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“Um e dois e três, era uma vez um soldadinho”. A lengalenga encadeia a plateia, dois mil portugueses apinhados numa sala, pegados ombro a ombro, ambiente abafado, de cortar à faca, no olho do furacão, Quartier Latin em Paris. “Menino cresceu, mas não colheu de semear. Os senhores da terra, o mandam prá guerra, morrer ou matar”, continua o cantor em palco, José Mário Branco, um refratário de imponente voz e bigode, que se recusa a pegar noutra arma que não a viola. E termina, num resumo justo desta gente apátrida, soldadinhos emigrados que fizeram de Paris um campo de batalha: “Soldadinho lindo era o rei da nossa terra, fugiu para França p’ra não ir matar na guerra”.
Entra em cena, nas palavras de José Mário Branco, “un nouveau camarade Portugais”, um rapazola de cabelo ao ombro e sorriso largo, Sérgio Godinho, a segunda atração do “La Chanson de Combat Portugaise”, dia 10 de novembro de 1970, no Maison de la Mutualité, na Rue Saint-Victor, à boca da Sorbonne. O certame é organizado pela Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular, uma associação de emigrantes encabeçada por Moisés Espírito Santo, que reuniu os cantores de intervenção exilados em Paris, com participação final do visitante José Afonso. Era um protesto veemente, de viola desembainhada, contra a Guerra Colonial. E Sérgio Godinho começa pela ainda incompleta “Descansa a cabeça (Estalajadeira)”, enquanto entre a plateia, um mexerico, distribuem-se panfletos assinados pelo “Comité O Zé Povinho Topa Tudo”, a descrever a principal atração da noite, Zeca Afonso, como “um atraso de vida” que “não faz mal a uma mosca” — “Cala a boca, poisa a guitarra e toma duas colheres de bicarbonato que isso passa-te”. Começam as assobiadelas.
“O Zeca foi atacado por uns tipos de extrema esquerda, de uma maneira absolutamente infame, que começou a dar burburinho e porrada na sala”, recorda-nos Sérgio Godinho, 50 anos depois. Em palco, segue-se Tino Flores, de harmónica ao peito, outro alvo do calunioso panfleto, que acredita-se, terá sido redigido pelo PCP (M-L), mais um dissidente do Partido Comunista Português fundado em Paris — era ao gosto do freguês, desde a Frente de Acção Popular (FAP) ao Comité Marxista-Lenista Português (CMLP). “Acontece que havia grandes divergências”, justifica Tino Flores, então militante maoista, defensor da rebelião armada. “A principal diferença era a posição em relação à Guerra Colonial, que para nós era uma recusa da participação na Guerra Colonial. A nossa posição era clara: deserção com armas para preparar as pessoas para uma luta armada contra o facismo.”
Acostumado a estas andanças, Luis Cília abre com “Exílio”, o poema de Manuel Alegre que é outra biografia de quem encontrou refúgio nas canções:
“Pode ser uma ilha, uma prisão
Em qualquer parte estou presente
Tomo o navio da canção
E vou direto ao coração de toda a gente”
E quando chega a “Há-de haver”, uma nova canção para um poema de José Saramago, recomeçam as provocações, ouve-se ao fundo uma alfinetada à complexidade dos versos: “sou operário e não entendo a canção”. Luis Cília dá-lhe troco: “Se tu és um operário estúpido os outros não são”. “Eu era um provocador”, consente o próprio, que de seguida estava — sob palmas, uivos e gritaria — a apresentar José Afonso. “Ele estava a entrar e eu disse ao Zeca: ‘tu não respondas, sobretudo não respondas’. O Zeca estava muito perturbado com aquilo.”
José Afonso pausa, mede as palavras e dirige-se enervado aos detratores: “Quanto ao tal papel, estou disposto a oferecer indicações mais diretas, àqueles que esperam que os cantores façam revolução enquanto estão sentados no Café du Luxembourg”. No Café du Luxembourg, e no Café Select Latin, em Paris, os exilados esmiuçavam as parcas referências a Portugal nos jornais franceses, pregavam comícios informais, escreviam panfletos, folhetins, manifestos, e enfim, consertavam dissidências, que por sua vez geram mais panfletos, folhetins e manifestos. A sangue-frio, José Afonso dedica primeiro uma canção à “police politique”, a inédita “Na Rua António Maria da Primaz Instituição”, que obviamente não podia cantar em Portugal. E continua a ser interrompido — “É pá que excitação, pá”, responde irritado. “Benfica é amanhã não é hoje”, exalta-se José Mário Branco, a socorrer José Afonso que tentava, em vão, começar “Cantar Alentejano”. “Hoje é masturbação!”, encerra José Afonso, de tal forma perturbado, que teria um esgotamento nervoso no regresso a Portugal.
