Terry Gilliam começou a escrever um filme inspirado no “Don Quixote”, de Cervantes, em 1989, após ter lido o livro. A pré-produção arrancou em 1998, e Gilliam só viria a concluí-lo em 2018, após uma via sacra de desastres naturais na rodagem, mortes no elenco (Jean Rochefort e John Hurt, ambos escolhidos para serem Don Quixote), alterações de argumento e complicações financeiras e legais, que o tornaram em sinónimo de “filme maldito” no meio cinematográfico e num dos mais aziagos da história do cinema. Levou-o enfim a bom porto, quase 30 anos após ter começado a trabalhar nele, e com uma tão longa e complicada história por trás, “O Homem que Matou Don Quixote” tanto podia redundar numa obra-prima como numa catástrofe.

Afinal, nem uma coisa, nem outra. Se não consegue alçar-se aos píncaros de “Os Ladrões do Tempo” ou “Brazil: O Outro Lado do Sonho”, dois dos melhores filmes de Terry Gilliam, “O Homem que Matou Don Quixote” também não está lá no fundo com “Delírio em Las Vegas”, um dos raros títulos intragáveis do realizador. Ele situa-se algures entre ambos, mostrando as grandes qualidades de Gilliam (o gosto por personagens que querem evadir-se da realidade, e pela fantasia com um toque “nonsense”, a imaginação visual que vai beber muito ao seu passado na animação, o interesse pelo conflito entre o real e o imaginário), e moderando alguns dos seus defeitos (uma mão que por vezes foge para o desnorte narrativo e para o histrionismo estilístico).

[Veja o “trailer” de “O Homem que Matou Don Quixote”:]

“O Homem que Matou Don Quixote” é também um dos filmes menos exuberantemente “gilliamescos” em termos de elaboração fantasiosa, e um dos mais “realistas” e visualmente contidos, nos antípodas de um “A Fantástica Aventura do Barão”, apesar dos elementos alucinatórios e surreais presentes na história. Toby Grummett (Adam Driver), um outrora promissor cineasta que enveredou pela realização publicitária para ganhar dinheiro, volta à vila espanhola onde 10 anos antes rodou um filme de estudante sobre Don Quixote, para fazer um anúncio de ambiente quixotesco. E descobre que estragou a vida aos locais que entraram no seu pequeno filme. Foi o caso de Javier (Jonathan Pryce), um velho sapateiro que se convenceu que é mesmo Don Quixote.

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Após algumas peripécias, Javier mete-se estrada fora montado num cavalo e armado de lança e escudo, levando consigo Toby como seu Sancho Pança e encontrando pelo caminho Angelica (Joana Ribeiro). Ela foi a Dulcineia do filme de Toby e a seguir partiu para Madrid convencida por ele que ia tornar-se numa atriz famosa, mas acabou na prostituição de luxo e é agora a amante de um sinistro oligarca russo. Este tem negócios com o inescrupuloso patrão de Toby e alugou um castelo na região para dar uma grande festa de temática medieval durante a Semana Santa, o que vai contribuir ainda mais para o delírio de Javier como Don Quixote e para a complicação da história.

[Veja uma entrevista com Jonathan Pryce e Adam Driver:]

É óbvio que Terry Gilliam sente afinidades com a personagem de Don Quixote, e “O Homem que Matou Don Quixote” é um filme que tomou dimensões verdadeiramente quixotescas, com o realizador a tentar concretizá-lo ao longo dos anos enquanto enfrentava forças várias que o impediam de o fazer e o derrotavam temporariamente. Acabou por o conseguir com a ajuda do seu lado pragmático de Sancho Pança, de cineasta habituado a lidar com contrariedades ao longo da carreira (e não têm sido poucas).

[Veja uma cena do filme:]

Para Gilliam, Don Quixote é o arquétipo do sonhador que vê para lá da realidade, choca constantemente com ela mas tenta nunca desistir do seu sonho, mesmo que seja a loucura a dar-lhe combustível. Não é para admirar que, em vez de “desconstruir” a personagem ou de a denegrir, como agora é moda, o realizador faça o elogio de Don Quixote e do espírito imortal que o anima. E que no simbólico final, Toby/Sancho receba o testemunho de Javier e lhe suceda, levando consigo o mais improvável dos Sanchos Pança. Ao contrário do que diz o título, Don Quixote nunca morre.

Jonathan Pryce é devidamente turbulento no seu Quixote entre o patético e o heróico, e Adam Price adequado num Toby que Gilliam, avesso ao mundo da publicidade, aproveita para punir por ter desperdiçado o seu talento a fazer anúncios em vez de filmes, enquanto dá, aqui e ali, uma pincelada pythoniana na história. Quem não gosta do cinema de Terry Gilliam decerto torcerá o nariz a “O Homem que Matou Don Quixote”, mas os seus admiradores vão achar que valeu a pena esperar tanto tempo pelo filme. Mais valem Don Quixote e Sancho Pança na mão de Gilliam, do que cem super-heróis da Marvel e da DC a voar.