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1917. Dos autocratas de Smolny à tragédia de um povo

Quais foram as primeiras decisões tomadas na Rússia pós-revolução de Outubro e quem as tomou? O Observador faz a pré-publicação do livro-referência de Orlando Figes, agora por fim editado em Portugal.

Vinte anos após a publicação original em inglês, uma das obras de referência sobre o acontecimento que marcou a história mundial regressa às livrarias numa nova edição em português. A Tragédia de um Povo — A Revolução Russa 1891-1924 regressa com o carimbo da Dom Quixote, a mesma editora que em breve traz o autor a Portugal.

Orlando Figes é um historiador britânico que tem na história russa a sua mais importante área de estudo, sobre a qual se fez, a longo dos anos, um autor de referência. Nesta pré-publicação que o Observador apresenta, revelamos parte do capítulo que recorda a forma como o regime soviético começou a impor-se a partir de Smolny, em São Petersburgo, com a tomada de decisões fundamentais para o futuro da União Soviética.

“A Tragédia de um Povo”, de Orlando Figes (D. Quixote)

“Passados cinco dias da invasão do Palácio de Inverno, Alexandra Kollontai, a nova Comissária do Povo para o Bem-Estar Social, conduziu até à entrada de um grande edifício público na rua Kazan. Durante o Governo Provisório, o endereço tinha sido a sede dos escritórios da repartição que ela acabara de assumir. Um porteiro idoso e de libré abriu a porta e examinou-a da cabeça aos pés. Na Rússia, nunca uma mulher tinha sido nomeada para a chefia de um ministério e, ao vê-la pela primeira vez, o porteiro deve ter pensado que se tratava de mais uma viúva pobre em busca de ajuda governamental. Kollontai exigiu ser recebida pelo funcionário de mais alto posto ali presente, mas o velho replicou que o horário de atendimento ao público já tinha acabado. Insistindo, ela anunciou quem era. O porteiro limitou-se a informar que os visitantes só tinham acesso ao local entre as 13 e as 15 horas. E já eram quase 17 horas. A Comissária do Povo tentou entrar à força. O porteiro bloqueou a passagem e fechou o edifício.

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Não foi um começo auspicioso para o novo regime. Os funcionários do ministério tinham-se juntado a uma greve de funcionários públicos contra a ascensão dos bolcheviques ao poder. Na manhã seguinte, ao regressar com um pequeno destacamento de soldados, Kollontai constatou que o imóvel estava quase deserto. Literalmente todo o pessoal aderira à paralisação e apenas os porteiros, pessoal de limpeza e mensageiros tinham comparecido ao trabalho. Uma vez que não fazia sentido instalar-se num escritório totalmente vazio, a comissária voltou ao Smolny, onde ocupou uma sala. O velho porteiro do ministério ganhou a incumbência de encaminhar para o quartel-general bolchevique as viúvas e crianças esfarrapadas, os camponeses refugiados e os arruinados que procuravam as dependências vazias da rua Kazan.

Greves semelhantes e campanhas de sabotagem nos principais ministérios e serviços públicos (bancos, correios e telégrafos, administração de caminhos-de-ferro, órgãos municipais, tribunais, escolas, universidades e outras instituições vitais) marcaram as primeiras semanas do governo bolchevique. Embora entre os funcionários houvesse diferentes visões políticas, quase todos pareciam concordar quanto à ilegalidade do regime e à necessidade de contestá-lo. Ao apresentar-se numa reunião de funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para o qual fora escolhido, Trótski mereceu risos irónicos. Quando os mandou retomar o trabalho, eles abandonaram simplesmente o edifício em protesto. No Palácio Anichkov, responsável pela gestão dos stocks alimentares do país, os empregados retiraram a mobília e trancaram os livros de contabilidade no cofre. Na sede dos correios e telégrafos, desapareceram as listas telefónicas e as pilhas de formulários para telegramas (mais tarde, serviriam de rascunho para que alguns destes funcionários escrevessem memórias). Os grevistas do Departamento Médico foram mais longe, arrancando o bico de pena de todas as canetas.

Para os seus opositores, a maior fraqueza dos novos donos do poder residia nestes primeiros passos trôpegos visando domar os principais organismos do Estado. Poucas pessoas apostavam na perpetuação do regime. «Califas por uma hora», foi o veredicto de boa parte da imprensa.

A ameaça mais séria veio com a recusa do Banco do Estado e do Tesouro em aceitar as exigências de fundos apresentadas pelo governo recém-instaurado. Sem dinheiro para pagar as suas contas, os bolcheviques não tinham como se conservar no poder. O Conselho de Comissários do Povo encaminhou várias solicitações, exigindo a transferência de dez milhões de rublos, mas todos os pedidos foram negados e devolvidos com o carimbo de «remetente desconhecido». A 7 de novembro, o novo Comissário de Finanças, V. R. Menzhinsky, apareceu à porta da instituição com um destacamento de marinheiros e reclamou a quantia. Os tesoureiros mantiveram-se firmes e, apesar da ameaça armada e de promessas de demissão e ultimatos, persistiram na recusa. Só dez dias depois os bolcheviques conseguiram assumir o controlo do banco e, com uma arma apontada, obrigaram os funcionários a abrir os cofres, carregando cinco milhões de rublos em bolsas de veludo. O valor foi colocado sobre a mesa de Lénine, no Instituto Smolny. Toda a operação pareceu um assalto, mas foi assim que os bolcheviques puseram as mãos no erário nacional, embora nenhum deles fizesse a mínima ideia de como funcionava uma grande instituição financeira. «Entre nós, havia gente que conhecia o sistema bancário pela leitura de livros e manuais, mas ninguém que entendesse os procedimentos técnicos operacionais. Penetrámos nos enormes corredores deste estabelecimento como se entrássemos numa floresta virgem», recordou um dos novos diretores.

