Os 243 milhões de euros com que os fundadores da Yupido constituíram a empresa que hoje vale 28,8 mil milhões não foram entregues em dinheiro. O capital social diz respeito a um bem cuja descrição em nada se assemelha à “plataforma digital inovadora” que foi alvo de uma avaliação seis meses depois. Tratava-se de um “software de gestão para empresas, que funciona em multi-plataforma e é disponibilizado como um serviço SaaS“.

A informação consta no relatório do revisor oficial de contas (ROC) que avaliou esse primeiro software em julho de 2015: José Alves da Silva, o mesmo ROC que seis meses mais tarde assinaria o relatório que validava o primeiro aumento de capital (também em espécie) de 28,5 mil milhões de euros e que faria da Yupido a empresa portuguesa com maior capital social, equivalente a duas vezes a Galp. Em seis meses, e sempre por via dos ativos intangíveis, o valor da empresa multiplicou mais de cem vezes.

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Perante os dois documentos, Alves da Silva confirmou ao Observador que foi o responsável pelas duas avaliações e afirmou que se tratava da mesma tecnologia, apesar das diferenças nas descrições. O ROC sublinhou o compromisso de sigilo profissional que tinha assumido com os fundadores da empresa, motivo que poderá estar na base da escolha do mesmo avaliador.

“Não houve uma mudança completa, isto é a mesma coisa, uma única peça. Quando se constituiu a sociedade, avaliei a plataforma e, depois, a outra deu continuidade a essa. Não achei estranho fazerem este aumento de capital, antes pelo contrário: justifica-se bem”, esclareceu.

As diferenças entre os bens que mereceram a avaliação do ROC são evidentes. Em julho de 2015, o ROC teve de avaliar um “software que inclui os modelos necessários para qualquer empresa operar, organizar e executar o seu negócio, como gestão de clientes, de operações, de vendas, de compras, entre outros“. Não há nenhuma referência à “plataforma digital inovadora de armazenamento, proteção, distribuição e divulgação de todo o tipo de media, que se destaca pelos algoritmos que a constituem”, que se lê no relatório do aumento de capital de janeiro de 2016.

Alves da Silva explica ao Observador: “Isto tem a ver com a tecnologia inovadora que está a ser propagada por todo o mundo e é natural que os administradores e proprietários mentais desse sistema descubram, de uma semana para a outra, que podiam levar a plataforma digital a outros valores“, disse.

Avaliador da Yupido diz que viu a “televisão revolucionária”. E lembrou-se de Steve Jobs

Mas houve dinheiro envolvido na constituição da empresa? Sim, 35 mil euros

O capital social inicial da Yupido foi constituído através de um bem intangível que valia 243 milhões de euros — mas, para lançarem a empresa, os fundadores entraram com dinheiro. Cláudia Alves avançou com 10 mil euros em dinheiro, Torcato Jorge com outros 10 mil e Filipe Besugo com 15 mil. A empresa foi constituída com 35 mil euros efetivos.

Para o capital social em espécie, Cláudia Alves entrou com um ativo intangível (ou parte) avaliado em 172,423 milhões de euros, o que fez dela a sócia maioritária da empresa (70,86%); Torcato Jorge entrou com um bem avaliado em 70,78 milhões de euros e ficou com 29,13% da empresa. Filipe Besugo, que colocou a maior fatia de capital monetário não era, nesta fase, titular de nenhum direito sobre o software em causa.

No primeiro relatório assinado pelo ROC — que tem mais de 50 anos de carreira, é consultor da sociedade de advogados Rogério Fernandes Ferreira & Associados e reconhecido pelos seus pares como um dos profissionais mais respeitados da área –, lê-se que Alves da Silva recorreu à metodologia dos cash-flows descontados:

“Tal valor foi calculado descontando para o montante presente, à taxa de 9%, a libertação de fundos expectável na venda e manutenção do software e das despesas inerentes e com ele relacionadas, ao longo de um período estimado de 10 anos.” Mais abaixo, constata-se que foram ainda previstas “no quarto e no oitavo ano quebras de 20% nas vendas”.

