Há um mês, quando o Campeonato do Mundo feminino começou, era óbvio que Espanha era uma das favoritas a chegar longe na competição. Com nomes como Alexia Putellas, Aitana Bonmatí ou Teresa Abelleira, a seleção espanhola apresentava uma candidatura séria à conquista de um título internacional depois da desilusão do último Europeu – apesar de tudo. E o tudo, neste caso, faz toda a diferença.
Há quase um ano, em setembro do ano passado e depois da eliminação precoce no Campeonato da Europa com uma derrota no prolongamento frente à Inglaterra, 15 jogadoras renunciaram à seleção em rota de colisão com o selecionador. Jorge Vilda, apesar de claramente fragilizado dentro do balneário e no seio da opinião pública, resistiu. Recusou demitir-se, criticou a opção das atletas e manteve o apoio incondicional de Luis Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol.
Somente três jogadoras voltaram atrás na decisão, incluindo Bonmatí, e Vilda venceu o braço de ferro ao levar Espanha à conquista do Campeonato do Mundo. Com um golo solitário de Olga Carmona, capitã escolhida pelo selecionador por nunca se ter envolvido na rebelião (que além das signatárias teve companheiras a manifestarem a sua solidariedade), as espanholas deixaram para trás meses de incerteza, a clara dicotomia Barcelona/Real Madrid e um balneário que sempre esteve partido. Resta saber o que vem para a frente.
Um Europeu falhado, uma conversa e excesso de “autoridade”: o início da convulsão interna
O momento ficará para sempre gravado na história do futebol espanhol. E as fotografias que o imortalizaram vão ajudar a contextualizar esse mesmo momento sempre que for recordado ao longo da história do futebol espanhol. No instante em que terminou a final do Mundial feminino, quando a vitória de Espanha contra Inglaterra foi confirmada e um país inteiro festejou uma conquista inédita, as jogadoras espanholas juntaram-se num amontoado perto da própria baliza. Junto à linha lateral, na zona do banco de suplentes, a equipa técnica espanhola celebrava entre si.
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— sport tv (@sporttvportugal) August 20, 2023
Todos se reuniram pouco depois no relvado, é certo. E todos subiram, uns atrás dos outros, ao palanque onde a capitã Ivana Andrés acabou por levantar o troféu do Campeonato do Mundo. Mas no segundo em que a vitória se tornou uma certeza, jogadoras e equipa técnica ficaram separados e tiveram a primeira explosão de alegria a vários metros de distância – um cenário que só é estranho para quem não prestou atenção aos últimos meses da seleção espanhola.
As convulsões começaram no rescaldo do Europeu do verão passado. Espanha qualificou-se para o Campeonato da Europa sem qualquer derrota e chegava ao torneio com a certeza de contar com a melhor geração de sempre – apesar das ausências de Alexia Putellas e Jenni Hermoso, ambas por lesão. A prestação, porém, acabaria em desilusão: as espanholas não foram além dos quartos de final, eliminadas pela futura campeã europeia Inglaterra, e a ideia de que a qualidade individual e coletiva do grupo não tinha sido aproveitada parecia uma evidência.
Por essa altura, Jorge Vilda já era o selecionador nacional desde 2015, ano em que assumiu a equipa principal depois de ter orientado tanto as Sub-17 como as Sub-19 – e com sucesso, conquistando dois Europeus com a categoria mais jovem. Nascido em Madrid em 1981, foi um projeto de jogador de futebol que passou pela formação do Barcelona, do Rayo Vallecano e do Real Madrid e nunca chegou a tornar-se profissional, optando cedo pela carreira de treinador e integrando as equipas técnicas femininas da Real Federação Espanhola de Futebol [RFEF] logo em 2009.