Para os seus opositores, a maior fraqueza dos novos donos do poder residia nestes primeiros passos trôpegos visando domar os principais organismos do Estado. Poucas pessoas apostavam na perpetuação do regime. «Califas por uma hora», foi o veredicto de boa parte da imprensa. Gots, o líder SR, deu aos bolcheviques «não mais do que alguns dias»; Gorki apostou duas semanas; Tsereteli, três; Nabokov recusava-se a «crer na força do regime bolchevique e esperava que ruísse em breve». Muitos dos bolcheviques menos sanguíneos já não demonstravam otimismo. «A situação revela-se tão instável que, ao terminar cada carta, não sei se será a última. A qualquer momento posso ser atirado para a prisão», escreveu Lunatcharski à mulher a 29 de outubro.

A oposição dos funcionários e a falta de experiência bolchevique em gerir a complexa engrenagem do Estado não eram os únicos sinais de derrocada iminente. O regime revolucionário enfrentava dificuldades para abastecer as cidades de comida e para deter o colapso económico. E estava também isolado dos camponeses, que representavam a grande maioria da população e tendiam a votar contra os novos governantes nas eleições para a Assembleia Constituinte. Tal como a Comuna de Paris de 1871, Petrogrado parecia uma pequenina ilha rubra no meio de um vasto oceano verde. Além disso, os bolcheviques também precisavam de encarar a crítica das potências ocidentais e do resto da intelectualidade socialista. Durante o outono e o inverno, o jornal de Gorki, Novaia zhizn’, foi o porta-voz mais importante e dedicado no combate aos rumos tomados pela Rússia. Graças às capacidades políticas do editor e escritor, o jornal conseguiu escapar às garras dos censores bolcheviques, ao contrário do que aconteceu com boa parte da imprensa oposicionista. A coluna assinada por Gorki, «Reflexões extemporâneas», contendo denúncias amargas contra a «nova autocracia», deve ter abalado a simpatia indulgente com que Lénine o agraciava. Frequentemente, Gorki expressava surpresa pelo facto de a publicação ainda não ter sido fechada. «Lénine e Trótski nem imaginam o significado que têm as palavras liberdade e direitos humanos. Ambos estão contaminados pelo veneno malévolo do poder, e isto é patente na atitude vergonhosa que manifestam em relação à liberdade de expressão individual e a todas as liberdades democráticas», registou a 7 de novembro.

Apesar de um isolamento aparentemente fatal, nos três primeiros meses pós-revolução, os bolcheviques conseguiram consolidar a sua ditadura. Em janeiro de 1918, ao ser convocada, a Assembleia Constituinte – esperança da oposição democrática – já constituía um corpo impotente, fruto de um Estado unipartidário e da disseminação do poder dos sovietes provinciais. Como é que os bolcheviques alcançaram esta proeza? Uma parte deste sucesso deveu-se à inexistência de uma oposição militar séria durante este período crítico, quando o regime ainda se mostrava frágil. Não existiam os grandes Exércitos Brancos e as principais forças antibolcheviques eram pequenas tropas cossacas envolvidas em conflitos locais na periferia do império. No centro do país, quase não havia quem desafiasse os homens do Smolny. Os candidatos mais prováveis à chefia da oposição – SR e kadets – estavam tão certos da ruína inevitável do regime que se abstiveram de se organizar contra ele. Naturalmente, todos presumiam que os bolcheviques implodiriam por conta própria, vítimas da sua fragilidade. Sendo assim, ninguém moveu uma palha contra eles. Organizado por SR logo nos primeiros dias do poder bolchevique, o Comité de Salvação da Rússia e da Revolução era quase um organismo de fachada, sem ingerência efetiva. Elaborado por Chernov – ainda instalado no Stavka, o velho quartel-general do exército –, o plano destinado à formação de um governo socialista rival nunca saiu do papel.

O ponto crucial do sucesso bolchevique foi um programa de construção e desestruturação do Estado. Nos escalões administrativos mais elevados, procuraram centralizar todo o poder nas mãos do partido e, recorrendo ao terror, exterminaram toda e qualquer oposição política. 