A comoção do “La Chanson de Combat Portugaise” é um momento-chave da nossa história, a meses da revolução musical de 1971 que, a partir de Paris, qual Tomada da Bastilha, é encabeçada por José Mário Branco em três álbuns pilares da canção portuguesa: Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades de José Mário Branco, Cantigas do Maio de José Afonso e Sobreviventes de Sérgio Godinho. Mas a algazarra daquela noite não era novidade para os fregueses do Maison de la Mutualité, um dos santuários da esquerda parisiense. Em 1971, por exemplo, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre lideram no Mutualité um comício de apoio ao jornal maoista La Cause du peuple, declarado proibido de circular pelo Ministro do Interior francês; e Léo Ferré descreve neste palco o Ministro como “canaille” e incita à revolução: “Comme si je vous disais d’aller tous ensemble faire la révolution”:
A extrema-esquerda parisiense estava, sobretudo desde as agitações do Maio de 68, a ferro e fogo com as instituições francesas, uma atitude de confronto que influencia diretamente os exilados portugueses. O jornal português O Comunista, editado em Paris, decreta há exatos 50 anos: “A violência é uma necessidade constante do processo revolucionário”. A multidão de refratários e desertores combatia a Guerra Colonial com as armas que dispunha — conversas de café, panfletos e cantorias — a mais de 10 mil quilómetros da frente de batalha. É neste turbilhão revolucionário que José Mário Branco, diante da desolação da guerra, da impotência do exílio, declara uma insurreição mais duradoura: a mudança irreversível na música popular portuguesa.
“Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança”
“Atravessei a fronteira a pé, sem passaporte, sem documentação, completamente ilegal”
O pretexto eram compras em Vigo, uma viagem do Porto à Galiza, e ninguém estranhou o súbito interesse de José Mário Branco, sentado atrás do Renault 4L, em caramelos e derivados. Aos 21 anos, debaixo do tiquetaque do serviço militar, José Mário Branco desaparece da vista da família da namorada, Isabel Alves Costa, sem qualquer explicação, e caminha decidido para o aeroporto, com um par de meias, cuecas e um livro de José Gomes Ferreira. Luis Cília não teve a mesma sorte: a única boleia disponível era um desertor da Guerra Colonial. “Passamos a fronteira clandestinamente, com ajuda de pessoas em Portalegre, um pastor português chamado Casado”, lembra o músico, que chega a Paris com 300 francos no bolso. “Quando fiz 21 anos tomei a decisão que não ia fazer a tropa. Por questão de consciência, não podia fazer aquela guerra”.
Em 1971, o ex-sacerdote Francisco Fanhais era um alvo a abater pela Secretaria de Estado e da Informação e Turismo, impedido de cantar, de trabalhar e suspenso da Igreja Católica. Na mesma altura, a contragosto, José Afonso tinha de voltar a Paris depois do concerto tumultuoso no Mutualité, afinal havia um álbum por gravar: Cantigas do Maio. Fanhais aproveita a boleia, exila-se em Paris, e começa a partilhar palcos com José Mário Branco e Sérgio Godinho. A história de Sérgio Godinho era diferente, estudava Psicologia em Genève, e de Genève a Paris era um tiro, ainda mais para quem já conhecia os cantos ao mundo. “Quando estive em Genève, adiei a tropa, mas quando me tornei no tal vagabundo existencial tornei-me refratário e já não tinha passaporte”, conta Sérgio Godinho. “E cheguei a Paris no final de 67.”
Tino Flores era outro cantor refratário, ainda em Portugal e com uma única solução para chegar a Paris: o salto. “Atravessei a fronteira a pé, uma estrada de três metros que separa as duas fronteiras, a salto, como se costumava dizer, sem passaporte, sem documentação, completamente ilegal”, revive o músico. O salto de Tino Flores dá-se em Vilar Formoso, uma das regiões da raia prediletas à entrada e saída de Portugal. A RTP capta em Vilar Formoso a movida de verão, os emigrantes de vacances, de mala de viagem ao ombro e com francos para gastar. E não é um regresso triunfal, sejam madames ou eletricistas, a emigração é um eterno estado de amargura. “Eu tenciono ganhar umas certas coroas, até chegar a certa conta e voltar”, comenta um dos emigrantes, órfão deste país que não lhe dava sustento. “Aquilo não é o meu ambiente, não é a minha alegria, a minha alegria é Portugal”.
