Ivo Canelas é um dos 30 atores portugueses que até domingo têm encontro marcado com diretores de casting oriundos de vários países. À saída das audições, sexta-feira por volta da uma da tarde, confessou não ter grandes ilusões sobre o resultado. “Tenho 43 anos e se há coisa que já aprendi é que um ator tem de acreditar que tudo é possível de um dia para o outro, mas também que deve manter as expectativas em baixo. É preciso estarmos calmos, fazer o que sabemos fazer, e não receber o ‘não’ ou o silêncio como sinónimo de rejeição.”

O objetivo do ator e de muitos outros colegas não é o de encontrarem um trabalho concreto. Mostram-se àqueles que escolhem e recomendam intérpretes para televisão e cinema porque sabem que esse é um poder suave. Aparecer e conversar é que pode abrir portas.

A iniciativa chama-se Passaporte e é da responsabilidade de Patrícia Vasconcelos, a mais conhecida diretora de casting em Portugal. Convidou vários congéneres europeus e da América Latina a virem até Lisboa para encontros rápidos, como se fossem entrevistas de trabalho, mas com o tempo contado. E sem compromisso.

Passaporte teve uma primeira edição no ano passado e inspira-se num modelo que Patrícia Vasconcelos conheceu há cerca de seis anos na Irlanda, durante o festival de cinema Subtitle, criado pelo agente de atores Richard Cook (conhecido por representar Pierce Brosnan).

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Na versão lisboeta não há projeção de filmes, apenas encontros entre diretores de casting e atores, além de palestras gratuitas e abertas ao público em geral. A Academia Portuguesa de Cinema (APC), de que Patrícia Vasconcelos é fundadora e associada, dá o apoio institucional. Este ano o custo é de 62 mil euros (mais 24 mil que em 2016), com uma comparticipação de 40 mil vinda do Instituto do Cinema e do Audiovisual.

“O restante são parcerias, muito trabalho voluntário e toda estrutura da Academia concentrada nisto”, explicou a mentora. “É difícil, estamos sem dormir praticamente, mas felizes. Ou era assim, ou não era.”

As audições duram três dias e o Observador acompanhou as de sexta-feira. Os organizadores não autorizam a divulgação do local, por temerem a afluência de curiosos. Só os envolvidos sabem onde é. “Acho que há aqui uma esfera de quase intimidade, é um momento deles”, justificou Patrícia Vasconcelos.

Os papéis certos estão à espera

Os atores têm um horário exato para comparecem no local e sentam-se frente a dois ou três diretores de casting, distribuídos por quatro mesas. Dispõem de 15 minutos para mostrarem o que valem. Respondem a perguntas e são fotografados ou filmados com telemóveis. A conversa é informal e todos sabem que o lema, aqui, é vender talento e qualidades.

“A certa altura há uma atriz que me pergunta se estou à procura de algo específico”, contou a diretora de casting Debbie McWilliams, que trabalha em Londres e no ano passado também veio ao Passaporte.

“A resposta é não, não estamos em Lisboa à procura de alguém para um papel determinado. Viemos conhecer pessoas, ver atores e atrizes, nunca sabemos qual o próximo guião com que vamos trabalhar e quem se encaixa nele. No fundo, a piada deste trabalho é nunca sabermos o que está ao virar da esquina.”

Opinião ligeiramente diferente expressou Frank Moiselle, diretor de casting em Dublin. “Nestes encontros já descobri alguns atores que merecem uma oportunidade, mas prefiro não os nomear, para não ser injusto. No ano passado, conheci o Albano Jerónimo, um ator espetacular, que acabou por participar numa temporada da série ‘Vikings’. Este ano, encontrei novos talentos e espero que apareçam papéis para eles.”

De manhã, Debbie McWilliams e Frank Moiselle fizeram audições. À tarde, estiveram a dar uma palestra no auditório da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Ela já trabalhou com os realizadores Derek Jarman, Roman Polanski, Sam Mendes, entre muitos outros, e é conhecida por ter escolhido atores para 13 filmes de James Bond. Ele está mais ligado à televisão, trabalhou na série “Os Tudors”, mas também já escolheu atores para Neil Jordan ou Joel Schumacher.

Debbie McWilliams acredita que o audiovisual anglo-saxónico “está a tornar-se mais internacional e a abrir-se à diversidade”, sendo disso exemplo a série americana “Guerra dos Tronos”, rodada em vários países europeus e com um elenco de diferentes nacionalidades. “Penso que o público gosta disso”, opinou, logo acrescentando que os atores portugueses devem aproveitar a oportunidade.