Mas o ponto crucial do sucesso bolchevique foi um programa de construção e desestruturação do Estado. Nos escalões administrativos mais elevados, procuraram centralizar todo o poder nas mãos do partido e, recorrendo ao terror, exterminaram toda e qualquer oposição política. Nos escalões mais baixos, deram cabo das antigas hierarquias, entregando a ascendência aos sovietes locais, organizações de fábrica, comités de soldados e outras entidades descentralizadas ligadas aos interesses classistas. O vazio de poder surgido desta iniciativa ajudaria a minar a democracia em pontos-chave, enquanto as massas seriam neutralizadas pelo exercício do poder sobre os seus velhos inimigos de classe ou etnia, no âmbito das comunidades em que viviam. Não existia, obviamente, um plano diretor a orientar esta mudança. Tudo era feito de improviso, a exemplo do que ocorrera na revolução. Porém, Lénine tinha uma perceção instintiva da direção geral a ser tomada, algo que chamava de «dialética revolucionária». Sob muitos aspetos, esta constituía a essência do seu talento para a vida pública. A influência dos sovietes locais no campo levaria os camponeses a ver a Assembleia Constituinte como dispensável e, portanto, minaria a base política dos SR. Afinal, para quê uma Assembleia Constituinte se os agricultores tinham autonomia quase total, podendo autogovernar-se e dividir a terra da nobreza como quisessem? O «controlo operário» nos comités de fábrica contribuiria para o desmantelamento da velha infraestrutura industrial – o que os bolcheviques chamavam de «sistema capitalista» –, transferindo para os trabalhadores a responsabilidade parcial pela crise económica. Dar mais voz aos soldados e estimular iniciativas pacifistas na frente de batalha acabariam com os projetos de antigos comandantes desejosos de mobilizar as tropas contra o novo regime e de retomar a guerra. Por fim, garantir autonomia às fronteiras do falecido império completaria o desmembramento do velho Estado. Segundo Lénine, ajudaria também ao desaparecimento das relações feudais.

Sem dúvida que Lénine considerava todos estes movimentos uma fórmula capaz de extinguir o velho sistema político e abrir caminho para a criação da ditadura do partido. Vale a pena ressalvar que não há provas para esta afirmação – apenas indícios corroborados pelos factos, acrescentados a tudo o resto que sabemos a respeito dos pensamentos e ações de Lénine. É difícil aceitar a ideia defendida por alguns historiadores, segundo os quais o futuro ditador era um libertário e encorajava as formas localizadas de poder na tentativa de construir um novo tipo de Estado, descentralizado, exatamente como consta em O Estado e a revolução. Segundo esta versão, tratar-se-ia de um plano muito bem-intencionado, desviado da rota por força das necessidades concentradoras da guerra. No entanto, a conceção do Estado revolucionário de Lénine sempre foi visceralmente centralista. Ele valeu-se dos movimentos locais para aniquilar o velho regime e a frágil democracia de 1917. Simultaneamente, tencionava destruir estes mesmos movimentos, mantendo-os como forças políticas fragmentadas. Ao apoiar o campesinato contra os senhores de terra, tinha por objetivo substituir o sistema de pequenas propriedades rurais pelas fazendas coletivizadas. Ao apelar ao «controlo operário», fazia-o sabendo que o resultado seria o caos, assim reforçando a necessidade de um governo centralizado sob a batuta do partido. Ao endossar o poder dos soldados como forma de abalar a velha estrutura militar imperial, sem dúvida que pretendia construir o Exército Vermelho com base nas estruturas convencionais. Ao dar voz a diversos movimentos pela independência em relação à Rússia, o seu propósito era acabar totalmente com os estados nacionais. Toda e qualquer ação de Lénine tinha o poder como objetivo. Para ele, o poder não se resumia a um meio – era o fim último. Parafraseando George Orwell, Lénine não articulou uma ditadura do proletariado para salvaguardar a revolução; ele fez a revolução para instituir uma ditadura.

O autor, Orlando Figes

O objectivo prioritário dos bolcheviques consistia em manter controlo absoluto sobre o funcionamento da máquina estatal. Foram necessárias várias semanas para romper a resistência dos funcionários públicos. Os líderes da greve e alguns funcionários de maior destaque acabaram presos; comissários políticos passaram a supervisionar o trabalho das repartições; sedentos em servir os novos donos do poder, burocratas de menor expressão foram promovidos para escalões superiores. Em 1918, em todos os escalões, mas especialmente nos mais altos, a maioria do funcionalismo era formada por pessoal que já trabalhava para o governo no ano anterior. Todavia, nos locais onde havia desconfiança em relação aos antigos funcionários (o exemplo mais famoso foi no Ministério dos Negócios Estrangeiros), houve uma grande purga. O padrão repetir-se-ia ao longo dos primeiros anos de construção do Estado soviético. O que se viu foi o casamento de conveniências entre a exigência de lealdade apresentada pelos bolcheviques e as ambições da base partidária, que crescia cada vez mais. Um dos resultados de tal simbiose foi a ascensão de mercenários de terceira classe, oportunistas corruptos e elementos semianalfabetos, catapultados da sarjeta para posições de grande importância. O baixo nível cultural da burocracia soviética seria um legado eterno de outubro, uma herança que, posteriormente, assombraria as chefias bolcheviques.