Segundo Victor Pereira, em A Ditadura de Salazar e a Emigração, entre 1957 e 1974 emigraram um milhão e meio de portugueses para França. Apenas em 1971, os registos franceses apontam para 600 mil portugueses, a sua maioria concentrados em zonas periféricas de Paris, e uma parte considerável a dormir em bairros de lata — os bidonvilles. A revista Flama estima “apenas” 10 mil portugueses em bairros de lata, sem contar com as famílias a viver em atrelados, ou acotovelados em quartos minúsculos. A propagação de emigrantes clandestinos e bairros de lata eram uma pedra no sapato para o governo de Georges Pompidou — “os bidonvilles são um espetáculo que os franceses consideram intolerável”, garante o correspondente da Flama em Paris. Um compromisso é finalmente acordado em 1971: Marcello Caetano decreta a emigração clandestina uma “transgressão apenas passível de uma multa” — ao invés de crime — e uma série de acordos bilaterais regularizam e realojam milhares de emigrantes portugueses. No entanto, o Consulado de Portugal em Paris e a Secretaria Nacional de Emigração não têm mãos a medir, e neste vazio surgem as associações de emigrantes, desde a Associação Nacional dos Portugueses à Associação dos Originários de Portugal. Seria um erro estratégico do Estado Novo: são precisamente estas associações, no geral lideradas por desafetos do regime e próximos do Partido Comunista, que criam uma base de apoio aos emigrantes; e mais, durante qualquer festividade, convidam a subir ao palco cantores de intervenção, agitadores de serviço sem qualquer censura que os agarre.
“Havia uns que se interessavam e outros que não se interessavam”, considera Luís Cília, que cantava semanalmente nas festas da Associação dos Originários de Portugal, na Place du Colonel-Fabien. “Às vezes eram dez ou vinte pessoas, havia quem ficasse tocado por aqueles temas que eu cantava, mas era um trabalho de longa duração”. As plateias eram compostas por trabalhadores braçais e operários que não estavam em França propriamente para começar revoluções. “Na minha opinião, as festas davam sempre como resultado uma grande partilha musical, e havia disponibilidade dos trabalhadores emigrantes para não para fazer uma guerra, mas para pôr em causa o regime”, acrescenta Tito Flores, então um cantor de noite, e eletricista de dia. Em 71, o eletricista-cantor vendia à mão o seu primeiro disco, Viva A Revolução, uma edição independente com capa do cartunista Vasco de Castro e encarte com pensamentos de Mao Tsé-Tung. Tito Flores: “A questão essencial é que todas as posições que tomei não tinham um objetivo de carreira artística, a atitude de cantar e compor sempre foi de combate anti-fascista e anti-colonialista”.
“A primeira pessoa com quem eu contactei em Paris foi o Zé Mário”, recorda Francisco Fanhais. “E disse-lhe, aquilo que eu quero fazer aqui é o que não posso fazer em Portugal, como tens contactos com as associações de emigrantes, onde achares que eu possa encaixar-me, conta comigo”. E José Mário Branco desafia regularmente Francisco Fanhais, que agora partilha palcos com qualquer outro entretenimento disponível. “É frequente misturarem-nos com ranchos folclóricos, o que apesar de ser compreensível gera, como deve calcular, uma certa confusão”, confessa o ex-sacerdote ao Diário de Lisboa. Nesta confusão, faltou acrescentar, ainda havia os informantes da PIDE em Paris, que tinham sublinhados os nomes de Francisco Fanhais, Luís Cília e José Mário Branco — ao lado de boa gente como António José Saraiva ou Alfredo Margarido — na lista de “indivíduos adversos das instituições vigentes em Portugal”.
Há 50 anos, em novembro de 1971, em mais um evento de emigrantes de apoio aos presos políticos portugueses, é certinho, um informante da PIDE anota os nomes dos músicos que sobem ao palco: Luís Cília, Sérgio Godinho e José Mário Branco. “Canto com relativa frequência, sobretudo em clubes de jovens trabalhadores”, confirma José Mário Branco ao Comércio do Funchal. “Em geral sou pago, mas muitas vezes não sou”. E desenha um cenário da sua vida em Paris: “A minha situação atual é ter de trabalhar oito horas por dia num emprego que não me interessa nada, e à noite ir para casa trabalhar na música, ou ir cantar a qualquer sitio”. Os dias no escritório arrastam-se lentamente, seja na empresa de importação, de construção civil, ou onde está agora, uma dependência bancária. Este não era o sonho. O sonho era trocar as voltas ao mundo.