Alves da Silva esclareceu ao Observador que fez a avaliação da empresa sem recorrer a especialistas em tecnologia, mas que teve a ajuda de um profissional de alta matemática, para fazer os cálculos que colocaram o capital social da Yupido em 28,8 mil milhões de euros. “O único técnico que contactei e com quem trabalhei em conjunto foi para os cálculos matemáticos e é da minha inteira confiança”, afirmou, sem revelar a identidade do especialista.

O valor a que o ROC chegou teve em conta o mercado nacional, mas não inclui a internacionalização prevista para o software de gestão de empresas, que começará no Reino Unido, Espanha e França, e estender-se-á a 35 países. “O potencial de valorização do referido software ascende a cerca de 6,5 mil milhões de euros“, lê-se no relatório assinado pelo ROC em julho de 2015.

O Observador pediu esclarecimentos à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas sobre este processo, mas até à hora a que este artigo foi publicado não obteve resposta.

O que diz o ROC no relatório do aumento de capital, seis meses depois

Seis meses depois da constituição da Yupido, Alves da Silva validou um aumento de capital de 28,5 mil milhões que descreve um bem intangível que nada parece ter a ver com a descrição inicial. Em janeiro de 2016, escreve que o ativo é uma plataforma digital inovadora, “que visa responder às crescentes necessidades do mercado relativas ao consumo de conteúdos media”, lê-se no documento.

relatório Yupido

Excerto do relatório do aumento de capital da Yupido

Ao Observador, Alves da Silva afirmou que se tratava de uma “televisão” que vai “revolucionar o sistema” e que se lembrou de Steve Jobs, fundador da Apple, quando a viu. “Não sou nenhum técnico especializado, mas fiquei maravilhado”, afirmou. No relatório, lê-se efetivamente que o ativo se centra numa televisão que está a sofrer um “processo de alteração, passando da tecnologia HD (1920x1080p) para ultra HD ou 4k (3840x2160p), que provoca um aumento médio de consumo de tráfego da internet na ordem dos 150% e que a tendência no aumento da resolução está a crescer com a comercialização de TV’s com 6k e filmes a 360 graus”.


Para chegar aos 28,8 mil milhões de capital social, Alves da Silva considerou “o valor global do mercado de entretenimento, cuja média é de 1,93 triliões de dólares norte-americanos, continuando tal mercado em crescimento constante para os anos vindouros, esperando-se um crescimento a uma taxa média de 22%, prevendo-se que o mercado atinja em 2019 2,36 triliões de dólares norte-americanos“.

Este aumento dá-se com um ativo (ou parte) de 19,9 mil milhões entregue por Cláudia Alves, com outro (ou parte) entregue por 8,31 mil milhões entregue por Torcato Jorge e 275,9 milhões entregues por Filipe Besugo. A metodologia utilizada foi a mesma da primeira avaliação.

“Foi possível encontrar um valor para tal ativo que foi fixado em 28.524.864.970. Tal valor foi calculado descontando para o momento presente a libertação de fundos expectável na venda e manutenção do software e das despesas inerentes e com ele relacionadas, ao longo de um período estimado de 10 anos, em quatro mercados considerados relevantes: Europa, América do Norte, Ásia e América do Sul”, lê-se no relatório.

Ao Eco, Francisco Mendes, porta-voz da empresa, disse que a tecnologia já tinha passado da fase de protótipo. “Já temos praticamente a plataforma a funcionar, pelo menos uma das plataformas. Temos outra que também está a funcionar”, garantindo que estas plataformas não fazem parte das duas marcas que foram registadas pela mesma empresa (a Quaquado e a Kuaboca). Francisco Mendes disse ainda que a empresa estava a trabalhar no desenvolvimento de 42 patentes.

O Observador tentou saber o motivo que levou à alteração da descrição do bem, que motivou o aumento de capital, junto de Francisco Mendes, mas até à hora de publicação deste artigo não obteve resposta.