Devido à greve do funcionalismo, que tornou impossível a formação de um governo nos moldes tradicionais, até meados de novembro o Comité Militar Revolucionário continuou a exercer a função de governo de facto. Só após um mês de governo é que os Comissários do Povo obtiveram controlo suficiente sobre as suas pastas, podendo, então, transferir autoridade executiva para o Sovnarkom. E este seria um gabinete diferente de tudo o que tinha sido visto antes. Não havia divisão precisa entre os interesses do partido e os do governo. As reuniões do Conselho de Comissários do Povo presididas por Lénine, na sede bolchevique, o Instituto Smolny, abrangiam questões partidárias e nacionais; as resoluções do Comité Central travestiam-se de decretos governamentais. Todos os primeiros procedimentos deste gabinete careciam de planeamento. Não havia ordem de trabalhos para os encontros e tudo era discutido como «assunto urgente», enquanto Lénine rabiscava as deliberações que lhe convinham. No instante oportuno, comunicava-as, para que fossem aprovadas sem mais delongas, pois poucos ousavam questioná-lo. Segundo muitos observadores, estas reuniões ocorriam numa atmosfera conspirativa, como se os bolcheviques fossem psicologicamente incapazes de transitar de uma organização política clandestina para um partido responsável pela vida de um país inteiro. Nem sequer haviam trocado os casacos de couro por fatos. Simon Liberman, de vez em quando presente nas discussões do Sovnarkom, registou:

Apesar dos esforços de um secretário obsequioso para imprimir a cada sessão o caráter solene de uma reunião de governo, não podíamos deixar de sentir que estávamos a participar em mais uma ronda de um comité revolucionário na clandestinidade! Durante anos, pertencemos a inúmeras organizações sigilosas. E, nos encontros do Sovnarkom, tudo nos parecia familiar. Muitos comissários sentavam-se à mesa sem tirarem os sobretudos e casacos; a maioria insistia em vestir medonhos casacos de couro.

O baixo nível cultural da burocracia soviética seria um legado eterno de outubro, uma herança que, posteriormente, assombraria as chefias bolcheviques.

Os bolcheviques nunca conseguiram livrar-se dos hábitos da clandestinidade. Em 1921, Lénine ainda dava a impressão de ser um conspirador, não um estadista. O fenómeno nada tinha de extraordinário – poder-se-ia considerar uma síndrome jacobina –, o que explica, em parte, a tendência do Estado revolucionário para perpetuar a violência e o terror. Mas os bolcheviques foram um passo além dos franceses, constituindo a primeira ditadura do século XX (seguiram-se as de Mussolini, Hitler, Franco e Castro) a usar a propaganda para glorificar o seu próprio passado cruel e a adotar símbolos e emblemas militares. Este culto à violência – entendida como um fim em si mesma, não um meio para qualquer alvo – serviu de eixo à autoimagem soviética.

Assim como o partido ofuscou o trabalho do Sovnarkom, este fez sombra ao Comité Executivo do Soviete. Embora a tomada do poder tivesse sido empreendida em nome do Congresso do Soviete, não agradava a Lénine governar ao lado deste ou da sua cúpula. Ele não acreditava no princípio da soberania parlamentar, nem mesmo quando o parlamento em questão era um soviete no qual, pelo menos em teoria, a maioria era bolchevique. Nas primeiras semanas após o golpe de outubro, o Comité Executivo do Soviete refreou o Sovnarkom. SR de esquerda, anarquistas e o pequeno grupo de mencheviques internacionalistas, agrupados em torno do Novaia zhizn’, cumpriram o papel da oposição. Na eventualidade de bolcheviques mais comedidos se agregarem ao seu coro, a vantagem de Lénine ficaria ameaçada. Em meados de novembro, quando os líderes da ala esquerda do Soviete Camponês se incorporaram no Comité Executivo do Soviete de Todas as Rússias, esse antagonismo tornou-se ainda mais perigoso. A 24 de novembro, a moção de censura à Duma municipal, patrocinada pelos bolcheviques oito dias antes, obteve maioria por um único voto. E, na recontagem, foi derrotada.

A junção com o Soviete Camponês foi um fator crucial na derrocada do Comité Executivo, enquanto instituição legislativa (mais uma vez, e sem muita margem de erro, pode-se afirmar que não era outra a intenção de Lénine). Aos 108 delegados camponeses acrescentaram-se uma centena, saídos de organizações revolucionárias do exército e da marinha, e outros 50 vindos dos sindicatos. De uma hora para a outra, o Comité Executivo mais que triplicara, passando a conter 366 membros, demasiados para um órgão de cúpula conseguir operar com eficiência. Em consequência, o fardo da tomada de decisões acabou transferido para o Sovnarkom.

Passado um mês da revolução, o Comité Executivo do Soviete só se reunia de vez em quando (uma ou duas vezes por semana), enquanto as discussões do Conselho de Comissários do Povo se tornavam mais constantes (uma ou duas vezes por dia). O volume de atos legislativos submetido ao Comité Executivo também diminuiu muito, pois o Sovnarkom começou a governar por decreto. A 4 de novembro, num desafio claro ao poder do soviete, o governo de Lénine arrogou-se o direito de criar leis urgentes sem, para isso, precisar de consultar quem quer que fosse. Os bolcheviques moderados votaram do lado da oposição, colocando-se contra o decreto. Porém, a proposta do Sovnarkom vingou, graças à diferença de dois votos no Comité Executivo, cujo presidente, Kamenev, se afastou do cargo e se associou à oposição, num esforço concentrado em defesa da soberania do soviete. Mas os leninistas persistiram.

Passado um mês da revolução, o Comité Executivo do Soviete só se reunia de vez em quando (uma ou duas vezes por semana), enquanto as discussões do Conselho de Comissários do Povo se tornavam mais constantes (uma ou duas vezes por dia).

