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DR. A fibrose quística é uma doença rara, genética, sendo autossómica recessiva

DR. A fibrose quística é uma doença rara, genética, sendo autossómica recessiva

12 respostas para entender a doença de Constança Braddell, a jovem "entregue à morte com 24 anos" devido à fibrose quística

Constança Braddell está nos cuidados intensivos há uma semana, com fibrose quística, uma doença rara, desconhecida de muitos. Quais os sintomas? Há cura? E o medicamento de 16 mil euros pode salvá-la?

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(Este texto, inicialmente publicado a 12 de março, foi agora atualizado com a informação de que Constança Braddell está nos cuidados intensivos há uma semana com um prognóstico muito incerto). 

“Todas as noites vou dormir aterrorizada de não acordar na manhã seguinte”. Desde setembro do ano passado, a vida de Constança Braddell “mudou drasticamente”: “Estou entregue à morte com apenas 24 anos” e a “morrer lentamente”, confessou-o publicamente sete meses depois. O desabafo emotivo foi publicado nas redes sociais a 5 de março e colocou o foco mediático sobre uma das doenças raras que é talvez das mais comuns, mas cujo impacto e tratamento poucos conheceriam até agora — a fibrose quística, que afeta 375 portugueses. Constança está agora há mais de uma semana nos cuidados intensivos, com o agravamento da doença devido a um pneumotórax, que sucede quando entra ar na pleura, a membrana que cobre os pulmões. A família refere que o “estado é muito grave” e prognóstico “é muito incerto”.

Constança Braddell internada nos cuidados intensivos em “estado muito grave”

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Mas o post não serviu apenas para a exposição desta doença rara. Constança, de 24 anos, também acusava Infarmed de não mostrar qualquer “empatia” para com o seu caso e de outros 375 doentes como ela a quem a autoridade do medicamento, dizia, decidiu “virar costas”. A razão? O facto de o medicamento Kaftrio, o único que a “podia salvar” (a ela e aos demais), não estar disponível em Portugal de forma gratuita. Para conseguir adquirir um ano de medicação, a jovem lançou uma campanha para o financiamento de cerca de 192 mil euros, suficiente para comprar doze doses, uma para cada mês. “Sem ele, a Constança pode morrer”, lê-se no site onde decorre a arrecadação de fundos.

"O Infarmed está ciente da eficácia deste medicamento e continua em negociações intermináveis para aprovação do financiamento do mesmo", relata Constança Braddell. 

O Infarmed reagiu em comunicado logo no próprio dia em que o post de Constança foi publicado, afirmando que a autoridade do medicamento estava a “acompanhar a situação” e indicando que existia a possibilidade de acesso ao medicamento, desde que isso acontecesse por iniciativa do hospital, através de uma Autorização de Utilização Especial (AUE)”, processo esse que não implica a aprovação por parte do Infarmed. No mesmo comunicado, confirmava que da parte do Hospital Santa Maria, no qual Constança Braddell está a ser seguida, não tinha havido qualquer pedido para obter o medicamento.

Jovem com fibrose quística recorre às redes sociais para pedir medicamento que não está disponível em Portugal

O caso obrigou o PS a entregar uma resolução no Parlamento de modo a acelerar o processo de aprovação do medicamento para a fibrose quística, o Kaftrio. O PSD pediu entretanto para ouvir no Parlamento entidades ligadas ao Infarmed de forma a esclarecer “dúvidas” sobre a não autorização em Portugal de alguns medicamentos. E o líder do CDS exigiu ao Governo que garanta “o acesso imediato ao medicamento de forma comparticipada, porque não há nada que justifique esta demora inaceitável“.

Na segunda-feira foi a vez do Centro Hospital Universitário Lisboa Norte, que integra o Hospital Santa Maria, ter revelado que tinha submetido naquele dia cinco pedidos de “Autorizações de Utilização Excecional (AUE) de um tratamento inovador para doentes com fibrose quística”. O caso de Constança Braddell era um deles. O Infarmed confirmou depois, na terça-feira, ter recebido 14 pedidos de autorização especial do Kaftrio de vários hospitais do país — quatro do Santa Maria, estando um ainda sob avaliação. E em menos de uma semana, um caso de raro, que pode ser fatal, resolveu-se com uma denúncia pública nas redes sociais e toda a pressão que daí se gerou. Constança já recebeu o comprimido que lhe pode dar mais anos de vida e também fez eco da sua alegria através do Instagram.

