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Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 2014 produziu uma bomba ao retardador no sistema de Justiça em 2022. Em 15 respostas, o Observador explica-lhe todos os pormenores de um caso que pode levar a uma revisão constitucional já admitida pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
O que está em causa?
Por requerimento da provedora de Justiça Maria Lúcia Amaral, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu a 19 de abril que a lei dos metadados é inconstitucional. O ponto concreto da lei que levou o TC a tomar a sua decisão no Acórdão n.º 268/2022 (que pode ser consultado aqui) prende-se com a conservação por parte dos operadores de telecomunicações das comunicações eletrónicas, dados de tráfego e localização de todos os cidadãos. A Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, estipula um prazo de um ano para que tais dados sejam de conservação obrigatória, de forma a ajudarem o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal a prevenirem, investigarem e reprimirem a prática de crimes graves, como terrorismo, tráfico de droga, de armas e de pessoas, corrupção, branqueamento de capitais, entre outros.
O TC não só colocou em causa o prazo de um ano, como também a proporcionalidade da lei. Ou seja, estão em causa os dados de todos os cidadãos, que são guardados e podem ser acedidos pelos órgãos de polícia criminal após a devida promoção do titular da ação penal (o Ministério Público) e a respetiva autorização do juiz de instrução criminal.
Os conselheiros do Palácio Ratton afirmam igualmente que não respeita a Constituição o facto de os cidadãos desconhecerem esse facto. Isto é, não são notificados pela Justiça quando os seus dados pessoais são acedidos pelas autoridades, mesmo quando não são considerados suspeitos de nenhum crime.
Aliás, é precisamente este último ponto — o acesso a dados sobre as “comunicações eletrónicas da quase totalidade da população”, nomeadamente de cidadãos sobre os quais não há qualquer suspeita da atividade criminosa — que leva o Constitucional a afirmar que a lei coloca em causa de “modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa.”
O TC também contesta o facto de a lei não prever o armazenamento dos dados num Estado-membro da União Europeia, o que coloca em causa a fiscalização do acesso aos mesmos por parte de “uma autoridade administrativa independente”, lê-se num comunicado emitido pelo Constitucional a 27 de abril.
O que são metadados?
Os metadados são uma informação digital que permite localizar no tempo e no espaço e identificar determinado aparelho tecnológico.
Por exemplo, os metadados das comunicações de um telemóvel ou de um computador não só permitem identificar o aparelho e os seu proprietários, como monitorizar o mesmo, sendo possível saber os locais onde o mesmo esteve quando fez determinada comunicação, quanto tempo durou essa mesma chamada, que emails enviou e para quem ou as aplicações a que acedeu (com a respetiva informação precisa do log in e do log off).
É por tudo isto que os metadados são encarados como uma espécie de santo graal dos dados pessoais e são protegidos com leis constitucionais e ordinárias apertadas na União Europeia.
Qual a vantagem dos metadados para a investigação criminal?
Os metadados são essenciais para a investigação criminal de determinados crimes, como o terrorismo, raptos ou até tráfico de droga. Isto para não falar do cibercrime, cada vez mais comum, como os cerca de 8.000 inquéritos ligados ao MB Way que o Observador recordou esta terça-feira.
Em primeiro lugar, porque permitem situar os suspeitos de forma rigorosa no espaço e no tempo. Muitas vezes a triangulação dos metadados de diversos suspeitos permite aos investigadores perceberem, por exemplo, se estiveram nos mesmos locais à mesma hora. Nos caso de rapto, até é possível monitorizar os eventuais suspeitos e localizar as vítimas.
Aliás, a declaração de voto do conselheiro Lino Ribeiro, o único juiz do TC que votou contra o acórdão, evidencia de forma clara a importância dos metadados para a investigação criminal de um caso de rapto (“findas que sejam tais comunicações, poderá ser muito difícil identificar os agentes do crime”) mas também de crimes com recurso a meios informáticos, como o “crime de aliciamento de menores”. “A conservação de dados é estritamente necessária para as finalidades da investigação, porque só assim é possível obter dados historicamente determinados”, escreveu o conselheiro Lino Ribeiro.
A lei portuguesa permite alguma forma de conservação de metadados que seja constitucional?
É factual que a Constituição da República Portuguesa não permite que os serviços de informações acedam a metadados dos cidadãos. Aliás, o Constitucional já decidiu sobre essa matéria em 2015 e, mais recentemente, em 2019. Neste último caso, o TC emitiu um acórdão em setembro de 2019 no qual declarou a inconstitucionalidade com força de obrigatória geral de uma parte da Lei n.º 4/2017 de 25 de agosto que regulamentava o acesso aos metadados por parte das secretas.