O substituto de Kamenev, Sverdlov, era um defensor ardente da ditadura partidária e cumpriu à risca as determinações do chefe, de modo a concentrar todo o poder nas mãos do Conselho de Comissários do Povo. A 17 de novembro, apresentou ao Comité Executivo uma «instrução constitucional». Formalmente, o texto reiterava que o Sovnarkom devia obediência ao soviete e precisava de submeter à aprovação deste todos os atos legislativos.

Onde estava a armadilha? No facto de o documento não estipular quando é que tal sujeição deveria acontecer. Por outras palavras, o Sovnarkom podia publicar um decreto totalmente legal sem apreciação prévia do soviete, prática que se tornou cada vez mais recorrente. A 12 de dezembro, o Comité Executivo reuniu-se pela primeira vez, em duas semanas. Entretanto, o Conselho de Comissários do Povo iniciara conversações de paz com as Potências Centrais, declarara guerra à Ucrânia e instituíra lei marcial em Petrogrado e Moscovo. De acordo com Sukhanov, todas essas medidas tinham sido implementadas sem qualquer discussão com o soviete. O princípio do poder do soviete, através do qual os bolcheviques alegavam o seu direito de governar, tinha sido sepultado. O Comité Executivo reduzira-se a uma «triste paródia de parlamento revolucionário».

© Hulton-Deutsch Collection/CORBIS

Desde os primórdios do novo regime, os donos do poder dedicaram-se a combater todos os partidos que se tinham pronunciado contra os acontecimentos de outubro. Para os bolcheviques, bastava apelidar estes partidos de «contrarrevolucionários». A 27 de outubro, o Sovnarkom baniu os jornais da oposição, provocando grande alarido em vários setores. A 4 de novembro, quando a matéria foi submetida ao Comité Executivo do Soviete, os bolcheviques mais moderados votaram contra a ideia. Em parte, a censura à imprensa provocou os cinco despedimentos de membros do Comité Central e outros cinco do Sovnarkom registados naquele dia. O Sindicato dos Gráficos anunciou uma greve nacional, caso a liberdade de imprensa não voltasse a vigorar. Mas nada evitou que o Comité Militar Revolucionário mandasse esquadrões bolcheviques para partir as impressoras, confiscar papel e prender os editores. A maioria das publicações contrárias a Lénine mergulhou na clandestinidade e reapareceu logo depois com o nome levemente modificado. O boletim SR, Volia naroda, ressurgiu no dia seguinte como Volia, sendo posteriormente rebatizado de Narod. O jornal socialista, Den’ (Dia), voltou como Manhã, Meio­ ­Dia, Tarde, Vesperino, Noite, Meia­-Noite, e por aí em diante.

Os partidos de oposição mantinham-se em atividade apoiados apenas na esperança de salvação política bafejada pela Assembleia Constituinte, vista como a verdadeira voz da democracia. Afinal, ali cada cidadão estaria representado, independentemente da classe a que pertencesse, enquanto os sovietes espelhavam apenas a vontade dos trabalhadores, camponeses e soldados. Os adversários de Lénine acreditavam que a Assembleia Constituinte estava destinada a ser reconhecida como o mais alto poder soberano: nem mesmo os bolcheviques ousariam desafiá-la. Na verdade, os líderes bolcheviques dividiam‑se quanto à melhor atitude frente a esta ameaça, embora ainda desconheçamos detalhes importantes dos debates internos ocorridos a este respeito. Lénine sempre se mostrara desdenhoso para com as urnas e, já por ocasião das Teses de Abril, deixara claro que considerava o poder do soviete uma fórmula democrática superior à Assembleia Constituinte. Nos sovietes, não havia espaço para a «burguesia». E, no entender de Lénine, nem na revolução. Mas a tomada das rédeas do país apoiara-se, também, no pretexto de que era necessário garantir a convocação de eleições: muito se falou sobre a maneira como o Governo Provisório planeava convocá-las e sobre o facto de apenas um governo do soviete ter condições de conduzir a Rússia a objetivo tão nobre. Se o negassem antes de alcançar o poder, os bolcheviques deixariam cair a máscara. Além disso, os elementos mais circunspectos do partido estavam, em diferentes graus, comprometidos com o princípio de um órgão amplo mandatário de toda a Rússia. Kamenev era um defensor ferrenho da ideia de que os bolcheviques deviam lutar pelo poder no âmbito da Constituinte. E, como alguns SR de esquerda, propunha um modelo híbrido: o poder do soviete a atuar a nível local e a Assembleia Constituinte a agir como parlamento nacional soberano.

Desde os primórdios do novo regime, os donos do poder dedicaram-se a combater todos os partidos que se tinham pronunciado contra os acontecimentos de outubro. Para os bolcheviques, bastava apelidar estes partidos de «contrarrevolucionários».

