Já passava das 22h00 de quinta-feira quando José Baião, sentado ao volante do seu camião TIR, recebeu a informação de que a circulação no Túnel da Mancha tinha sido interrompida. José já estava quase a chegar à entrada que dá acesso à ferrovia do túnel do lado inglês, em Folkestone. As notícias da interrupção vieram com um “kit de comida”, cortesia da Eurotunnel. “Um bocado de água e mais bolachas do que outra coisa.” Enquanto isso, do outro lado do túnel, em Calais, dezenas de migrantes vindos do Médio Oriente e do Norte de África tentavam entrar para dentro de camiões de mercadorias a todo o custo. Fugidos da guerra nos seus países, queriam chegar ao Reino Unido.
Segundo a Eurotunnel, concessionária do túnel que liga o Norte de França e o Sul de Inglaterra, mais de 37 mil migrantes foram “discretamente intercetados” a tentar chegar ao lado inglês do canal. Em 2014, 15 pessoas morreram nesse processo. Só na terça-feira, estima-se que mais de 2 mil pessoas tenham tentado entrar em camiões TIR, para assim conseguirem fazer a travessia de forma clandestina. Um homem de nacionalidade sudanesa morreu esmagado pelo camião no qual tentou esconder-se. Os números não foram muito diferentes nos dias anteriores, tão pouco nos seguintes.
É um problema latente, à medida que há cada vez mais migrantes clandestinos na Europa — o verão é a altura em que mais pessoas chegam à costa do mar Mediterrâneo — e que tentam entrar no Reino Unido. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, falou num “enxame de pessoas”.
Temos enxames de pessoas a chegar do Mediterrâneo, que procuram uma vida melhor, querem vir para o Reino Unido, porque no Reino Unido há empregos, é uma economia em crescimento, é um sítio incrível para se viver. Mas nós precisamos de proteger as nossas fronteiras e de trabalhar lado a lado com os nossos vizinhos em França, e é precisamente isso que estamos a fazer.”
Mais vedações, cães e polícias
As palavras de David Cameron foram prontamente alvo de críticas. “Ele devia lembrar-se de que está a falar de pessoas e não de insetos”, disse Harriet Harman, a líder interina do Partido Trabalhista, a maior força política da oposição no Reino Unido.
Foi precisamente com estas palavras que Sérgio Moutinho, responsável pela organização e gestão dos camiões da empresa onde José Baião trabalha, a PML Transportes, começou a descrever a situação ao Observador. “É uma praga que aqui está, como diz o David Cameron.” Segundo Sérgio Moutinho, 50% das rotas da empresa passam pelo Túnel da Mancha. Outro número: por causa das interrupções na circulação, uma viagem que duraria 10 dias em condições normais precisa agora de “12 ou 13 dias”. Com isto, a empresa começa a ter “perdas entre os 50 e os 60 mil euros por mês”, assegura. “Estamos ansiosos para que haja medidas.”
Para já, Cameron anunciou o envio de cães (usados para detetar pessoas escondidas entre as mercadorias) e garantiu também que serão canalizados quase 10 milhões de euros para a construção de vedações ao longo do percurso. Na sexta-feira garantiu aos jornalistas que a situação é “inaceitável”.
“Vai ser um problema complicado ao longo do verão. Vou ter uma equipa de ministros de topo, que vão trabalhar para arranjar uma solução, e não excluímos nenhuma hipótese para agirmos contra este problema que é bastante sério”, disse o primeiro-ministro britânico. A imprensa britânica está a avançar que o governo britânico vai acelerar o processo de adoção de leis de combate ao trabalho clandestino e que vai criar parques de estacionamento para combater o congestionamento da autoestrada em Folkestone, à entrada do túnel.
Do lado francês, o Presidente François Hollande referiu que a Europa está “perante um fenómeno que não vai acabar, tendo em conta as guerras na Síria e no Iraque”. Para o chefe Estado gaulês, a França “não pode atuar sozinha”. Na mesma linha, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, sublinhou que as autoridades britânicas devem “estar à altura” da situação. Para já, a única medida conhecida do lado francês foi o envio de um reforço policial de 120 agentes para Calais.
Cameron e Hollande falaram ao telefone esta sexta-feira à noite e o telefonema foi resumido assim pelo porta-voz do número 10 de Downing Street: “Os dois líderes concordaram na necessidade de trabalhar com a Eurotunnel para monitorizar e garantir a segurança naquela área. Vão também continuar a discussão em torno da implementação de medidas adicionais que possam melhorar a situação no terreno”.
Segundo o jornal britânico The Guardian, a polícia francesa rvelou que existiu uma queda significativa do número de migrantes que tentaram chegar ao túnel para tentar a travessia utilizando os camiões e os comboios que ali circulam, mas que 300 pessoas fizeram a pé o percurso de duas horas que separa o campo conhecido como “A Selva” até à entrada do túnel. Um número bem menor do que os registados durante a semana, quando chegaram a ser dois mil.
Problema agravado pela greve nos ferries
Não foi só esta semana que migrantes clandestinos começaram a tentar fazer aquela travessia de forma clandestina. O problema é quase tão velho quanto o túnel, fundado em 1986. Em 1999, foi feito um campo de refugiados em Calais para tentar dar cobro à situação. Segundo José Baião, o facto de grande parte das travessias por ferry estarem inativas (os trabalhadores franceses da My Ferry Link estão em greve desde junho), tornam a travessia ferroviária mais congestionada do que o normal. Formam-se filas de centenas de camiões. “Os migrantes sabem disso e por isso atacam”, explica o camionista.
