Morreu aos 77 anos, mantendo sempre a mesma vontade de não ficar quieto, de não conseguir ficar quieto. Nos últimos foi sobretudo o produtor de exceção, a figura imponente em estúdio, que levava cantores a músicos até lugares criativos e interpretativos que não julgavam existir. Mas tudo isto surgia com história, uma história que José Mário Branco fez como cantor e compositor, sobretudo entre os anos 60 e início da década de 80.

Cantor de intervenção? Naturalmente. Mas escultor de canções para dar corpo às vontades e ideologias de um homem que nunca separou a canção do dia-a-dia, mesmo que em alguns dias a música não lhe batesse à porta (e sem vontade o homem não se dedicava às canções, outros tempos viriam com mais inspiração).

Recordar José Mário Branco é ouvi-lo, inevitavelmente. E numa seleção possível, uma das muitas possíveis. Esta é uma proposta com 13 temas, mas quem quiser que faça a sua, que será sempre uma escolha acertada.

Morreu José Mário Branco, um dos nomes maiores da música portuguesa, da canção de abril ao fado

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“Ronda do Soldadinho”

1969

Single editado em 1969, que juntava de forma soberba a sensibilidade de José Mário Branco para o valor da canção enquanto objeto plástico e intemporal e a capacidade que a cantiga tinha para transmitir uma mensagem, neste caso obviamente dedicada à Guerra Colonial, aos homens que no então Ultramar lutavam, mostrando toda oposição do homem e do artista face ao conflito. Uma espécie de lenga-lenga, de canção de embalar para adultos, levantando bem alto a bandeira do protesto e da confiança na mudança que tinha de acontecer.

“Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”

1971

Clássico absoluto, o poema de Camões na voz e com os arranjos de José Mário Branco. A capacidade rara do compositor e cantor de encaixar palavras num sentido rítmico que poucos conseguiram absorver e transformar e em música. Uma espécie de marcha repleta de simbologia: o pegar num texto antigo e atribuir-lhe não só contemporaneidade (que ainda hoje permanece intacta) e dar-lhe mesmo um sentido de visão futura, de ambição para o que se avizinhava inevitável: a mudança, política e social acima de tudo, mas que pode ser sempre vista como humana, que pode ser adaptada de forma pessoal por quem quer que o ouça. Foi o tema que deu o título ao álbum histórico de 1971.

“Queixa das Almas Jovens Censuradas”

1971

Outra das canções que formou o álbum Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades, exemplo enorme do dramatismo sem pinga de encenação que formava a vontade interpretativa de José Mário Branco, homem para quem era impossível fazer distinção entre o artista e qualquer outra coisa, porque nenhuma face do músico existia sem todas as outras. O poema é de Natália Correia, o artesão musical é o do costume e mesmo vários anos depois da gravação inicial, como o vídeo acima mostra, a entrega e a a esperança por algo que ainda estava por acontecer eram uma constante na voz e na respiração do José Mário Branco, que eram a prova de uma entrega total.

“Casa Comigo Marta”

1971

Coloquemo-nos no Portugal de 1971, a dar de caras com o início de “Casa Comigo Marta”, com aquelas teclas vindas sabe-se lá de onde, aparentemente fora do contexto mas, ao mesmo tempo, a encaixar na perfeição. É uma carta de amor sem romantismo, o homem que quer a mulher que não o deseja, o homem que dá tudo mas que não tem o que é preciso, a relação masculino-feminino feita de lugares comuns, trabalhada aqui num jogo de palavras minucioso. Mais um resultada da parceria valiosa que foi assinada entre José Mário Branco e Sérgio Godinho.

“Engrenagem”

1972

Depois de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, outra gravação de referência. “Engrenagem” é só um dos exemplos que mostra porquê. Para José Mário Branco, tudo era possível. E foi possível fazer uma canção que leva a indústria ao desejo de revolução, a manipulação do som ao serviço da mensagem, a vontade de deixar de fazer parte de uma máquina que não faz mais do que moer e corroer, mas usando a própria maquinaria como suporte sonoro. José Mário Branco como arranjador de exceção, o artista plástico sonoro a quebrar barreiras como podia — ou como ate aparentemente não seria possível.

“Eh! Companheiro”

1972

Como poucos, José Mário Branco fazia do cantar de peito cheio uma proeza assinalável. Fosse na gravação de um disco, fosse muitos anos depois em palco, cantava como quem precisava de gritar com urgência, como quem marchava passos feitos de convicção. Ideologias à parte, concorde-se ou não, é inegável que essa postura transformava as canções em momentos palpáveis, mais do que simples registos de um episódio em estúdio. Como se fosse sempre possível imaginar José Mário Branco a cantar “Eh Companheiro” em qualquer momento, em diferentes acontecimentos, por razões distintas.