Perante isto, a única saída de Lénine consistia em permitir as eleições, marcadas para 12 de novembro e, dadas as dimensões do país, com duração prevista de duas semanas. A campanha foi intensa, por vezes violenta, e o número de eleitores expressivo. A maioria do povo sabia o significado de um referendo nacional em pleno regime bolchevique. Os SR obtiveram 16 milhões de votos (38 por cento do total), quase sempre de camponeses da zona agrícola central e da Sibéria. No entanto, as cédulas não diferenciavam os SR de esquerda – que tinham apoiado a ascensão bolchevique – e os de direita. A cisão do partido acontecera há pouco tempo e não tinha havido tempo para reimprimir os papéis de votação (à exceção de um ou dois lugares). Portanto, é impossível saber que parte dos votos dados aos SR exprimiu repúdio ao regime bolchevique, embora esta fosse a questão crucial da eleição. O único dado menos incerto é que os SR de esquerda tinham a sua principal base de sustentação entre os soldados jovens e de origem camponesa, enquanto a direita do partido se alicerçava nos agricultores mais idosos ainda estabelecidos em aldeias. De acordo com a maior autoridade no assunto, Oliver Radkey, no que tocava à preferência partidária, os agricultores estavam tão divididos quanto as classes médias. Ainda assim, a direita SR provavelmente desfrutava de maior prestígio eleitoral no campo, tendo em conta a sua influência nas organizações partidárias de província e, por conseguinte, uma campanha mais combativa. Conforme o costume em vigor desde o surgimento das assembleias aldeãs, cada comunidade rural dava o seu voto a um só partido. Esta prática deve ter favorecido a direita SR, pois uma quota assinalável dos anciãos das aldeias eram-lhe favoráveis. Mas, mesmo na hipótese de os SR conservadores terem conquistado a fatia mais generosa do voto rural, ainda assim faltava-lhes a maioria na Constituinte, possível apenas com o apoio dos mencheviques (que obtiveram três por cento do total de votos), dos kadets (cinco por cento) e dos SR da Ucrânia (12 por cento). Não obstante, no que diz respeito à questão da independência nacional, o abismo entre SR russos e ucranianos era tão grande que mesmo a fatia de 12 por cento parecia improvável.

Contudo, os resultados da eleição representaram um profundo revés à alegação do governo de que governava em nome do povo. Os bolcheviques conseguiram dez milhões de votos (24 por cento), concentrados na região norte industrial, rica em trabalhadores e soldados. Em Petrogrado e Moscovo, obtiveram a maioria; mas no sul agrícola, onde o partido era extremamente débil, quase não houve quem se lembrasse deles. Imediatamente, os bolcheviques declararam os resultados injustos: relatos locais a respeito de irregularidades (propensas a ocorrer num território tão grande e atrasado quanto o russo) foram escrupulosamente esmiuçados e citados como prova da necessidade de uma nova votação. Entretanto, o partido intensificou a campanha de intimidações e ameaças contra os defensores da Assembleia Constituinte, que a 20 de novembro – oito dias antes da data prevista – teve a sua sessão de abertura adiada indefinidamente por ordem do Sovnarkom. Menos de 24 horas depois, o Conselho de Comissários do Povo emitiu um decreto dando aos eleitores o direito de retirarem deputados de qualquer órgão representativo, inclusive da Constituinte, desde que com o aval de metade dos membros de um determinado colégio eleitoral. Isso equivalia a dar aos ativistas bolcheviques o direito de reverter o resultado de eleições democráticas, bastando para tal granjear a adesão de fábricas e guarnições. A medida tinha alvo certo: os kadets, que tinham tido um bom desempenho nas cidades, concentrando os votos de centro-direita. No Comité Executivo do Soviete, Trótski defendeu a proposta, uma alternativa «indolor» ao encerramento da Assembleia, caso esta se opusesse ao princípio do poder do soviete. Resumindo: uma afirmação flagrante de que os bolcheviques não tolerariam um parlamento hostil. «Se os kadets forem maioria, a Assembleia Constituinte não terá poder», advertira. Para que a insolência não caísse no vazio, a 23 de novembro, o Comité Militar Revolucionário invadiu o Palácio Tauride e prendeu três comissários eleitorais da Assembleia. Levados ao Smolny, enfrentaram seis dias de interrogatórios, até serem liberados e substituídos pelo bolchevique Uritsky.

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Os partidos da oposição estavam furiosos com estes atos de intimidação. Parecia que os bolcheviques só pensavam em duas possibilidades: adiar a convocação da Assembleia Constituinte para um futuro muito remoto ou fechá-la de uma vez por todas tendo em conta o mau desempenho do seu partido nas eleições. A oposição formou imediatamente uma União pela Defesa da Assembleia Constituinte e convocou os seus apoiantes para uma manifestação em frente ao Palácio Tauride a 28 de novembro para forçar a abertura do parlamento. Uma multidão saiu à rua no dia marcado, mas nada que se comparasse com as 200 000 pessoas citadas pela imprensa avessa a Lénine. Uma estimativa de 50 000 parece mais verosímil, uma massa composta de estudantes e funcionários públicos em greve, embora também houvesse trabalhadores, com destaque para gráficos e artesãos qualificados. Liderados por Schreider, o incansável presidente da câmara de Petrogrado, 45 deputados eleitos para a Assembleia abriram caminho até ao Palácio Tauride, passando os piquetes bolcheviques formados por fuzileiros letónios. Já no interior do edifício, debruçaram-se sobre o primeiro ponto da agenda parlamentar, a eleição de um presidium. Sabiam obviamente que não contavam com o quorum necessário (400 deputados), mas a iniciativa tinha valor simbólico. No dia seguinte, o palácio foi cercado por soldados, encarregados de manter a população longe do edifício. E, desta vez, os parlamentares entraram, mas não puderam sair.

