de um irmão, né? Poderia se chamar facilmente O Irmão Argentino, recorda sorridente ao Observador, no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, onde apresentou a obra. Por sugestão do editor, o título foi então mudado para A Resistência.

“Houve muita resistência para escrever este livro”, admite. O que pode ser positivo, enquanto perseverança e luta por uma causa, mas também algo negativo, o empurrar de um assunto, a tentativa de o ignorar. Julián gosta da ambivalência da palavra e acha que a sentiu nas duas formas. “O contar de uma história que talvez em vários momentos eu me questionava se deveria contar, e a outra, a de enxergar na literatura um lugar onde colocar em questão essas coisas todas. Onde expor certas questões íntimas que se tornam inevitavelmente políticas, sociais, e ganham uma relevância que vai além de mim mesmo.”

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a resistencia julian fuks

Lançado pela Companhia das Letras portuguesa, tem 216 páginas e custa 15,90€

Ao ler as 212 páginas, divididas por 47 pequenos capítulos, o novo título parece fazer mais sentido. A sinopse aponta para uma narrativa centrada na história de Emi, o único dos três filhos deste casal de ativistas da Resistência que foi adotado, em condições pouco legais, e cuja história da família biológica nunca se chegou a descobrir. Talvez por falta de informação, talvez por medo de vir a saber que a criança é uma das centenas que as Mães e Avós da Praça de Maio procuram incansavelmente em Buenos Aires até hoje. Mas o leitor encontra muito mais do que isso. Há a resistência dos pais à ditadura militar; ter-se um filho como um ato de resistência; a resistência do irmão ao convívio familiar e o seu sentimento de desintegração. O próprio narrador, Sebastián, a que o seu criador Julián recorre para que o livro não se torne numa autobiografia, chega a admitir a meio que a história não está a ir para onde ele queria. Também ele parece resistir.

Sei que escrevo meu fracasso. (…) Queria falar do meu irmão, do irmão que emergisse das palavras mesmo que não fosse o irmão real, e, no entanto, resisto a essa proposta a cada página, fujo enquanto posso para a história dos meus pais. Queria tratar do presente, desta perda sensível de contacto, desta distância que surgiu entre nós, e em vez disso me alongo nos meandros do passado, de um passado possível onde me distancio e me perco cada vez mais.” pág. 143.

Lido com os meus fantasmas, os meus problemas, mas não é uma autoanálise“, esclarece o escritor, filho de psicanalistas. “É também lidar com algumas questões do mundo, a situação da Argentina, a do Brasil, esse sórdido caso do sequestro de 500 bebés pelos militares. Tudo isso entra em questão nesse livro.” A certa altura, Sebastián pergunta-se: “Pode um exílio ser herdado?” Julián ainda não encontrou a resposta na sua vida. “Eu oscilo entre me julgar em alguma medida exilado, já que sou filho de exilados e na minha infância estava morando no país onde não deveria morar se o mundo fosse um pouco mais justo do que é, mas ao mesmo tempo não me sentia exilado.” Pelo contrário, aos poucos percebeu que, quando os seus pais resolveram voltar para a Argentina, entre 1988 e 1990, tinha ele seis anos de idade, e tentar de novo a vida em Buenos Aires, aí sim sentiu uma certa vivência em exílio. “Me tiraram do meu país”, recorda. Sinto que o exílio dos meus pais constitui uma história pessoal mas não uma história que necessariamente me vitimiza”.

Julián Fuks estreou-se como escritor em 2004 com Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu, tendo vencido logo o Prémio Nascente da Universidade de São Paulo. Em 2007 e 2012 foi finalista do Prémio Jabuti, com Histórias de Literatura e Cegueira, e do Prémio Portugal Telecom (atual Oceanos) e São Paulo de Literatura, com Procura do romance. Apesar de este ser o quarto romance, disse no passado que “muito antes de arriscar a primeira linha, já sabia que um dia teria de escrever este livro”.

Uma vez lembrado do que disse, pondera, antes de responder. “Bom. Não é que desde que me concebi escritor eu já soubesse desse livro, mas faz alguns anos já. Acho que justamente no processo que se narra aqui da terapia familiar — que eu vivi como terapia, não como experiência a ser narrada, convertida em literatura — toda aquela intensidade que foi ganhando a vivência familiar me fez pensar pouco tempo depois que eu deveria escrever sobre aquilo”, explica. O facto de o próprio irmão lhe ter pedido que escrevesse sobre a adoção tornou a ideia ainda mais sólida. Esperou. Escreveu outras histórias. Quando começou a escrever, pensou que sairia do processo com apenas um conto centrado na questão de Emi e da adoção.