Depois de garantir a qualificação para o Euro-2015 e para o Mundial de 2019, sendo afastada nos quartos de final e nos oitavos de final em cada uma das ocasiões, Espanha chegou ao Euro-2022 com uma equipa recheada de jovens talentos que Jorge Vilda tinha conhecido e moldado na formação como a própria Putellas, Mariona Caldentey, Ivana Andrés ou Patricia Guijarro. A precoce eliminação logo nos quartos de final da competição trouxe as primeiras ondas de choque, com as três capitãs a decidirem tomar uma posição de força.
Patricia Guijarro, Jenni Hermoso e Irene Paredes, três dos nomes mais sonantes da equipa, aproveitaram a primeira concentração depois do Campeonato da Europa e falaram diretamente com Jorge Vilda em nome de todo o grupo. De acordo com o que acabou por ser revelado pela comunicação social espanhola, as jogadoras defenderam que era preciso efetuar alterações nas metodologias de treino e nas opções táticas, sublinharam que o nível de exigência da seleção era inferior ao que existia nos clubes de topo e personificaram as queixas, indicando que o selecionador era “demasiado autoritário”.
As três capitãs deixaram exatamente a mesma ideia a Luis Rubiales, presidente da RFEF, mas sentiram desde logo que não existia grande abertura para o diálogo – com Guijarro e Paredes a surgirem mesmo numa conferência de imprensa extraordinária para explicarem aquilo que tinham conversado com Jorge Vilda. A caixa de Pandora, porém, estava totalmente aberta. E em setembro, cerca de dois meses depois do Campeonato da Europa, a bomba explodiu.
Las 15: um email que foi uma declaração de guerra
Aitana Bonmatí, Mariona Caldentey, Patricia Guijarro, Mapi León, Sandra Paños e Clàudia Pina, todas do Barcelona; Nerea Eizagirre e Amaiur Sarriegi, da Real Sociedad; Lola Gallardo e Ainhoa Moraza, do Atl. Madrid; Laia Aleixandri e Leila Ouahabi, do Manchester City; Ona Batlle e Lucía García, do Manchester United; e Andrea Pereira, do Club América. 15 jogadoras, 15 internacionais espanholas, 15 nomes recorrentes e habituais nas convocatórias de Jorge Vilda, decidiram enviar à RFEF um email onde criticavam abertamente as metodologias de treino do selecionador, a alegada ausência de exigência e brio e também a existência de um ambiente controlador, onde eram frequentemente questionadas sobre o local em que se encontravam e até sobre as compras que faziam.
“A RFEF comunica que, ao longo do dia de hoje, recebeu 15 emails de 15 jogadoras da seleção feminina de futebol, casualmente com o mesmo texto, que manifestam que a atual situação afeta ‘de forma importante’ o seu ‘estado emocional’ e a sua ‘saúde’ e que, ‘até que a situação seja revertida’, renunciam à seleção nacional de Espanha”, podia ler-se no comunicado do organismo, que deixou bem claro que iria ficar ao lado de Jorge Vilda.
“A RFEF não vai permitir que as jogadoras questionem a continuidade do selecionador nacional e da sua equipa técnica, já que esse tipo de decisões não faz parte das suas competências. A Federação não vai admitir qualquer tipo de pressão por parte de nenhuma jogadora na hora de tomar medidas de âmbito desportivo. Este tipo de manobras está longe do exemplo que tem de ser dado e fora dos valores do futebol e do desporto”, acrescentava a nota.
Poucos dias depois, através do Twitter, as 15 jogadoras emitiram um comunicado onde garantiam não ter exigido a demissão de Jorge Vilda, ainda que mantendo a intenção de não serem convocadas para compromissos futuros. Numa altura em que já eram conhecidas como Las 15, as jogadoras tiveram o apoio de um crucial 16.º nome: Alexia Putellas, que não era convocada há meses devido a uma lesão grave contraída na antecâmara do Europeu de 2022 e que não fazia parte do grupo inicial que enviou os emails, também partilhou o comunicado no Twitter e deixou bem claro de que lado estava.