A manifestação da véspera ganhara o rótulo predileto dos bolcheviques – tratava-se de um ato «contrarrevolucionário» – orquestrado pelo Partido Kadet, que se viu banido e denunciado como «inimigo do povo», na mais perfeita tradição jacobina. Dezenas de líderes foram presos, inclusive diversos deputados da Assembleia Constituinte: Shingarev, Kokoshkin, Dolgorukov, Panina, Astrov e Rodichev. A justiça revolucionária não reconhecia imunidade parlamentar. A maioria dos detidos passou três meses na Fortaleza de Pedro e Paulo, em condições bastante razoáveis. Dolgorukov pôde dedicar-se à leitura e dar vivas à liberdade em vários telefonemas recebidos na cadeia. No entanto, Kokoshkin e Shingarev adoeceram (o primeiro teve tuberculose) e, tendo sido transferidos para o hospital-prisão, acabaram brutalmente assassinados por marinheiros bolcheviques. Os SR de esquerda opuseram-se às detenções, considerando-as um ato de terror. Gorki apelidou-as de «desgraça da democracia». Mas os líderes bolcheviques estavam decididos a destruir os kadets, a «força organizadora da reação burguesa». A medida não se restringia à supressão de um partido; servia, também, de declaração de guerra civil a toda uma classe social. Tentando justificar o encarceramento perante o Comité Executivo do Soviete, Lénine apelidou o Comité Central dos kadets de «estado-maior político da burguesia». Trótski chegou a alegar que os burgueses já estavam a desaparecer do cenário histórico e, portanto, a violência bolchevique contra eles funcionaria apenas como um lenitivo, um tiro de misericórdia. «Nada há de imoral no facto de o proletariado pôr fim a uma classe que está a sucumbir», sentenciou.

Lenta mas gradualmente, surgia a forma do futuro Estado policial. A 5 de dezembro, o Comité Militar Revolucionário foi extinto e, dois dias depois, as suas incumbências passaram para a alçada da Cheka, órgão de segurança que, posteriormente, ganharia o título de KGB.

As detenções dos pretensos «inimigos do povo» não se limitaram apenas aos kadets. Como no Terror Jacobino, que sempre serviu de modelo e desculpa para os bolcheviques, os tentáculos propagaram-se até às fileiras do movimento revolucionário. A Fortaleza de Pedro e Paulo hospedou também grande número de líderes SR e mencheviques (Avksentiev, Gots, Sorokin, Argunov), assim com alguns nomes importantes do Soviete Camponês. Nem mesmo Tsereteli, Dan e Chernov escaparam. No fim de dezembro, as celas estavam tão abarrotadas que, para abrir espaço, os bolcheviques começaram a libertar criminosos comuns. Alguns dos prisioneiros «políticos» mais ricos, como o empresário Tret’iakov e o antigo ministro do Comércio e da Indústria, Konovalov, pagaram para voltar às ruas.

Lenta mas gradualmente, surgia a forma do futuro Estado policial. A 5 de dezembro, o Comité Militar Revolucionário foi extinto e, dois dias depois, as suas incumbências passaram para a alçada da Cheka, órgão de segurança que, posteriormente, ganharia o título de KGB. Desde a sua conceção, a Cheka operou fora da lei: nenhum decreto publicado marcou o seu nascimento, produto de atas secretas do Sovnarkom, ao qual, em tese, estaria subordinada. A realidade, porém, era que a nova força repressiva funcionava para além de qualquer controlo político. Lénine acentuara a necessidade de haver um «jacobino operário e firme» à frente da nova «Okhrana» e encontrou este homem em Felix Dzerzhinsky, um polaco nascido na cidade lituana de Vilna, que passara metade da vida adulta em diversas prisões czaristas e, talvez por isto, tivesse motivos especiais para garantir que todos os «inimigos do povo» também sofressem atrás das grades. Na infância, Dzerzhinsky pretendera ser jesuíta, mas acabou por perder a fé religiosa. Conservou, todavia, o espírito fanático que transpareceu nas suas campanhas de perseguição política. Na reunião do Sovnarkom que criou a Cheka, afirmou que a sua tarefa seria travar uma guerra sem quartel contra os inimigos internos da revolução:

Precisamos de mandar para a frente de batalha – a mais perigosa e cruel das frentes – camaradas determinados, duros, dedicados e prontos a tudo na defesa da revolução. Não pensem que procuro a justiça revolucionária: não precisamos dela. Estamos a falar de guerra – uma guerra corpo a corpo – uma luta que deve ser levada às últimas consequências. Uma questão de vida ou morte!