“Tudo isto hoje cheira um bocado a bafio”
Primeiro, um pequeno passo para José Mário Branco, e só depois, um salto gigante para a música popular portuguesa. Em meados de 1970, este exilado português, em Paris há sete anos, decide abandonar o emprego de escritório. O risco era considerável: a estabilidade do emprego tinha garantido finalmente um certo conforto num subúrbio a Norte de Paris, em Villeneuve-la-Garenne. E havia os dois filhos a ter em conta, mais os camaradas que faziam do sofá a sua casa: em 1971, por exemplo, o fadista José Manuel Osório está a morar naquele décimo andar em Villeneuve-la-Garenne.
“A minha mãe foi um importante garante para todos nós, o meu pai estava muito envolvido noutras coisas, e a maior parte não dava dinheiro”, revela Pedro Branco, o filho mais velho de José Mário Branco e Isabel Alves Costa. Aos 24 anos, Isabel era dona de casa, mãe de duas crianças e vendedora numa perfumaria, numa cidade estranha que adota em nome do amor. “Eles conheceram-se no Porto, pertenciam ao mesmo grupo de jovens com alguma ideologia e vontade de não se deixar abafar pelo sistema”, conta o filho de uma paixão que percorre inicialmente o Cinema Batalha, o Teatro Experimental do Porto, e as entoações abraçadas das “Canções Heróicas” de Fernando Lopes-Graça. “Quando o meu pai conseguiu fugir, a minha mãe tinha 16 anos e disse aos pais dela que estava a ‘pensar ir ter com o Zé Mário a Paris’. E os meus avós disseram, ‘sabes o que isso quer dizer, tens que ir trabalhar’. E foi”.
“José Mário Branco, habitante de Paris desde 1963”, escreve Adelino Gomes na Flama, a entrevistar o músico na sua casa, rodeado pela família. “De há um ano e meio para cá, ele dedica-se só a atividades ligadas com a música”. É noutro subúrbio de Paris, em Saint-Quentin-en-Yvelines, que José Mário Branco passa agora a maioria do seu tempo, como membro do coletivo Groupe Organon — “É uma cooperativa de produção e difusão artística que se ocupa essencialmente em promover ação cultural em ambiente urbano”, explica. A grupeta de atores, poetas e músicos agita a miudagem das escolas públicas, e ainda, parte numa digressão em celebração do centenário da Comuna de Paris que resultaria em disco.
[“Le Proscrit de 1871”:]
O associativismo era um estado de espírito intrínseco a José Mário Branco desde os tempos de militante comunista na faculdade, em Coimbra, onde estava incumbido de, segundo a PIDE, “empurrar o movimento associativo dos estudantes liceais, com vista à criação da comissão pró-associação”. “Bento” era o pseudónimo comunista, com conhecimento de causa dos problemas sociais em Portugal, a partir da sua infância rodeada de pobreza em Leça da Palmeira. José Mário era um dos privilegiados daquela aldeia piscatória, filho de uma professora de matemática e um professor primário, nunca lhe faltou nada, incluindo uma formação musical, no Conservatório do Porto e na Academia Parnaso. “Mas a infância não foi nada fácil”, sublinha Pedro Branco, que assim como o avô é hoje professor de primeiro ciclo. “Os meus avós tinham uma relação muito difícil, muito pesada, e o meu pai era o mais novo da família. E mesmo anos depois, o meu pai nunca chegou a ficar em paz com a sua infância. Os meus avós acabaram por se divorciar ainda no antigo regime.”
O Partido Comunista seria a comunidade que José Mário Branco acolheria de braços abertos. E repentinamente, ainda em miúdo, mais um trauma insuperável: o líder da célula comunista em Coimbra dá com a língua nos dentes, são todos apreendidos e despachados para a Rua António Maria Cardoso, a sede da PIDE em Lisboa. Aos 19 anos, é “preso por desenvolver atividades clandestinas e subversivas”, sintetiza a PIDE, que interroga José Mário Branco ao longo dos cinco meses que está preso no Aljube. Os efeitos colaterais da prisão permaneceram até aos seus últimos dias, uma dificuldade ao acordar e ao deitar, uma constante inquietação.