A resposta da RFEF foi simples: o apoio a Jorge Vilda mantinha-se e as jogadoras, se assim o pretendessem, teriam de pedir desculpa e afastar-se das acusações feitas para voltarem a ser convocadas. Na primeira lista depois do episódio, a contar para jogos particulares contra a Suécia e os EUA, o selecionador não convocou nenhuma das 15 jogadoras e ainda juntou Irene Paredes e Jenni Hermoso ao grupo das excluídas – já que as duas, apesar de não terem enviado o dito email, estiveram na conversa inicial que parecia ter começado toda a revolta.
“Não desejo a ninguém aquilo por que tenho passado nos últimos dias. Estou profundamente magoado, é uma situação injusta e que ninguém merece. Acho que é ridículo, à escala global. Esta confusão está a prejudicar o futebol espanhol, é uma vergonha mundial. Gostaria de que elas me dissessem na cara o porquê de terem tomado esta decisão e as coisas com que não concordam”, disse o treinador no momento em que anunciou a convocatória, reiterando a total rejeição da ideia de se demitir.
O binómio Real Madrid/Barcelona e as três desistentes
O grupo das 15 jogadoras, porém, não foi absolutamente aleatório. Uma análise rápida permite perceber que a larga maioria joga no Barcelona, enquanto que o Real Madrid não tem qualquer representante – um dado que está longe de ser um pormenor e que tem vindo a intensificar uma rivalidade blaugrana/merengue que ainda não era propriamente uma realidade no futebol feminino.
A seleção espanhola ficou totalmente partida entre Barcelona e Real Madrid, entre as que renunciaram e as que nada disseram, entre as que estavam excluídas por Jorge Vilda e as que continuavam a ser convocadas por Jorge Vilda. A dada altura, a situação subiu de tom quando alguma imprensa catalã indicou que as jogadoras do Real Madrid tinham sido impedidas pelo próprio clube de se juntar à rebelião – algo que o clube se apressou a negar. As relações, porém, eram obviamente tensas e isso tornou-se claro no primeiro El Clásico depois de os emails serem públicos, quando Aitana Bonmatí recusou cumprimentar Misa Rodríguez tanto no início como no final do jogo.
Com um balneário aparentemente dividido, Jorge Vilda foi beneficiando do passar dos meses e do espaçamento entre compromissos internacionais, para além do apoio incondicional de Luis Rubiales, para afastar cada vez mais a polémica. Nenhum dos lados, RFEF ou jogadoras, parecia dar o braço a torcer – e a ideia de que Espanha iria mesmo aparecer no Campeonato do Mundo sem poder contar com 15 potenciais convocadas era cada vez mais uma realidade. A maré começou a mudar em março, quando as capitãs Irene Paredes e Jenni Hermoso foram reintegradas, e já não era segredo para ninguém que a Federação tinha começado a realizar alguns contactos com agentes e patrocinadores com o objetivo de recuperar algumas jogadoras.
Só três recuaram: Aitana Bonmatí, Mariona Caldentey e Ona Batlle, todas convocadas para o Mundial que acabaram por conquistar, sendo que a primeira foi mesmo considerada a melhor jogadora da competição e é a grande favorita para levantar a próxima Bola de Ouro. Ao mesmo tempo e já recuperada da lesão que a afastou dos relvados durante quase um ano, Alexia Putellas também foi convocada por Jorge Vilda – sendo que o papel da duas vezes melhor do mundo, a dada altura, se tornou o de uma verdadeira mediadora entre os dois lados da barricada.
Espanha chegava ao Campeonato do Mundo com as esperanças novamente renovadas, com Putellas de regresso e com o objetivo de repetir o assalto ao primeiro título internacional. Ao mesmo tempo, Espanha chegava ao Campeonato do Mundo com um selecionador brutalmente contestado, sem Mapi León ou Patricia Guijarro e com um balneário partido entre Real Madrid e Barcelona.