Ou seja, os conselheiros do Palácio Ratton permitiram o acesso das secretas aos dados de localização dos telefones, mas só em casos de suspeitas fundadas de terrorismo e criminalidade organizada. E com a devida autorização do Supremo Tribunal de Justiça. Mas o TC chumbou o acesso a outros metadados, como os chamados dados de tráfego, como a hora, a duração da chamada e os números contactados. A maioria socialista já admitiu em fevereiro regressar a este tema.
Há três situações em que o acesso integral aos metadados e a respetiva guarda é legal e constitucional:
- A Lei do Cibercrime permite, por exemplo, o chamado “quick freeze”. Isto é, se durante uma determinada investigação criminal for relevante que se guarde os metadados de determinado suspeito para futura utilização, isso é possível. Basta que o Ministério Público promova tal guarda e o juiz de instrução criminal autorize e notifique a operadora de telecomunicações em questão.
- A própria operadora também está autorizada a guardar durante seis meses as faturas detalhadas dos seus clientes para efeitos de prova em eventuais casos de dívida por parte dos clientes. Ou seja, é constitucional uma empresa de telecomunicações guardar dados sensíveis de todos os seus clientes (as faturas detalhadas contém muita informação de metadados), mas não é constitucional a Justiça ordenar à mesma empresa que guarde praticamente a mesma informação durante um ano.
- Quando um Tribunal de Instrução Criminal ordena a uma determinada operadora que execute uma escuta telefónica a um suspeito por promoção do Ministério Público, a respetiva empresa envia sempre os metadados para o titular da ação penal e para a Polícia Judiciária.
Isso significa que a decisão do Tribunal Constitucional pode abranger as escutas telefónicas?
Não. É claro que as únicas comunicações que são abrangidas pela decisão de inconstitucionalidade são as chamadas comunicações de contexto (os metadados) e não as comunicações de conteúdo (as escutas telefónicas).
Esta decisão era esperada ou foi uma surpresa?
Era totalmente esperada. Porquê? Porque a diretiva europeia (Diretiva 2006/24/CE, de 15 de março) que deu origem à lei dos metadados foi considerada inválida com o chamado Acórdão Digital Rights Ireland Ltd (uma associação irlandesa de direitos digitais e liberdades civis) do Tribunal de Justiça da União Europeia (UE). O acórdão, datado de 8 de abril de 2014, estipula claramente que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi violada por aquela diretiva, ao colocar em causa três direitos: direito à proteção da vida privada, à proteção dos dados pessoais e da liberdade de expressão.
Mais tarde, a 21 de dezembro de 2016, um segundo acórdão do Tribunal Europeu da UE reforçou a argumentação num caso relacionado com uma queixa de uma operadora sueca de telecomunicações chamada Tele 2.
Portanto, era claro desde abril de 2014 que a lei portuguesa dos metadados tinha um problema constitucional. Isto porque Portugal reconhece como Estado-membro da UE não só a jurisdição do Tribunal de Justiça da UE, como também a lei dos metadados foi criada como aplicação do Direito da União.
O que podia ter feito o poder político?
Tendo a lei dos metadados sido aprovada em 2008 pela Assembleia da República por proposta do Governo Sócrates, pode dizer-se que era suposto que o Governo António Costa tivesse tomado a iniciativa de alterar a lei quando a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE reforçou a sua jurisprudência em dezembro de 2016 com o acórdão Tele 2. Mas nada foi feito.
Foi a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, quem levantou o problema em janeiro de 2019, ao instar por carta a então ministra Francisca Van Dunem a alterar a norma, invocando para o efeito dois acórdãos do Tribunal da Justiça da União Europeia (UE) de 2014 e 2016.
A ministra da Justiça respondeu em março de 2019, defendendo a constitucionalidade da lei (no que foi claramente desmentida agora pelo Tribunal Constitucional) e acrescentando: “Temo não ser possível que o Governo possa lograr apresentar ao Parlamento uma proposta de lei com essa aspiração”, devido ao “calendário legislativo” — uma referência às eleições legislativas de outubro de 2019 — e à “complexidade de alteração legislativa” da lei dos metadados.
Apesar de ter feito uma alusão indireta às eleições legislativas de outubro de 2019, certo é que Van Dunem continuou como ministra da Justiça até março de 2022 e nada fez.
E o que fizeram os outros países da União Europeia?
A Alemanha, por exemplo, avançou com uma nova lei dos metadados logo em 2015 por acordo entre o SPD e a CDU, os dois principais partidos — até porque o Tribunal Constitucional da Alemanha tinha decidido logo em 2010 que a guarda dos metadados por seis meses era desproporcional. A lei alemã de 2015 reduziu de seis meses para dez semanas em termos gerais e para quatro semanas quando estão em causa os dados de localização de telemóveis.