“Imaginei tantas vezes o que sentiria na chegada deste dia e a verdade é que por mais que tente, não consigo pôr por palavras aquilo que sinto. Quero começar por agradecer do fundo do meu coração a todos os que tornaram isto possível. A onda de solidariedade que se gerou desde o momento em que partilhei a minha situação de desespero. O carinho e apoio incondicional que recebi da vossa parte é imensurável. Sem vocês, o Kaftrio não estaria aqui na minha mão, é um sonho tornado real. Uma sensação de missão cumprida”, escreve. Mas sem deixar elogios — “É também um orgulho saber que inspirei outros doentes FQ a partilharem as suas histórias, estamos nisto juntos! — e também avisos: “A minha primeira batalha está ganha, mas a luta está longe de acabar. A comunidade FQ precisa do Kaftrio para sempre e não apenas durante alguns meses, não pode nem deve ser dado exclusivamente a alguém que está a morrer! Juntos iremos lutar até que seja aprovado pelo Infarmed e incluído no SNS”.

Mas afinal no que consiste esta doença? Quais são as complicações que provoca? Há cura? E o tão discutido medicamento, o Kaftrio, de que maneira aumenta a qualidade de vida dos doentes? E por que motivo é que o Infarmed ainda não o aprovou? Foi o que fomos tentar perceber com Manuel Herculano Rocha, ex-chefe de serviço de pediatria do Hospital Central e Especializado de Crianças Maria Pia e presidente da direção da Associação Portuguesa de Fibrose Quística (APFQ).

O que é a fibrose quística?

A fibrose quística é uma doença rara, genética, sendo autossómica recessiva, ou seja, apenas se manifesta quando os dois progenitores, pai e mãe, possuem o gene CFTR da fibrose quística. Segundo Manuel Herculano Rocha, o principal sintoma consiste numa alteração das “glândulas produtoras de muco, que fica mais espesso”, o que afeta “a expetoração e as secreções gastrointestinais”.

Isto significa que em termos respiratórios há uma obstrução dos canais de respiração devido a essa expetoração mais espessa. Desenvolvem-se depois bactérias patogénicas no sistema respiratório, criando inflamações. No sistema gastrointestinal as secreções também obstroem os canais do pâncreas, não havendo uma absorção dos alimentos, criando uma má digestão, o que leva a um quadro clínico de desnutrição.

Existem mais de “2.000 mutações” da doença. “Não existe uma única forma de fibrose quística — há umas mutações mais graves e outras mais ligeiras, o que interfere na medicação”, explica Manuel Herculano Rocha.

Em que idade surge a doença? Quais são os sintomas?

É variável, dependendo do tipo de mutação. De acordo com Manuel Herculano Rocha, “há doentes que começam com sintomas no nascimento, há outros que apenas os desenvolvem na adolescência ou mesmo na idade adulta”. No caso de Constança, a doença “pouco interferiu” na sua vida até setembro do ano passado, confessando mesmo que nunca sentira “a necessidade de contar”, “nem aos meus amigos mais próximos”, apesar de a fibrose quística a “assombrar há 24 anos”, quando foi diagnosticada.

O quadro clínico começou a piorar o ano passado, quanto tinha 23 anos, já uma jovem adulta: “Como muitas outras doenças raras mortais, elas atingem-nos quando menos esperamos”.

Os sintomas costumam ser tosse persistente com muco espesso, perda de peso, falta de ar e infeções respiratórias constantes, como pneumonias. E um dos sinais mais claros da fibrose quística é o “suor mais salgado”. Constança Braddell revelou, nas redes sociais, que chegou a perder “13 quilos no espaço de 3 meses” e que “uma simples chamada telefónica” a deixava “exausta”.

Qual é o prognóstico de vida para esta doença?