Como os erros do passado ajudaram à conquista da chapada de luva branca
No Mundial da Austrália e da Nova Zelândia e prolongando o cliché, Jorge Vilda só tinha uma opção: responder em campo. As alegações não iriam dissipar-se, a relação com o plantel não iria magicamente melhorar e a opinião pública também não iria alterar-se – logo, a única opção do selecionador espanhol era alcançar o melhor resultado desportivo possível e dar uma chapada de luva branca a todos aqueles que criticaram não só as suas competências profissionais como também a própria integridade pessoal.
Conseguiu. Espanha começou por vencer a Costa Rica e golear a Zâmbia, carimbando desde logo a presença nos oitavos de final, e só tropeçou com uma goleada pesada sofrida contra o Japão na última jornada da fase de grupos. Uma goleada que, segundo Jorge Vilda, foi o ponto de viragem para a conquista do título – algo que se notou desde logo, já que decidiu mudar de guarda-redes titular, gerir Alexia Putellas de uma forma que até a deixou de fora do onze inicial da final e apostar mais na jovem Salma Paralluelo.
“Aquela derrota fez-nos reagir, a equipa mudou e as jogadoras subiram de rendimento. Mentalmente, tornaram-se muito mais fortes. Acho que esses fatores ajudaram-nos a chegar à final e a vencer a final”, explicou o treinador este domingo, depois do jogo decisivo, deixando agradecimentos que estão longe de ser inocentes. “O apoio da Federação tem sido essencial e desde o início do ano passado que o presidente Luis Rubiales nos tem dado o seu apoio absoluto. Tem sido constante, não só por parte do presidente, mas de toda a Federação. Foi um ano difícil, mas ajudou-nos a melhorar e agora somos campeões mundiais”, acrescentou.
Espanha afastou a Suíça nos oitavos de final, venceu os vice-campeões mundiais Países Baixos nos quartos de final e eliminou a Suécia nas meias-finais, vingando depois a derrota no último Europeu ao derrotar Inglaterra na final de Sidney. E a conjuntura não poderia ter sido melhor para Jorge Vilda: Irene Paredes e Jenni Hermoso foram titulares, Aitana Bonmatí acabou eleita a melhor jogadora do torneio e Olga Carmona, lateral do Real Madrid que nunca se envolveu em qualquer rebelião, marcou o golo decisivo.
A forma como o treinador espanhol conseguiu chegar à conquista de um Campeonato do Mundo na sequência de um autêntico turbilhão interno ainda está por decifrar. Contudo, existe uma pista. Como já referido, Jorge Vilda chegou ao comando da seleção espanhola em 2015 e para substituir Ignacio Quereda, que estava no cargo desde 1988 – período de quase três décadas em que só garantiu a qualificação para dois Europeus e um Mundial, levando a RFEF a ouvir muitas acusações de ter deixado a equipa feminina ao abandono. O pormenor da saída de Quereda? Foi motivada pelas próprias jogadoras.
Logo depois do Mundial 2015, o primeiro em que Espanha participou e onde não foi além da fase de grupos, as 23 jogadoras que tinham estado na competição uniram-se num comunicado transversal e conjunto onde pediam a demissão de Ignacio Quereda. O grupo que já incluía Putellas, Paredes e Hermoso queixava-se de ausência de planeamento, de metodologias erradas, de falta de jogos de preparação e de fracas análises dos adversários por parte da equipa técnica. Em resumo, sem usar a palavra “renúncia”, deixavam claro que se recusavam a jogar por Espanha se Ignacio Quereda não fosse demitido.
Ao contrário do que aconteceu com Jorge Vilda, a RFEF não defendeu o treinador e abriu-lhe a porta da saída, com Quereda a pedir a demissão no final de julho de 2015. Seguiu-se Vilda, que conta com problemas semelhantes mas soube manter-se ao leme do barco e aproveitar a ausência de união dentro do grupo para apresentar todo o episódio como uma dissidência e não como um problema de fundo. No fim, foi campeão mundial.