O acórdão do Tribunal Constitucional tem efeitos retroativos?
Sim. Ao declarar como inconstitucional a Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, os efeitos práticos têm um efeito retroativo à entrada em vigor da norma. Isto porque fica colocada em causa a aplicação da lei desde o seu momento fundador.
Como a lei estipulou que a entrada em vigor se verificava 90 dias após a publicação da respetiva portaria regulamentar — e como esta última foi publicada no Diário da República de 6 de maio de 2009 —, os efeitos retroativos reportam à entrada em vigor em agosto de 2009.
Quais as consequências dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade?
Como tem aplicação retroativa, tal significa que todas as provas que foram validadas pelos respetivos juízes de instrução criminal ao abrigo da lei dos metadados podem (e vão) ser declaradas nulas. Isto porque a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral significa que as normas em causa deixam de existir.
As consequências práticas verificar-se-ão a diferentes níveis:
- As defesas dos arguidos contra quem tenha sido usada prova assente em metadados vão tentar anular tal prova, independentemente da fase processual em que o respetivo processo se encontre: fase de investigação, instrução criminal, julgamento ou recursos.
- Para casos futuros, o Ministério Público (MP) pode deixar de promover o acesso aos metadados enquanto não houve uma nova lei ou os juízes de instrução criminal passam a rejeitar eventuais promoções do MP.
É conhecido algum caso concreto em que já se percebam as consequências de inconstitucionalidade?
Sim, os chamados processos do MB Way. Tal como o Observador noticiou em primeira mão, estão em causa cerca de 8.000 processos criminais relativos a crimes de burla. Tudo porque os metadados permitem localizar determinado aparelho tecnológico no tempo e no espaço, o que é considerado essencial para a descoberta da verdade material nesse tipo de investigação.
É com o acesso a tais metadados que os investigadores costumam identificar não só os burlões e as contas bancárias — nomeadamente, através do acesso aos IPs que foram utilizados para abrir contas, mas também sites fraudulentos —, como também ajudam a monitorizar os suspeitos e permitem perceber a partilha do mesmo espaço.
E os casos de condenações já transitadas em julgado?
Os casos com condenações já transitadas em julgado podem vir a ser objeto de uma revisão de pena. Para tal, será necessário que o respetivo advogado interponha um requerimento extraordinário de revisão de pena no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Contudo, não é expetável que o número de requerimentos bem sucedidos seja muito significativo.
Em primeiro lugar, porque o STJ é muito conservador na apreciação desse tipo de requerimento. Por outro lado, o número de condenações em que os metadados são uma prova fundamental é muito reduzido.
Não só porque o tipo de criminalidade em que costuma ter relevância (terrorismo ou raptos) não tem grande expressão em Portugal, como os processos de tráfico de droga (outro tipo de crime em que se costuma usar metadados de forma relevante) costuma ter outro tipo de prova complementar.
O Ministério Público vai fazer alguma coisa?
Sim. A Procuradoria-Geral da República anunciou esta segunda-feira que foi apresentado um requerimento no Tribunal Constitucional a defender a nulidade do Acórdão n.º 268/2022, assinado pela própria procuradora-geral Lucília Gago.
O Ministério Público (MP) defende uma alegada “contradição entre a fundamentação e o juízo de inconstitucionalidade” da lei, “em particular no que concerne à conservação dos dados de base e IP”, assim como no facto de não terem sido fixados “limites aos efeitos” da mesma. Neste último ponto, o MP requereu que seja “declarada a eficácia apenas para o futuro” — uma forma de colocar em causa o efeito retroativo do acórdão do TC.
Esse requerimento de nulidade terá sucesso?
É muito pouco provável, visto que a decisão do Tribunal Constitucional foi aprovada com 11 votos a favor e apenas um contra. Acresce que o deferimento de requerimentos de nulidade são uma raridade.
E agora? O que vai acontecer?
O Governo, através da nova ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, já afirmou que está a estudar uma solução para atenuar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade na investigação criminal, mas nada disse quanto a prazos para submeter uma eventual proposta de lei ao Parlamento.
“Não temos revisões pontuais.” Marcelo admite alterar Constituição devido à lei dos metadados
Já o Presidente da República admitiu logo a solução maximalista: uma revisão constitucional. “O Tribunal [Constitucional] decidiu não se pronunciar sobre os efeitos passados e ao não se pronunciar significa que a decisão vale para o futuro e para o passado. Nesse sentido, põe em causa a aplicação da lei nos últimos anos. Das duas uma: ou isso é suficiente ou não. Se não passar, depois das alterações, pode começar a aproximar-se a ideia de haver uma revisão da Constituição”, salientou.