Em Paris, o músico afasta-se definitivamente do Partido Comunista quando insistem que não devia fazer sala com certas companhias, nomeadamente o fundador da FAP, Francisco Martins Rodrigues. Mas já eram outros tempos, outras vontades, José Mário Branco compreendia finalmente que, assim como os mestres Fernando Lopes-Graça, José Afonso e Léo Ferré, a sua única arma era a canção. “A música popular de José Afonso, o trabalho de recolha de Giacometti e as canções harmonizadas de Lopes-Graça, com destaque especial para a antologia de Trás-os-Montes”, resume as suas influências à Mundo da Canção. E a saudade dilacerante de Portugal leva-o a reencontrar a literatura portuguesa, depois de algumas primeiras canções em francês. Seria o próprio Lopes-Graça a estender a mão às experiências em português de José Mário Branco, aceitando editar as trovas medievais de Seis Cantigas de Amigo, gravado numa garagem com Sérgio Godinho na segunda viola e pandeireta.
Segue-se a edição independente de Ronda do Soldadinho, vendida numa capa branca em Portugal para ocultar o nome do autor. A matriz do disco entra em Portugal clandestinamente, embrulhada em fraldas usadas pelos filhos de José Mário Branco. E antes de chegarmos a 1971, ao passo em frente da nossa história, o músico teria que continuar a recuar à origem: a música tradicional portuguesa.
“Dou uma importância enorme à música. Ora, notei que há um desfasamento muito grande entre a riqueza do nosso folclore e o modo como se quer fazer acreditar certa música que pretende exprimir a alma do povo, de natureza triste (…) se a escola neo-realista deu, por um lado, coisas muito importantes e muito louváveis, ela deixou, por outro lado, essa tristeza doentia que representa hoje uma notória falta de ar fresco. Tudo isto hoje cheira um bocado a bafio, a naftalina.”
(José Mário Branco, Comércio do Funchal, 1970)
Ao reouvir a crueza irreverente das recolhas de Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti, em contraponto com o sucesso da balada em Portugal, José Mário Branco entende que não havia razão de fundo para uma canção popular portuguesa carrancuda. E mais, em última análise, apesar dos poemas de resistência, o tom lúgubre das baladas propagava uma certa complacência com o estado das coisas — leia-se a ditadura. “A canção não pode ser, de maneira nenhuma, um veículo para divulgar a poesia”, defende o músico, em contracorrente, discordando da lógica que basta um poema e arranhar uma viola. “É um grande erro”. A revolução teria que ser dos pés à cabeça, da melodia aos versos, canções tingidas de cor e alegria. Entre 1970 e 1971, José Mário Branco tem uma epifania: “Esse mito de que Portugal é um país tão triste torna o facto de ser alegre já transformador”.
“Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”
A sorte bate uma vez à porta. Entra José Afonso e entrega nas mãos do camarada António Marques de Almeida, da editora Sassetti, bobines com canções inéditas gravadas em Paris, logo quando o editor estava a engendrar uma nova sucursal, a Guilda de Música, para responder ao sucesso da Orfeu, a editora de José Afonso. Acontece que o editor de Zeca, Arnaldo Trindade, hesita inicialmente ao ouvir as bobines de um novato, José Mário Branco, e um completo desconhecido, Sérgio Godinho. Marques de Almeida não hesita, liga de imediato para Paris, e atira-se de cabeça: está contratado, trate do disco sozinho, do estúdio e o que mais for preciso, o dinheiro vem de Lisboa. “A Sassetti deu-me carta branca”, assegura José Mário Branco à Mundo da Canção, finalmente com as armas à disposição para encetar uma revolução.
A Tomada da Bastilha é nos estúdios de Château d’Hérouville, os Strawberry Studios, instalados dentro de um palacete numa aldeia pacata, a quarenta quilómetros de Paris. “O José Mário Branco conhecia o dono e inventor do estúdio, o Michel Magne, e soube que aquele estúdio estava a abrir”, garante Sérgio Godinho, que grava ali o seu álbum de estreia, Os Sobreviventes, ao lado de José Mário Branco, com supervisão do engenheiro de som Gilles Sallé. “Era fantástico, porque dormíamos lá, tomávamos o pequeno-almoço e íamos gravar, numas salas que tinham sido transformadas em estúdio”. A lógica era de residência artística, uma empreitada megalómana de Michel Magne, um célebre compositor de bandas-sonoras que transforma os 20 hectares de sua casa em dois estúdios com piscina, court de ténis, ping pong, chef de cozinha e uma adega inesgotável. E para conseguir convencer os astros do rock’n’roll, desde Marc Bolan a Elton John, instala equipamento de ponta, gravação em 24 pistas e efeitos de produção impensáveis em Portugal. “Havia um desenvolvimento tecnológico assombroso que davam possibilidades que em geral não haviam”, confirma-nos José Jorge Letria, que grava Até ao Pescoço em Château d’Hérouville, também sob supervisão de José Mário Branco. Hoje, os estúdios estão novamente em atividade, recuperados por três músicos que nos confessaram desconhecer que pisavam chão sagrado para a música portuguesa.