“Mas quando eu fui contando uma parte eu percebia que era preciso contar outra, e outra, e outra. Enfim, fui-me dando conta de que aquilo não era um conto, era um romance. De repente surge uma noção de necessidade da própria obra. É nesse sentido que eu falo que já sabia que deveria ter escrito. Como se a obra tivesse uma necessidade própria dentro da minha biografia, dentro da minha vida ou do meu projeto literário. Não é um tema qualquer que eu escrevi a respeito, foi algo que estava latente ali, em algum lugar”, diz.

Do título e da ideia original encontra-se logo na primeira página a dedicatória: “Ao Emi, muito mais que o irmão possível“. Não soa carinhoso o suficiente, mas não é essa a intenção. “O filho possível é um termo que se usa muito para falar sobre o filho adotivo. Para colocar em questão o lugar do filho que se opõe ao filho ideal”, explica. “A psicanálise fala muito disso, de um ideal de filho que não vem, que não nasce e aí surge o filho possível. Como algo positivo, como o filho real em oposição ao filho ideal que é inexistente.”

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“Sou um autor que não sabe inventar”, admitiu. Pista sobre a muita verdade que existe em “A Resistência”. ©D.R.

Ainda que A Resistência tenha o selo de autobiografia ficcional, e de o leitor não poder saber concretamente o que é facto e o que é imaginação, numa das mesas em que participou no festival Correntes d’Escritas Julián Fuks deixou uma pista importante: “Sou um autor que não sabe inventar“, admitiu. O escritor confirma-nos que a história é verdadeira. Preencheu algumas falhas de memória, criou uma mise-en-scène (na realidade não foi escrever para Buenos Aires), esconde que foi mostrando os textos aos pais ao longo da construção do livro.

Por outro lado, partilha pensamentos íntimos, como a noite em que escreve ter sonhado que o irmão tinha morrido e um dos pensamentos que lhe atravessam a mente é que agora poderia narrar a sua história “nas minúcias que antes censurava em seu respeito”. Deixa até visíveis as vozes divergentes, os pais a discutirem se determinado facto aconteceu de uma forma ou de outra, como realmente aconteceu. “Meu pai e minha mãe obviamente são personagens, mas efetivamente essas conversas se deram. É um livro que surge de conversas travadas ao longo da minha infância e adolescência e que se prolonga com conversas ao longo da escrita do livro porque eu ia mostrando para eles.”

Para sua surpresa, quando no final entregou o manuscrito completo ao irmão, “ele não leu“, confessa, com riso nervoso. “A cena final do livro, ela é posterior mas ela se deu assim. Quando eu tive o manuscrito nas mãos entreguei a ele para ver o que é que ele podia achar, pensar. Mas já suspeitava que ele podia não ler. E mesmo depois de publicado, ele ainda não leu.” Diz que isso não o entristece. “Acho que ficou bem resolvido, aí já não cabe a mim, é uma decisão dele. Ele tem uma relação boa com o livro, está gostando do que tem acontecido. Esgotou no Brasil, já reimprimiram, está vendendo bem, agora chegou a Portugal… Tem alguns acontecimentos surpreendentes e ele tem gostado disso. Ele não tem nada contra o livro, que era um temor também.

Julián Fuks esteve esta semana em Moçambique para ser entrevistado por Mia Couto. Foi um dos quatro selecionados do programa cultural Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative, juntamente com Isabela Noronha, Kalaf Epalanga e Djaimilia Pereira de Almeida. O escolhido terá como mentor Mia Couto durante um ano, para a escrita de uma nova obra, e passará com ele 45 dias em Maputo. O brasileiro confessa-se cansado “da narrativa tão centrada nesta minha figura”. O projeto de livro que apresentou — e que irá escrever mesmo que não seja o escolhido de Mia Couto — mantém a linha da autoficção. Chamar-se-á Os Olhos dos Outros. “Vai contar histórias e vivências que eu tive com terceiros, pessoas mais distantes do que meus pais e meu irmão”, adianta. Continuará a ser um autor que não sabe inventar. Mas não se tem saído nada mal com isso.