“Esta doença é mortal e incurável”, afirmou Constança Braddell na sua publicação, ainda que “nos últimos 40 anos tenha havido um aumento franco da esperança da vida”, indica Manuel Herculano Rocha, sendo a “doença genética cujo tratamento mais evoluiu nos últimos anos”. A introdução do diagnóstico da fibrose quística no teste do pezinho (feito aos bebés depois de nascerem) foi essencial para tratar precocemente a doença. Uma vez encontrada a mutação da fibrose quística, o doente é referenciado e passa a haver um “tratamento diferenciado” com medicação adequada e um controlo permanente, que pode evitar complicações gastrointestinais e respiratórias graves no futuro.

Mas o médico lembra que as associações de fibrose quística tiveram “anos a lutar contra o Infarmed”, sendo que “algumas estruturas do organismo não estavam dispostas a aprovar o diagnóstico precoce” a recém-nascidos. “Há um estudo da revista científica Lancet que indica que há uma enorme disparidade na probabilidade de os doentes apresentarem complicações se houver um diagnóstico tardio”, justifica o médico.

Há cura para a doença?

Para já não, “é mortal e incurável”, como diz Constança. Mas há “francos avanços na terapia genética” que podem melhorar a qualidade de vida dos doentes de todas as idades. São os chamados medicamentos moduladores, que corrigem a proteína defeituosa da doença.

Qual é a esperança média de vida?

Atualmente é de cerca de 40 anos em Portugal, sendo que em países como os Estados Unidos pode chegar aos 47. Na década de 60, a esperança média de vida para estes doentes era de apenas dez anos, sendo que na década de 30 os recém-nascidos com a doença “morriam logo ao nascer”.

O quão incapacitante é a esta doença?

Em casos extremos, “a pessoa perde capacidade respiratória e pode nem conseguir caminhar meia dúzia de passos”, revela Manuel Herculano Rocha, dizendo que outras consequências passam pelo cansaço extremo e pela falta de ar. Constança conta que “uma simples ida à casa de banho parece impossível”.

Além disso, pode levar à necessidade de um transplante pulmonar.

Quando é que doença pode levar à morte? Quais são os casos mais extremos?

Principalmente nos casos de insuficiência respiratória, que origina uma diminuição da oxigenação do sangue e sobrecarrega o coração. Apesar de atualmente não se verificarem muitas situações devido ao controlo da medicação, há mortes causadas também por desnutrição.

Qual é a medicação que um doente de fibrose quística toma?

Dado ser uma doença que atinge múltiplos órgãos, tem de haver uma medicação “diária e rigorosa“, que vai desde “antibióticos para prevenir infeções respiratórias”, a medicamentos para “favorecer a expetoração mais líquida”. Para evitar a desnutrição, os doentes tomam ainda medicamentos à base de enzimas pancreáticas, bem como vitaminas e suplementos.

Em algumas mutações, também é necessário que os doentes façam fisioterapia e, em caso de agravamento dos sintomas respiratórios, os doentes que padecem de fibrose quística podem necessitar de ser ventilados, como acontece atualmente com Constança Braddell, ou mesmo de ser internados. É também aconselhável o exercício físico para ajudar no funcionamento dos pulmões.

Num relato publicado no Expresso, a jornalista Christiana Martins revelou publicamente que o filho de 12 anos padece também de fibrose quística. E conta que tem de tomar “pelo menos 31 comprimidos, aos quais têm de se somar os antibióticos preventivos”, alem de que faz “fisioterapia respiratória diária sozinho, e acompanhado uma vez por semana” e “vaporizações com medicamentos todos os dias de manhã”.

Que tratamentos inovadores existem para a doença?

Para além da medicação já referida, existem “medicamentos moduladores”, cujo objetivo é “corrigir a função da proteína defeituosa”, que atenuam os sintomas e “evitam a evolução da doença”. É a chamada “medicina de precisão” que está “dirigida a ir à célula e até à mutação”, explica Manuel Herculano Rocha.

Alguns destes medicamentos, apesar de terem tido aprovação em 2015 pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), só foram aprovados em fevereiro de 2021 pelo Infarmed, revela o médico, que aproveita para criticar a agência do medicamento pela demora e pela burocracia excessiva.

De que maneira é que este medicamento, o Kaftrio, ajuda o tratamento?