“Eles estão desesperados, pronto, vêm lá do país deles, têm fome, há lá guerra… Mas cada um tem de fazer por si, não é?” A espera para entrar nos comboios que atravessa o Túnel da Mancha pode ser superior a cinco horas. Durante esse tempo, José tem o cuidado de olhar em volta do seu camião, com o auxílio dos espelhos retrovisores. “Não pode entrar cá ninguém, porque se eu chego a Inglaterra com pessoas lá dentro, eu e a empresa temos de pagar montes de dinheiro por cabeça”, refere. Ainda em julho, um camionista inglês teve de pagar 400 libras (568 euros) por cada um dos cinco vietnamitas que conseguiram entrar no seu veículo.
José vive obcecado com a ideia de que alguém lhe possa entrar no camião. Entre sair de Portugal e chegar a Inglaterra, faz uma vistoria a todo o veículo. Nunca para na autoestrada que vai dar ao lado francês do túnel, “que são cerca de 200 quilómetros”, porque sabe que há migrantes ao longo desse percurso prontos a entrar nos camiões. “Nunca pernoito aí, não paro, nada.”
Além desta preocupação, José verifica sempre se alguém tentou entrar no seu camião. Tem uma checklist para o ajudar. Vê se está alguém debaixo do chassis, confirma se o teto ou o aloquete da porta não foram forçados, verifica se a lona está rasgada e repara se o cabo de aço que tem em volta da mercadoria continua intacto. Se tudo isto estiver em condições, é quase impossível que alguém entre no seu camião. Ao Observador, garante que nunca teve “esse azar”. Mas, ultimamente, não tem sido assim com todos os camionistas.
Esta situação tem sido tão comum, que seria estranho não se estar à espera que algo aconteça. De repente, enquanto os veículos esperam a sua vez, centenas de migrantes tentam entrar nos camiões. “Eles vão todos em grupos, são amigos, ajudam-se uns aos outros”, garante José, que assegura que muitas destas pessoas vivem acampadas à beira das estradas. Quando reparam que os migrantes estão a entrar na estrada, os camionistas começam a buzinar todos ao mesmo tempo, ao ponto de o barulho se tornar ensurdecedor.
José nunca falou com nenhum migrante. “Confesso que não”, diz-nos. “A gente tem receio deles, porque isto são pessoas que se calhar não têm de comer, nem nada… Eu entendo que eles se estão a fazer à vida. Mas a gente também de se defender com as armas que tem.”
Presos na “Selva” de Calais
Do lado dos migrantes, há poucas ou nenhumas armas, diz-nos Phil Jones, da associação Calais Migrant Solidarity (CMS). Este inglês radicado em Calais garante ao Observador, numa conversa por telefone, que os migrantes são vítimas de agressões policiais. “Ironicamente, nos últimos dias isso não tem acontecido tanto porque agora estão cá muitos jornalistas”, diz. “Mas é frequente baterem-lhes sem motivo para isso e também mandam gás pimenta para os sítios onde as pessoas estão acampadas.” Muitos desses casos estão reunidos num relatório da CMS que diz respeito ao período entre entre junho de 2009 e junho de 2011. “Os mesmos problemas desse ano continuam, mas agora ainda são mais, porque há cada vez mais pessoas a vir para Calais”, conta-nos.
A maior parte das pessoas que lá chegam são de “antigas colónias britânicas ou de zonas onde há conflitos neste momento”, explica Phil. Ou seja, Sudão, Síria, Eritreia, Somália, Afeganistão, entre outros. “Muitos deles são pessoas que tinham algumas posses nos seus países mas que tiveram de fugir por causa dos problemas que lá existem.” O facto de terem “algumas posses” leva a que alguns cheguem a pagar entre 3 e 4 mil euros a contrabandistas que os ajudam, com a conivência de alguns camionistas, a entrar em veículos pesados de mercadorias. “E também há aqueles que têm mais dinheiro e que chegam a pagar 10 mil euros a privados, pessoas que vão com carros normais, só para passarem com eles no túnel dentro do porta-bagagens”, garante-nos o ativista.
Ainda assim, não é por alguns terem dinheiro que a vida em Calais lhes é fácil. Antes pelo contrário. Muitos deles vão viver para um acampamento na periferia de Calais, perto do mar, conhecido como “A Selva”. As autoridades francesas estimam que lá vivam cerca de 3 mil pessoas, mas o número real pode ser ainda mais alto. “O Estado dá-lhes o mínimo necessário, o que inclui água canalizada e uma refeição por dia”, explica Phil, que indica que este campo é sujeito a uma vigilância policial constante. “Eles estão presos naquele pedaço de terra que mais se assemelha a um aterro sanitário. Até há muito pouco tempo nem sequer havia sanitas nem iluminação lá, não tinham acesso a Direitos Humanos básicos.”
Para Phil Jones, a resolução deste problema, “que está a causar uma crise humanitária cada vez maior”, seria resolvida de uma forma relativamente simples. “É preciso acabar com a xenofobia europeia, o racismo europeu deve chegar a um fim. O isolacionismo britânico é a grande causa de haver pessoas a morrer nas fronteiras.” Para isso acabar, argumenta, “é preciso abrir a fronteira de vez”. Quando lhe perguntamos se acha provável que isso venha a acontecer num futuro próximo, Phil, que está a andar na rua enquanto fala ao telefone com o Observador, lança um riso irónico e responde: “No, not really”.