Chega de sofrimento. Suportar 120 minutos sentado no Monumental, no estádio do River Plate, o do inimigo, já era mau. No relvado, ali à frente, afinal, estava a seleção, a albiceleste, a jogar uma final do Mundial, a primeira a que conseguira chegar. Valia a pena aguentar. E a 25 de junho de 1978, Víctor Nicolás Dell’Aquila, amante do Boca Juniors, conseguiu-o. Ou quase. Faltou-lhe um minuto.
Restavam 60 segundos para o árbitro acabar com tudo. Em Buenos Aires, o estádio fervilhava. Eram mais de 71 mil pessoas no Monumental, a maioria argentinos, irrequietos com tanta ansiedade. “Estava decidido a entrar na cancha [o argentinês para relvado] e não ia parar por nada”, garantiu Víctor, anos mais tarde, a transbordar da mesma certeza que o encheu naquele dia. Tinha 22 anos.
A primeira barreira ainda o obrigou a andar. “O estádio do River tem um fosso a rodear o campo, menos atrás das balizas. Por isso arranjei maneira de lá chegar”, contou, empurrado pelo entusiasmo que as circunstâncias lhe davam. Era a final do Mundial de 1978 e, duas horas de futebol depois, a Argentina, seleção de um país ainda mergulhado em ditadura, estava prestes a livrar-se dos holandeses. Mario Kempes, o avançado, com dois golos no 3-1 que faz o resultado da final, tinha-se certificado – marca seis golos em todo o Mundial – de que a noite acabava em alegria para o país.
O jogo dava as últimas e a felicidade tomava conta de Víctor Dell’Aquila. Estava prestes a entrar em campo. “Quando vi o árbitro a fazer um gesto, saltei logo para a pista de atletismo”, lembrou ao Olé. O problema é que, “na verdade, ainda faltava um minuto” por jogar. Ao início, Víctor até ficou quieto. “Havia cães e polícia por todo o lado, ainda me comiam”, justificou. Mas depois fartou-se da companhia. “Caminhei lentamente até chegar à baliza de Filiol”, o guarda-redes argentino, prosseguiu, onde ficou “ao lado de um dos postes”. Foi lá que assistiu ao último minuto do encontro.
O abraço que não se chegou a dar
Até que o árbitro apita. A final acaba. Era o sinal de partida que precisava. Ele e centenas de outros argentinos começam a invadir o relvado. Mas Víctor tinha um alvo: “Porquê Tarantini? Era o único jogador do Boca.” E lá foi ele. Entra disparado em campo e, como já estava atrás da baliza argentina, foi rápido a chegar perto de dois jogadores. O tal Alberto Tarantini e Ulbaldo Filiol.
Ambos estavam ajoelhados, no relvado. Trocavam um abraço, o da vitória, o da alegria, o de tudo. Quando lá chega, Víctor Dell’Aquila fica a centímetros dos jogadores. “Vi-os ali tão perto, estavam a trocar um abraço, por isso fiquei ali parado”, explicou. O adepto quer juntar-se, mas não pode – Víctor não tinha nem tem braços. Por segundos fica quieto, a olhar, ligeiramente inclinado para a frente, fazendo com que “as mangas da [sua] camisola” caíssem “um pouco”.
EL ABRAZO DEL ALMA: Millones luchando por un sueño. Por ver la celeste y blanca triunfar en Brasil. #VamosArgentina pic.twitter.com/IOUVvPp1kt
— Pasión Futbolera (@PasionFulbo) May 18, 2014
Era o momento. O tal em que “Ricardo Alfieri disparou a câmara”, resume Víctor, ao falar do fotógrafo, um de muitos que estavam no estádio, mas o único a reparar no que estava a acontecer. Quando se apercebe do tal abraço, Alfieri saca a câmara, aponta e carrega oito vezes no botão. Dois dias depois, a 27 de junho, uma das oito fotografias que capta é publicada na revista El Gráfico. Na legenda, chamam-lhe apenas “El abrazo del alma”.
Não foi à capa. A imagem, porém, perdurou como a principal memória do Mundial de 1978. “Partilhei aquele momento histórico com eles [Tarantini e Filiol]. Abraçámo-nos os três”, garantiu Víctor, ao La Nación. Trinta e seis anos depois, abraçar-se-iam mesmo. Por vontade da Coca-cola, os três reuniram-se de novo, num relvado, e juntaram os protagonistas para difundir a história num anúncio publicitário.
https://www.youtube.com/watch?v=o7jSep42Luk
A escalada que lhe custou os braços
Nesse campeonato do mundo, Víctor Nicolás Dell’Aquila tinha 22 anos. Os braços perdera-os à beira da adolescência, três dias após completar 12 anos de idade. “Que lindo presente que dei à minha família”, brincou, em declarações ao Olé, quando recordou os tempos em que “era um amante das alturas” e decidiu trepar a um poste de alta tensão. Acabou eletrocutado, caiu de uma altura de 15 metros e, quando chegou ao hospital, a única solução possível amputou-lhe os dois braços. “Por que hei-de viver assim?”, chegou a perguntar a um médico, que lhe respondeu: “Tens que devolver a vida à tua mãe.”
A resposta, assegurou Víctor ao La Nación, deu-lhe a “melhor ajuda psicológica”. Depois apareceu outra, com o futebol. “Ajudou-me a ultrapassar o problema. Todos os domingos tenho que estar em contacto com ele”, defende, ao indicar o dia em que sai de casa e só para no La Bombonera, estádio do Boca Juniors, o seu clube. Houve um dia diferente, o tal 25 de junho de 1978. Talvez o único em que compensou viajar até ao estádio do rival.