Descrito por Constança Braddell como sendo capaz “de prolongar a vida de um paciente com fibrose quística” — incluindo “prolongar” a sua –, o Kaftrio é um desses medicamentos moduladores que “impede o agravamento da doença” e melhora a “função respiratória”, algo “inovador” nos tratamentos até agora desenvolvidos e que leva a uma “melhoria da qualidade de vida”. Para além disso, de acordo com Manuel Herculano Rocha, aumenta “significativamente os doentes elegíveis” a serem tratados, porque é eficaz no tratamento de várias mutações.

Com o Kaftrio, eu posso viver, voltar a viver, pois a situação moribunda na qual me encontro é tudo menos o que se espera para uma jovem de 24 anos com tantos sonhos adiados”, consta do desabafo de Constança Braddell nas redes sociais.

Um dos objetivos da Associação Portuguesa de Fibrose Quística é exatamente aumentar o número dos doentes elegíveis.

Por que motivo é que o Infarmed ainda não aprovou Kaftrio?

“É um medicamento caro”, aponta Manuel Herculano Rocha. Cada caixa custa aproximadamente 16 mil euros, mas o preço poderá baixar nas negociações dos países com as farmacêuticas. Mas essa não deverá ser a principal justificação — a principal razão é a “excessiva burocracia” do Infarmed. Para o médico, não tem sentido que, após a aprovação do tratamento pela EMA, o Infarmed tenha de testar a terapêutica novamente. “Devem focar-se na avaliação económica”, afirma, “que é o que demora mais tempo”.

E dá um exemplo: o medicamento Orkambi, que o Infarmed já aprovou para maiores de 12 anos, carece ainda de avaliação pela agência de medicamento portuguesa para crianças com mais de dois anos, ainda que a EMA já o tenha aprovado.

Também Constança Braddell se junta às críticas ao Infarmed: “Está a mostrar pouco ou nenhuma empatia pela causa que é nossa enquanto comunidade de fibrose quíntica portuguesa”.

"Há doentes a morrer e a pior em circunstancias clínicas perto de serem transplantados. É necessário agir rápido", diz Manuel Herculano Rocha

O que é a autorização de utilização excecional emitida pelo Infarmed? Quais são os critérios?

A autorização de utilização excecional que o Infarmed emitiu para 14 doentes não significa a sua aprovação generalizada, mas apenas para alguns doentes.

Os medicamentos que já obtiveram autorização de introdução no mercado (incluindo novas indicações terapêuticas) só poderão ser utilizados pelos hospitais do SNS após conclusão positiva do respetivo processo de avaliação prévia hospitalar. Contudo, sempre que se verifique a ausência de alternativa terapêutica em que o doente corra o risco imediato de vida ou de sofrer complicações graves”, lê-se no site do Infarmed.

São os hospitais que têm de requisitar o medicamento ao Infarmed, que aprova cada pedido individualmente. Mas há critérios específicos para estas “situações excecionais”. No caso do Kaftrio, apenas é receitado para maiores de 12 anos com histórico de internamentos nos últimos três anos ou que estão na lista de transplante pulmonar, dependendo também, e ainda, da mutação da doença. “São pessoas que estão mesmo mal”, descreve Manuel Herculano Rocha.

Caso for aprovado, o medicamento chega ao utente de forma “gratuita”, mas Manuel Herculano Rocha sinaliza que este processo fica mais caro para o Serviço Nacional de Saúde, dado que tem de haver uma compra das doses dos medicamentos de forma individual em vez de ser por lotes. Segundo a opinião do médico, o processo de aprovação de deste tipo de tratamentos inovadores para doenças raras deve estar centralizado a nível comunitário, de maneira a haver uma maior capacidade de negociação por haver um maior número de doentes.

O grande objetivo da Associação é conseguir o acesso generalizado ao medicamento a todos os doentes de fibrose quística que necessitem dele e alargá-lo mesmo a pessoas em situações menos severas que a de Constança Braddell, por exemplo. “Se for aprovado, não tenho dúvidas que o Kaftrio salve vidas. Um doente perde qualidade de vida com a doença. Com este medicamento, é a chance de obter uma melhor qualidade de vida, passando a descontar para segurança social, a contribuir para o Estado português. De certa maneira, o Estado faz um investimento que vai retorno no futuro”, diz.

“Se o Estado não tratar estes doentes, está a aplicar-lhes uma forma de eutanásia”, conclui Manuel Herculano Rocha.

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