Tempo é dinheiro em Château d’Hérouville, mais precisamente quatro dias e centenas de contos. Em abril, José Mário Branco entra em estúdio com a lição meticulosamente estudada, dez canções detalhadas em instruções de gravação e cada instrumento com a respetiva partitura, mais os pagamentos a cada músico, e os horários de chegada e partida. “O José Mário tinha essa vertente de produzir e de líder, aquilo é-lhe natural”, nota Sérgio Godinho, e Francisco Fanhais acrescenta que, “do ponto de vista musical ele controlava muito bem todos os passos que diziam respeito à gravação, estava tudo planificado, tudo escrito”. E não era meramente uma questão orçamental, para a ambição de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades resultar em pleno era necessário transmitir uma encenação sonora, isto é, uma sincronia rigorosa de produção e arranjos. “É preciso deixar uma impressão”, desenvolve o músico à Flama. “Portanto, a noção de atmosfera é muito importante. Num instante tem de se passar alguma coisa”.
A noção de atmosfera ocorre-lhe ao ler um poema de Alexandre O’Neill, “Perfilados de Medo”, uma impressão profunda de primeiro impacto que José Mário Branco decide transpor em melodia — “sinto uma grande inclinação para dizer com uma música o que senti ao sentir o poema”, revela à Flama. O arranjo de “Perfilados de Medo” é sublime, a melodia está em constante expectativa, a antecipação da batalha, minuto atrás de minuto, até “da vida perdemos o sentido”. Outra é “Nevoeiro”, ainda mais destemida, uma trova medieval de balanço prog-rock, com o efeito metálico de vozes concertadas com órgão. E o que dizer de “Cantiga para pedir dois tostões”, uma única pandeireta a marcar ritmo, um adensar implacável de tensão, e a guitarra elétrica de Claufe Engel a espreitar pelas bordas. À exceção do milionário, dos lambe-botas e beija-luvas, os versos confirmam que mais ninguém está a salvo:
“Quanto a nós
Nós cantores da palidez
Nosso canto nunca fez
Filhos sãos a uma mulher
Nem sequer
Passa mel nos nossos ramos
Pois a abelha que cantamos
Será mosca até morrer”
“Cantiga para pedir dois tostões” é uma canção de combate, de desafio, uma das dimensões de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Uma segunda dimensão é melhor representada em “Queixa das almas jovens censuradas”, o poema de Natália Correia que sumariza a desolação de ser português em 1971: “Somos vazios despovoados/ De personagens do assombro”. É o estado de impotência do exilado que, “não é a vida, nem é a morte”. “José Mário Branco era um homem que vivia com grande sofrimento a experiência do exílio”, confidencia José Jorge Letria. “Ele tinha um grande desejo de voltar a Portugal, havia uma grande emoção de um regresso desejado que não era possível.” Pedro Branco: “Conversamos algumas vezes sobre isto, e se ele pudesse, nunca voltaria a Paris, foi um período muito duro na sua vida”. A melancolia do regresso desejado está em “Gare d’Austerlitz”, a entrada imersiva na estação de comboio de Paris, a última paragem do Sud Express:
“É evidente que uma estação de chegada como a de Austerlitz nunca deixará de ser também, na cabeça das pessoas, uma estação de partida. Eu, como os 700 mil portugueses que estão aqui por França, nunca abandono a ideia de que Austerlitz se transforme um dia numa estação de regresso ao meu país”.
(José Mário Branco, Flama, 1972)
A terceira e última dimensão de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades é a leveza da canção jocosa. José Mário Branco: “Refiro o humor como uma particularidade muito importante, pois ele é, em geral, o grande ausente da canção portuguesa. Muitas vezes a forma mais eficaz de desmistificar qualquer coisa é pô-la a ridiculo”. O aliado para derrubar o cinzentismo da canção portuguesa é o libertino Sérgio Godinho, responsável por quatro letras do disco, entre elas, o trava-línguas “O Charlatão” — “imagem tão conhecida e sempre presente da exploração do homem pelo homem, clara parábola política a uma situação nacional”, considera o crítico Tito Lívio na Mundo da Canção. “Com o José Mário rapidamente começamos a trocar informação musical”, refere Sérgio Godinho. “Ele estava mais adiantado que eu na composição, era um universo mais elaborado”.