“Sinto que Portugal é um pouco fechado e precisa de alguém que abra as portas. Se não fosse no contexto do Passaporte, nunca viríamos aqui, por nós mesmos, conhecer atores. Vamos a festivais de cinema em todo o mundo, mas nunca nos lembraríamos de vir a Portugal”, disse Debbie McWilliams.

“Há aqui muito atores talentosos, que os portugueses provavelmente conhecem, mas o mundo anglo-saxónico não. Não é culpa de ninguém, as coisas são como são”, rematou Frank Moiselle.

Frank Moiselle e Debbie McWilliams defendem que os atores portugueses precisam de se mostrar mais no mundo anglo-saxónico

Além deles, muitos outros diretores de casting estão em Lisboa. O italiano Francesco Vedovati (“Eu Sou o Amor”, de Luca Guadagnino), a francesa Juliette Ménager (“Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci), a espanhola Camilla Valentine Isola (“Os Fantasmas de Goya”, de Milos Forman), o mexicano Manuel Teil (“E a Tua Mãe Também”, de Alfonso Cuarón) ou a americana Julie Schubert (“O Diabo Veste Prada”, de David Frankel).

Patrícia Vasconcelos conheceu a maioria deles ao longo dos anos, sobretudo através do International Casting Directors’ Network, um grupo que se encontra uma vez por ano no Festival de Berlim durante o programa Shooting Stars, de promoção de jovens talentos.

“Escolhi-os com dois critérios: terem a abertura de incluir um ator português nas produções deles, independentemente de estarem a pensar na nacionalidade, sem ter de ser com a etiqueta ‘ator português’, e serem pessoas porreiras, que vêm com espírito de diversão”, explicou Patrícia Vasconcelos.

Quantos aos atores portugueses, 30 no total, participam na condição de associados da Academia Portuguesa de Cinema e foram escolhidos por um comité de quatro pessoas: a produtora Carmo Moser; o realizador João Cayatte; o presidente da APC, Paulo Trancoso; e a própria Patrícia Vasconcelos.

Conhecimento e memória

Candidataram-se através de uma plataforma “online” e tiveram de apresentar o currículo em inglês, várias fotografias, um “showreel”, que é uma compilação de cenas, com três a cinco minutos de duração, e ainda uma “self-tape”, ou seja, um casting filmado pelos próprios.

Os que ficaram são quase todos conhecidos do grande público: Ana Brito e Cunha, Ana Padrão, Diogo Infante, Diogo Morgado, Inês Castel-Branco, João Villas Boas, José Fidalgo, Miguel Borges, Pedro Lima, Soraia Chaves, muitos outros.

Ivo Canelas já tem participado em audições em Nova Iorque e Los Angeles, mas “nunca tinha feito um encontro destes na vida”. “Penso que o mais importante aqui é conhecermo-nos mutuamente, o resultado imediato, e bom, será ficar na memória dos diretores de casting, não ser apenas uma cara que eles viram algures, e esperar que me chamem para um papel daqui a um mês, daqui a 10 anos, ou até nunca.”

Nuno Lopes passou por lá na quinta e na sexta e descreveu a experiência como “uma hipótese de conhecer e falar”. “Eles perguntam sobre o percurso profissional, o tipo de trabalhos que estou interessado em fazer, se quero trabalhar fora ou não. Foi quase uma conversa de café sobre a profissão. Acho que a iniciativa é incrível, não venho à espera de arranjar trabalho, mas há sempre alguma coisa que fica na memória deles.”

Maria D’Aires, também presente na sexta-feira, vê no Passaporte um forma de aprendizagem. “Contactar com estas pessoas é como ver as aves migratórias. Quando os flamingos ou as andorinhas chegam, pensamos: ‘Esta já esteve tão longe e agora está outra vez aqui comigo’. É uma sensação de proximidade, uma forma de evoluir profissionalmente”, explicou, à saída das audições.

Patrícia Vasconcelos acredita que a iniciativa vai continuar nos próximos anos, assim consiga angariar apoios. “Que repercussões isto pode ter ao nível da internacionalização do cinema português, não sei. Estou a fazer a minha parte no que diz respeito à relação entre atores e diretores de casting”, referiu.

“A importância de um diretor de casting depende da relação que se tem com o realizador de cinema, ou com produtor de televisão, que decide mais do que o realizador de televisão. À partida, quando um diretor de casting é contratado é porque o produtor ou o realizador gostam da visão que ele tem dos atores, da paleta de cores que nós propomos.”

Quando, no fim, lhe perguntámos o que ganha com esta iniciativa, Patrícia Vasconcelos agradeceu a pergunta e respondeu como quem esperava há muito que lha fizessem. “O que me motiva não é o que ganho com isto ou com aquilo. O que me move é amar a minha profissão e ter um fascínio por atores. Adorava que o talento enorme destas pessoas pudesse ir além-fronteiras.”