“Aqui Dentro de Casa”

1972

Se lhe dermos ouvidos com atenção, “Aqui Dentro de Casa” é uma canção pop. Estrutura definida, partes distintas, bem ligadas com açúcar que chegue para a tornar imediata, a pedir que decoremos melodia e letra, a deixar que tenhamos o atrevimento de dizer que quando se ouve “Mariazinha fui, em Marta me tornei / Vou daquilo que fui pr’aquilo que serei” também se ouvem as cordas que já ouvimos antes em canções dos Beatles. Vale o que vale e cada um escuta como escuta. Outra das magias da composição de José Mário Branco: tinha toda a atitude do mundo para fazer as canções que queria, como queria, sem dúvidas, mas aqui e ali deixava portas abertas para que a interpretação dos outros fosse livre. Não podia ser de outra maneira.

“A Cantiga É Uma Arma”

1975

Uma canção que é uma frase, uma frase que é uma canção. As duas confundem-se e hoje há mesmo quem use estas palavras juntas como se assim tivessem sido criadas. O mais conhecida das gravações feita pelo GAC — Grupo de Acção Cultural, coletivo de punho no ar, sem tretas, sem vergonhas e sem querer esconder fosse o que fosse, muito menos uma atitude política.

“As Canseiras Desta Vida”

1978

A subtileza de José Mário Branco fazia parte da garra com que escrevia e cantava. Parece contraditório, mas não, longe disso, era antes complementar. Cantar sem levantar poeira para poder ser ouvido e entendido. Gritar as palavras baixinho, enrolar quem ouve numa onde sonora da qual e muito difícil fugir. Daquelas coisas: não bastava querer trabalhar assim, era preciso saber.

“Inquietação”

1982

Provavelmente uma das canções mais populares de José Mário Branco, uma das que mais inspira cantorias domésticas e versões gravadas por músicos profissionais. Também uma das mais intemporais, pedida empretada por quem quer que sinta a palavra que lhe dá título, seja qual for a razão. A “Inquietação” se escuta na letra está também na música, de passo marcado, nervosa mas sem explodir, ansiosa mas de alguma forma controlada. Uma “Inquietação” que não desaparece, assinada precisamente por quem tem certeza que nunca vai deixar de estar inquieto, porque “há sempre qualquer cosia que está para acontecer”.

“FMI”

1982

Mais de 20 minutos de intensidade ideológica, sem tretas, num ritmo avassalador, uma torrente de palavras nervosas. “FMI” é feita de ironia e de susto, José Mário Branco é aqui um mensageiro, um crítico, um olheiro, um relatador de uma realidade imaginadas mas pouco. Cada um por si num “ritmo de pop-xula”, a política, a economia, a vida doméstica, a participação democrática, a família, o pai, o filho, a dúvida, a certeza duvidosa, cabe tudo num verdadeiro épico de um lado inteiro de vinil, uma canção que não é uma canção e com a qual o próprio José Mário Branco passou a ter um relação difícil, exigindo que deixasse de ser tocada na rádio.

“Eu Vim de Longe, Eu Vou P’ra Longe”

1982

De alguma forma, José Mário Branco foi passando por gerações, deixando mais marcas, menos marcas, um legado mais ou menos forte, fruto de referências familiares, de inspiração política, de descobertas vinda dos acaso. A música nunca ficou presa no tempo, da mesma maneira que nunca ficou presa a este autor, que fazia música quando queria, podia e conseguia, quando estava de bem com a arte, quando não estava não fazia e o mundo que continuasse a girar. No meio desta — lá está — inquietação, há temas que, nem saberemos bem porquê, cantamos de cor, seja do princípio ao fim, seja no refrão, seja onde for. E a inevitável “Eu Vim de Longe, Eu Vou P’ra Longe” é uma delas.

“Eu Vi Este Povo Lutar”

1982

Em 2009 aconteceram os concertos do projeto Três Cantos, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias juntos, a recordar a obra de cada um, os três a cantar os três, e esta “Eu Vi Este Povo Lutar” fazia parte do alinhamento. Curioso ou não é ver o sentimento que de 1982 chegou a 2009 intacto. De novo, além de ideologias e atitudes políticas, a vontade que move a canção é inabalável e vê-lo a acontecer, a ganhar corpo e existência física foi um dos privilégios desses raros concertos.