Um segundo companheiro que salvaguarda José Mário Branco é Jean Sommer, músico francês que conhece no Maio de 68, nas cantorias em fábricas ocupadas, e autor da música que José Mário Branco “rouba” para fechar o seu LP de estreia: “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”. O músico leu o poema de Luís de Camões na Bibliothèque Gulbenkian, em Paris, e acrescentou-lhe dois versos que servem como ordem de batalha, com segunda voz de Sérgio Godinho:
“Mas se todo o mundo é composto de mudança
Troquemos-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança”
“É preciso não perder a perspetiva de ser popular e de tornar claras as intenções quando, na medida do possível, se quer dizer alguma coisa”, reflete José Mário Branco sobre a sua versão de Camões. De facto, as intenções de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades são claras: dar o tiro de partida para uma mudança na canção, e por tabela, enfrentar o regime a preto e branco — a lamúria da balada, o arcaísmo do dito nacional-cançonetismo, o folclore inofensivo, a complacência do fado, e enfim, uma ditadura. E cinco décadas passadas, a magnitude destas canções permanece intocável, há quem diga inatingível, um modelo imortal para a música popular portuguesa.
“Muitos portugueses não conhecem o seu nome. Chama-se Luís Cília”
O texto foi escrito há 50 anos, mas podia ser de agora: “Muitos portugueses não conhecem o seu nome, mas ele é um dos mais altos expoentes da verdadeira música portuguesa. Chama-se Luís Cília”. Enquanto José Mário Branco estava a gravar uma sucessão de discos em Château d’Hérouville, Luís Cília está numa digressão universitária em Espanha com Miro Casabella, perigosamente perto da fronteira. “Uma digressão é dizer muito, que a maior parte dos espetáculos foram proibidos”, desabafa o músico. Além do regime do Generalíssimo Franco censurar uma série de canções, desde “A Bola” a “É preciso avisar toda a gente”, Luís Cília ainda está no fogo cruzado com o governo português que tenta convencer o país vizinho a extraditar o músico.
[“A Bola”, de Luís Cília:]
A digressão espanhola de Luís Cília em 1971 é mais um episódio entre tantos que teimosamente afastaram um dos melhores músicos da sua geração do público português. “Eu cantava em português desde o primeiro disco que gravei. Era lógico que queria que esses discos chegassem às pessoas em Portugal, mas era muito difícil, os discos não tiveram praticamente nenhuma promoção”. Um dos primeiros poetas que musicou, Manuel Alegre, que conhece o músico em Paris, no Select Latin, sublinha-nos a importância desta obra: “O Luis Cília é um injustiçado, ele é dos poucos tipos que sabe mesmo de música e foi o primeiro a editar em Paris”. O álbum de Luís Cília em 1971 é outra distinta seleção de poemas, La Poésie Portugaise De Nos Jours Et De Toujours N3, a sua terceira edição pela francesa Moshé-Naim, de aprumo melódico, oiça-se o balanço nervoso do contrabaixista Didier Levallet em “Cântico de um mundo novo”, o fatalismo de “Dez reis de esperança”, versos de lágrimas e sangue de António Gedeão, ou a versão definitiva do clássico “Portugal resiste”, de Manuel Alegre:
“Em silêncios de morte e de convento
Tu ouvirás na língua que traíste
Palavras como o fogo como o vento
Estas palavras com que Portugal resiste”
Luís Cília resiste desde 1964, o ano em que chega a Paris e grava o embrionário anti-colonialista Portugal-Angola: Chants De Lutte. O rosto pesaroso condizia com a voz melancólica, o clamor dos exilados e abandonados, à deriva pelas ruas de Paris — “Es un muchacho delgado, tímido, de aspecto un tanto triste”, comenta o jornal La Coruña. O espírito de combate surge inicialmente na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, onde convive com os futuros líderes dos movimentos de libertação do Ultramar. Nascido em Huambo, então Nova Lisboa, seria impensável para o angolano Luís Cília combater a Guerra Colonial contra os seus próprios irmãos. No entanto, antes de partir para o exílio, uma lição fundamental, o poeta Daniel Filipe revela-lhe um salvo-conduto: “O Daniel tinha os discos do George Brassens e foi ao ouvir esses discos, aquela forma de tocar viola, que comecei a musicar alguns poemas”.