Poder-se-ia perguntar porque é que os bolcheviques moderados, francamente avessos ao uso do terror político, não detiveram a intolerância dos leninistas. Afinal, a ala mais prudente do partido contava com o apoio das bases. A resposta está certamente na fraqueza psicológica dos moderados e na posição autocrática de Lénine junto dos líderes bolchevistas após a «vitória» de outubro. Nenhum dos membros da fação mais branda tinha coragem ou capacidade de liderança para defrontar Lénine. E nenhum deles pretendia correr o risco de dividir o partido. Os cinco homens que, a 4 de novembro, haviam sido suficientemente ousados para abandonar o Comité Central, mais cedo ou mais tarde fizeram as pazes com Lénine. Sempre cobarde e oportunista, coube a Zinoviev o primeiro recuo. Foi readmitido no Comité Central quatro dias depois de ter anunciado o seu próprio afastamento. Kamenev, Miliutin, Nogin e Rykov resistiram por um período mais longo: quase quatro semanas. Em maior ou menor grau, a debilidade fundamental de todos os moderados era o seu intelectualismo. Apesar de incomodados pela perspetiva de um Estado terrorista, faltava-lhes ânimo para lutar contra isso com outras armas além de palavras. Lunatcharski era o exemplo perfeito deste perfil. A 2 de novembro, num encontro do Sovnarkom, desfez-se em lágrimas e demitiu-se do cargo de comissário do esclarecimento ao ser informado de que o bombardeio bolchevique destruíra a Catedral de São Basílio. «Não aguento mais, já dei a minha quota de sacrifício. Não posso suportar tamanha barbárie», escreveu no Novaia zhizn’. Quando as notícias foram desmentidas, Lunatcharski voltou atrás, apesar de se sentir frustrado com o terror bolchevique. Um dos seus aliados políticos mais antigos, Gorki – que mais tarde o sobrecarregaria com pedidos em nome de escritores e artistas perseguidos – resumiu a situação dos moderados numa carta endereçada a Ekaterina, no Ano Novo:

É evidente que a Rússia ruma para uma nova autocracia, ainda mais selvagem. Ontem visitei o «Comissário de Justiça», um homem muito decente, porém, como todos os representantes da «autoridade», inteiramente impotente. Solicitei que libertasse Vernadsky, pelos vistos sem sucesso […]. O comportamento de Lunatcharski é espantosamente absurdo e ridículo – ele é uma figura tragicómica. Todos os bolcheviques da sua laia se tornaram repulsivamente deploráveis e infames.

A esquerda SR, que se juntou ao Sovnarkom a 12 de dezembro, também estava paralisada. De entre os principais grupos políticos de maior expressão, este fora o único a não abandonar o Congresso dos Sovietes após a tomada do poder pelos bolcheviques. A atitude levou ao rompimento definitivo com a fação SR de direita. Desde então, os dois passaram a agir como partidos distintos em luta pelo controlo das organizações SR nas províncias e pelo controlo do Soviete Camponês. Enquanto a ala mais conservadora se mostrava disposta a manter os bolcheviques isolados e concentrava todas as suas esperanças na Assembleia Constituinte, a tendência mais à esquerda acreditava que, unindo-se ao governo bolchevique – e à Cheka – poderia impedir excessos por parte dos novos donos do poder. A maioria dos líderes SR de esquerda ainda era muito jovem e, portanto, passível de incorrer no idealismo insensato: Steinberg, Karelin e Kalegaev nem sequer tinham chegado aos 30 anos, enquanto Spiridonova e Kamkov tinham apenas 22 anos. A esquerda SR inspirava-se no que considerava ser a espontaneidade revolucionária dos sovietes, tentando conciliar o extremo liberalismo com o uso exacerbado do terror. A partir de outubro, esta fação praticamente tomou conta dos sovietes locais, expressando a vontade dos camponeses e soldados radicalizados. A 26 de outubro, no II Congresso dos Sovietes, o Decreto da Terra proposto por Lénine, na verdade, espelhava, conforme ele próprio admitiria, o programa agrário dos SR de esquerda. O texto deu carta-branca às comunidades rurais para tomarem e dividirem toda a propriedade privada no campo. Foi o suficiente para convencer a esquerda SR sobre a viabilidade de um pacto com os bolcheviques. Em meados de novembro, após terem levado o Soviete Camponês a fundir-se com o Comité Executivo do Soviete de Todas as Rússias, tiveram início as negociações para a entrada dos SR de esquerda no Sovnarkom. Kalegaev assumiu o Comissariado da Agricultura; Steinberg, o «inoperante» Comissariado de Justiça, tão visitado por Gorki; cinco outros membros do partido ganharam cargos menores, incluindo a administração da rede nacional de correios e telégrafos, bastante deteriorada. Guardando para si os postos-chave, os bolcheviques usaram os SR de esquerda como uma folha de parreira, para esconder a nudez da ditadura. Ao contrário das suas ingénuas expectativas, os SR de esquerda não tiveram como cercear os exageros despóticos da política leninista e, sob quase todos os aspetos, a realidade afigurou-se diametralmente oposta aos ideais revolucionários que os alimentavam. Na sua perspetiva, o sistema semianarquista de sovietes descentralizados parecia inviável, dada a estrutura concentrada da Ditadura do Proletariado de Lénine. O apoio que garantiam à comuna camponesa, à organização das fábricas em bases e à autonomia política das minorias nacionais era incompatível com os objetivos de longo prazo do bolchevismo. E o compromisso fervoroso com as liberdades civis (Spiridonova pregara em tempos a destruição da Fortaleza de Pedro e Paulo, símbolo do Estado policial) dificilmente poderia ser assimilado pelo governo bolchevique.”

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