243 milhões de capital social não são os 243 milhões dos depósitos bancários

No relatório e contas de 2016 da Yupido, que o Observador consultou, não existe margem para dúvidas: há 243.297.235,42 euros da empresa em depósitos bancários.

Contas de 2016 da Yupido

Quando começaram a surgir os primeiros documentos da Yupido, pensou-se que estes 243 milhões poderiam equivaler ao capital social inicial, mas quando o Observador consultou o relatório do ROC percebeu que o valor inicial da empresa era em espécie e não em dinheiro. O Observador tem estado a tentar contactar o contabilista da empresa, mas sem sucesso.

O Observador também já tinha apurado que o ROC responsável por auditar as contas da Yupido, José Rito, não tinha emitido o relatório opinativo habitual às contas anuais, porque não estava satisfeito com a informação que foi dada para justificar o aumento de capital da empresa. Nas contas, lê-se, contudo, que foi emitida uma certificação legal e que esta se apresentava “sem reservas e sem ênfases”. Mas a tal certificação não se encontra anexada ao relatório anual da empresa.

O Observador tentou contactar novamente o auditor na segunda-feira, mas também sem sucesso. Entretanto, face à notícia avançada pelo Expresso de que a Polícia Judiciária já estaria “a analisar” o caso da Yupido , Francisco Mendes disse ao Eco que os fundadores tinham comunicado a PJ para esclarecerem este assunto.

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“Enviámos um email e vamos enviar também uma carta registada, a disponibilizarmo-nos para esclarecer qualquer assunto que a PJ possa ter. Para nós, também é fundamental esclarecer que não temos rigorosamente nada com que nos preocupar, porque foi tudo feito dentro da regularidade e não cometemos nenhum crime”, referiu ao Eco.

ROC sobre fundadores: “Não os conhecia de lado nenhum”

O código das sociedades comerciais define as regras e impedimentos que um ROC deve seguir quando faz uma avaliação de ativos em espécie para efeitos de constituição ou aumento de capital social. O ROC que elabora um relatório de avaliação não pode, durante dois anos contados da data do registo do contrato da sociedade, exercer quaisquer cargos ou funções profissionais nessa empresa ou em sociedades por ela participadas.

Ao Observador, José Alves da Silva disse que tinham sido os fundadores da empresa a entrar em contacto consigo, para que fizesse a avaliação dos bens. “Foram eles que entraram em contacto comigo, não os conhecia de lado nenhum”, afirmou.

Apesar de ter sido o responsável pelos dois relatórios de avaliação de ativos que fizeram da Yupido um fenómeno empresarial e mediático nos últimos dias, o ROC José António Alves da Silva não tem, de facto, qualquer ligação à sociedade enquanto acionista ou titular de órgão social, sendo que a empresa indicou para seu fiscal um outro ROC, José Rito.

Para fundamentar a avaliação, o relatório do ROC deve, segundo o código das sociedades comerciais, descrever os bens e fazer a sua avaliação, indicando os critérios utilizados, o que é feito nos dois documentos assinados por Alves da Silva. A valorização extraordinária dos ativos intangíveis, que tornou possível o aumento de capital, acontece contudo sem que a empresa — pelo menos a avaliar pelo relatório e contas de 2016 — tenha realizado qualquer venda ou fechado contrato com algum cliente.

Ou seja, tudo indica que não tinha sido feito um teste efetivo de mercado à tecnologia e às plataformas digitais. Fontes fiscais contactadas pelo Observador assinalam que um dos critérios mais importantes para dar um valor aos futuros gigantes da Internet é a sua capacidade para chegar aos clientes.

A avaliar pelas contas simplificadas depositadas no registo empresarial, a Yupido não teria sequer funcionários no ano passado. O relatório, consultado pelo Observador, aponta para prejuízos de 21.570 euros e depósitos à ordem em bancos no valor de 243 milhões. Não há registo de pagamentos a funcionários ou a sócios. Não há vendas.

A dimensão multimilionária dos valores e as perguntas que ainda não encontraram resposta suscitaram dúvidas nas autoridades, que já estão a fazer averiguações ao caso misterioso daquela que é a empresa com maior capital social em Portugal.