Em pouco tempo, antes de saber que havia um tal de Dr. José Afonso, Luís Cília já estava a revirar a canção portuguesa. Em Paris, torna-se uma presença estabelecida no circuito da cidade, em espetáculos de solidariedade e nas universidades francesas, companheiro de Paco Ibáñez e George Brassens, canta em Cuba para Fidel Castro, em greves com Colette Magny, e é a figura de proa nos concertos para emigrantes. “O Luís Cília foi o primeiro a pegar nos poetas e a musicá-los, é um divulgador da poesia portuguesa”, nota Sérgio Godinho, acrescentando que, “não havia ninguém de uma maneira tão clara a condenar a Guerra Colonial, a entrar em territórios mesmo de contestação ao regime”.
A condenação desaforada à Guerra Colonial tinha o seu preço, fosse pelo desinteresse das editoras em Portugal, ou pelo interesse da PIDE, Luís Cília vivia aflito de finanças. “O Cília vivia em dificuldades económicas”, atesta Manuel Freire. “Lembro-me que comemos na rua um pacote de batatas fritas e ele disse-me que infelizmente não podia proporcionar melhores condições”. Era a companheira de Luís Cília, Judite, a trabalhar numa agência de publicidade, que trazia de Portugal os últimos livros de poesia e, nas palavras do músico, “ajudava na altura das vacas magras”. O casal morava na Rue Saint Denis, epicentro da prostituição em Paris, e o músico compunha o rendimento familiar como faz-tudo da União dos Estudantes Franceses, enquanto estudava guitarra clássica e composição. “Tínhamos um problema de sobrevivência, não pensávamos muito mais que na semana seguinte”, confessa. “Mas não havia razão para voltar. Era refratário. Ao voltar seria preso.”
“A música portuguesa atinge definitivamente a maioridade”
No dia 28 de novembro de 1971, no Cinema Roma, em Lisboa, as duas cadeiras vazias em palco são uma representação mordaz do exílio. O lançamento de apresentação de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, e do EP de Sérgio Godinho, Romance de um dia na estrada, é transmitido em direto na rádio, no “Página Um” da Renascença. E o álbum de José Mário Branco que poderia ser recebido como uma insolência experimental, com Camões e rock’n’roll ao barulho, sons de locomotivas e arranjos impensáveis na canção portuguesa, é um imediato sucesso de vendas. “Consta que em três semanas o número de exemplares vendidos ultrapassou largamente os dois milhares”, escreve a Flama. Os números não mentem, estava traçado o caminho da música popular portuguesa.
No ano seguinte, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades lidera as tabelas de vendas de LPs, a par de Cantigas do Maio, e José Mário Branco vence dois Prémios de Música Ligeira, da Casa da Imprensa, para indignação dos músicos a morar em Portugal. “Considero, a nível musical, José Mário Branco inferior a vários compositores que estão a trabalhar aqui em Portugal”, reage Fernando Tordo. “O que me parece é que se estão a dar prémios a artistas que emigram”, arrisca João Maria Tudela, enquanto Fernando Guerra descreve os arranjos de José Mário Branco como “completamente infantis” e “despromovidos de qualidade”. No escritório da casa de fados O Faia, Carlos do Carmo comenta ao Diário de Lisboa: “Ouvi o LP do José Mário Branco que toda a gente diz que é uma maravilha. Acho que tem muitos erros de interpretação e que a sua popularidade se deve a um conjunto de circunstâncias”. O receio dos músicos era natural, começava uma nova era na canção portuguesa.
A receção crítica é apoteótica: “Daqui por diante, tudo o que neste capítulo seja feito, terá ‘Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades’ como inevitável termo de comparação”, assegura o Diário de Lisboa. “Com José Mário Branco, a Música Portuguesa atinge definitivamente a maioridade. Quem tiver dúvidas que oiça primeiro.” E os elogios extravasam a música ligeira, Raul Calado, um dos principais divulgadores de jazz em Portugal, pondera ao Diário de Lisboa que, “tecnicamente é a melhor gravação de música ligeira portuguesa realizada até hoje”, “que talvez venha a marcar uma época, um antes e depois de José Mário Branco”. Continua: “Uma coisa que sonhámos realizar há mais de vinte anos, o que já não podemos conseguir, porque agora está aí, perfeito”.
No final de 1971, a Flama escolhe Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades como o principal destaque musical do ano: “Setenta e um foi de facto um ano importante para a música ligeira portuguesa. Parece concretizada a primeira fase da renovação. Passada esta primeira fase de procura de crédito de novos autores e temas junto do público, as obras realizadas este ano iniciaram um novo caminho, o do amadurecimento”. A mudança era definitiva e o retrocesso impossível, o mundo não era mais o mesmo, José Mário Branco trocou-lhe as voltas, ainda o dia era uma criança.