A pergunta “E se…?” não é nova na vida de Paul Auster. Já em 2008 o escritor fazia o exercício aplicado à política: “Num outro mundo, Al Gore está agora a terminar o seu segundo mandato, nós nunca invadimos o Iraque e talvez o 11 de Setembro nunca tenha acontecido”, dizia à altura ao jornal “The Guardian” a propósito da polémica eleição de George W. Bush como Presidente dos Estados Unidos, por uma curta margem de 537 votos no estado decisivo da Flórida.
O exercício agora é antes literário, já que a expressão “E se…?” tem sido várias vezes apontada como ideia central do seu mais recente livro, 4 3 2 1 (Edições ASA). O romance, de 860 páginas, é apresentado pelo próprio autor como sendo “quatro livros dentro de um só”. São quatro histórias paralelas a partir da mesma personagem, Archibald Isaac Ferguson, e das quatro vidas que este poderia ter tido consoante os eventos de vida que vai enfrentando. “Nascemos quem nascemos. Mas a mesma pessoa, nascida em circunstâncias diferentes, torna-se uma pessoa diferente”, resume o escritor num encontro com um grupo de jornalistas onde o Observador esteve presente, a propósito da sua participação no FIC — Festival Internacional de Cultura, em Cascais.
Paul Auster está cansado. Anda há um mês a viajar por vários países da Europa e certamente anseia por chegar ao seu apartamento em Brooklyn e voltar ao dia-a-dia habitual: acordar cedo, tomar o pequeno-almoço (“sumo de laranja, café e uma torrada”) e sentar-se a escrever durante horas. “É um trabalho das 9 às 5”, admite Auster, sem reservas. Neste ponto, a conversa aproximava-se já do final e o autor, mais relaxado depois de ter dados alguns bafos no seu cigarro eletrónico, confessava aos jornalistas o prazer das rotinas domésticas com a mulher, a também escritora Siri Hustvedt: “Quando o dia termina, estamos exaustos. Só queremos deitar-nos no sofá a ver filmes antigos, dos anos 30 e 40, no TMC”, conta, referindo-se ao canal de televisão que só passa filmes antigos de Hollywood, e alongando-se com gosto a analisar “a energia” dos atores da época de transição dos filmes mudos para sonoros.
Mas antes disso há ainda várias perguntas a que Paul Auster tem de responder. E, como seria de esperar numa entrevista a um escritor norte-americano, muitas giraram à volta de um único nome: Donald Trump, um homem que o autor classifica de “zangado”, “instável” e “perigoso”. “Não sei como um homem assim consegue viver consigo próprio, a não ser que não tenha consciência”, diz, referindo-se às “mentiras constantes que saem da sua boca”. Que Paul Auster não gosta de Donald Trump, não é novidade nenhuma. Tem-lo dito alto e bom som nas várias entrevistas que deu desde a sua eleição e não é também segredo que a sua mulher e a filha, a cantora Sophie Auster, participaram na Women’s March, a grande manifestação em Washington no dia a seguir à tomada de posse do novo Presidente. E, tendo em conta que Paul Auster vive em Nova Iorque e se movimenta nos círculos da elite cultural do país, também não é de admirar que (como o próprio confessa) não conheça ninguém que tenha votado em Trump. “Contudo, alguém o fez”, admite.
“Os americanos sempre tiveram muita fé nas suas instituições, como se estas fossem edifícios de granito. Mas se Trump e o seu gang fizerem aquilo que prometeram — que é atirar um laço à volta destes edifícios — descobriremos muito rapidamente que eles afinal são feitos de sabonete”, analisa o escritor.
“Este governo é tão incrível… A Agência de Proteção Ambiental é agora liderada por um tipo que não acredita no aquecimento global. A secretária da Educação não acredita nas escolas públicas. Eles estão todos a tentar minar os seus próprios cargos, querem pulverizar o país.”
Auster admite, no entanto, que os problemas dos Estados Unidos já vêm de trás: “Este grande país foi fundado sobre dois pecados: a exterminação dos índios e a escravatura. E nunca confrontámos nenhum deles.” O racismo resultante desses pecados é, crê, “a grande questão nos EUA”, razão pela qual diz ter abordado várias vezes as relações entre brancos e negros em “4321” — como quando uma rapariga rejeita “o Ferguson número 1” por ser negra e ele branco.
“Consigo imaginar os filmes como os conhecemos a desaparecer. Agora os livros? Não”
“A arte é inútil, pelo menos quando comparada com o trabalho de um canalizador, um médico ou um maquinista, mas o que é que a inutilidade tem de mal?”, perguntou Paul Auster no discurso de aceitação do Prémio Príncipe das Astúrias de 2006. Agora, mais de dez anos passados e quando confrontado com essa questão, o escritor parece ter encontrado mais utilidade na sua arte.
É certo que escrever implica “passar a vida trancado num quarto”. (No seu caso, segundo estimou um entrevistador com quem falou em Malmö, terá sido o equivalente a cerca de 20 anos — uma matemática que parece ter agradado ao autor, que conta o episódio, fascinado.) Mas, “as histórias são uma ótima maneira de confrontarmos os nossos medos e angústias num local seguro”, analisa Auster, “Consigo imaginar os filmes como os conhecemos a desaparecer. Agora os livros? Não. Precisamos todos de histórias. Alguma vez conheceu uma criança que não gostasse que lhe contassem histórias?”, pergunta.
No caso de Auster, essas histórias têm girado muitas vezes à volta de temas como a sorte, o acaso, as coincidências. Ou será que não? “Nunca percebi essa coisa que dizem sobre mim”, atira, abanando a cabeça em sinal de negação. “O que me preocupa não é a sorte, é o inesperado. E isso acontece com muita regularidade: um dia acordamos, temos planos para esse dia e depois ao atravessarmos a rua somos atropelados e partimos a perna. É o mecanismo da realidade. Não acredito no destino, no fado ou na divina providência. As coisas simplesmente acontecem”, resume. Mas essa visão desapaixonada não cola sempre com o seu discurso — que, para alguns, chega por vezes a roçar “o místico”.
A análise tão crua a esse “mecanismo da realidade” é fruto de um acidente que o marcou aos 14 anos, tanto que o incluiu em 4 3 2 1. Trata-se do dia em que viu um amigo morrer à sua frente, atingido por um raio. Mais do que o momento em que descobriu que a sua avó tinha assassinado o seu avô (aos 23 anos), ou de que a morte súbita do seu pai (aos 20), foi aquele episódio no pico da adolescência que moldou o escritor. “Não sabia que a vida podia mudar tão de repente, por acaso”, resume. E, para quem gosta tão pouco que digam que escreve sobre “a sorte”, foi essa mesma palavra que usou — “chance”, no original.
Quer lhe chamemos “a sorte” ou “o inesperado”, o certo é que esse “mecanismo da realidade” é a matéria com que Auster trabalha e é aquilo que mais parece fasciná-lo. A falta de certezas com que aprendeu a conviver deu-lhe lições para a vida, que aplica a qualquer área: “Trump pode morrer amanhã, vítima de ataque cardíaco. Ou então pode ser Presidente durante oito anos.” No fundo, seja na política, na literatura ou na vida, para Paul Auster muito se resume a uma pergunta: “E se…?” E, depois de pensar tanto sobre isso, o melhor é mesmo ir ver alguns filmes antigos para desanuviar.