São cinco horas de trabalho a menos por semana. Na vida de Marco Jacinto, técnico de análises clínicas no Hospital de São José, significa gozar mais uma tarde ou ter uma manhã de lazer por cada sete dias da semana. “Vai fazer diferença”, garante. “Decidi ter só um emprego. Valorizo o descanso”, afirma, convicto de que a alteração que entra esta sexta-feira em vigor é “justa”.
Durante as 144 semanas que decorreram entre outubro de 2013 e junho de 2016, Marco Jacinto trabalhou em média mais uma hora por dia. Foram 720 horas a mais, sem qualquer aumento no salário. “Não foi um aumento dramático da carga de trabalho”, reconhece. “Mas foi humilhante: foi-nos imposto de forma abrupta”, critica.
A medida foi decidida no pico da crise económica, depois de os salários já terem sido cortados e de os contribuintes terem sido forçados ao “enorme aumento de impostos”, nas palavras do então ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Agora, Marco será um dos funcionários públicos que conquistou tempo de lazer, com a entrada em vigor da alteração à lei que repõe as 35 horas semanais para os trabalhadores em funções públicas.
Se isto fosse um romance, a história terminava por aqui. Mas não é: bem-vindo à realidade da função pública, onde para cada regra existe mais do que uma exceção.
A redução do horário de trabalho era uma reivindicação dos sindicatos e dos partidos da esquerda. Foi uma promessa dos socialistas desde o tempo em que faziam oposição ao Executivo de Passos Coelho. E até chega ao terreno no dia previsto. Mas, mesmo assim, não chega sem contestação: no dia em que a função pública recupera um direito perdido, o Governo de António Costa lida com uma ameaça de greve dos sindicatos.
Da mesma forma que passar o horário de trabalho dos funcionários públicos das 35 para as 40 horas semanais gerou injustiças, agora a reversão da medida também não agrada a todos. Ninguém está contra a redução do horário, mas os sindicatos criticam o facto de ela não ser efetiva para todos.
Uma greve anunciada
Há dois tipos de vínculo às administrações públicas, e só um deles está afetado pela medida. Os funcionários com contrato de trabalho em funções públicas, como Marco Jacinto, voltam às 35 horas, mas os trabalhadores com contrato individual, que estão ao abrigo da lei geral do trabalho, continuam com as 40 horas.
Quando o diploma das 35 horas foi aprovado no Parlamento, os sindicatos receberam do Governo uma indicação: a situação dos trabalhadores com contratos individuais seria resolvida através da negociação coletiva. As negociações dos acordos coletivos até foram retomadas, mas os sindicatos estão descontentes com as propostas apresentadas até ao momento pelo Executivo.
O problema coloca-se sobretudo para os enfermeiros, uma vez que há um número muito significativo de trabalhadores que continuará no regime das 40 horas. Ana Avoila, dirigente da Frente Comum, explica ao Observador que, na proposta enviada aos sindicatos, o Governo inclui a adaptabilidade de horários e o banco de horas.
“Estão-se a aproveitar da questão das 35 horas para introduzir regras em relação às quais sempre fomos contra”, denuncia.
As estruturas sindicais estiveram reunidas durante toda a tarde de quinta-feira, e já decidiram ações de luta. O Sindicato dos Enfermeiros marcou uma greve para 28 e 29 de julho. E a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais (que representa todos os trabalhadores da Saúde, exceto médicos e enfermeiros), acompanha a iniciativa e faz greve a 28 de julho. Era uma certeza: se o Governo não mudasse de ideias, haveria greves.
Quanto vale um vínculo de trabalho?
Quando a jornada de trabalho foi estendida, em outubro de 2013, funcionários como Marco Jacinto, dos mais experientes na equipa, acabaram a ganhar menos do que os companheiros mais jovens:
“Trabalho no banco de sangue do hospital. Estou desde 1998 na carreira dos técnicos de diagnóstico e terapêutica, mas também sou licenciado em Biologia. Tenho 20 anos de experiência, sou o mais diferenciado da equipa e estou a ganhar menos do que os outros“, conta o funcionário público.
A diferença são cerca de 150 euros, num vencimento bruto de 1.050 euros. Os funcionários com vínculo ao abrigo da lei geral do trabalho foram contratados para fazer 40 horas por semana e por isso tiveram direito a um acréscimo de cerca de 14% no seu vencimento. Quando os restantes trabalhadores foram obrigados a passar também das 35 para as 40 horas ficaram todos a trabalhar o mesmo, mas com vencimentos diferentes.
“Quem recebe pelas 40 horas também ganha suplementos mais altos”, lembra o técnico do São José. “Ainda por cima, os que foram penalizados são os mais diferenciados, com papéis-chave na equipa”, garante.
Esta diferenciação resulta das dinâmicas de contratação para a função pública: com as restrições às admissões, as contratações recentes foram feitas através de contratos individuais de trabalho. Por isso, os trabalhadores menos experientes são, regra geral, os que foram admitidos para fazer as 40 horas. E que ganham mais.
Na equipa de Marco, composta por dez pessoas, cinco estão com contrato individual, os outros cinco com contrato de trabalho em funções públicas. Quando o horário aumentou, os cinco afetados passaram a fazer, em média, mais um turno por semana. Mas não foi simples, garante:
“Trabalhamos por turnos, temos sempre de assegurar as 24 horas. Foi difícil fazer uma alteração nos horários.”
Não dava para simplesmente entrar uma hora mais cedo, ou sair uma hora mais tarde. Alguns turnos já tinham duração de 12 horas, não podiam ser mais estendidos. Por isso, o que aconteceu foi que os técnicos acabaram por trabalhar mais uma manhã, ou mais uma tarde, durante uma semana de sete dias.
Na prática, em vez de apenas um turno de 12 horas — geralmente o da noite — acabava por fazer dois. Por vezes, quando os horários não batiam certo, acontecia até trabalhar 18 horas seguidas. Bastava que o turno adicional aparecesse encostado à noite em que estaria de banco.
Pelo menos, valeu a pena o esforço. Ou não?
Mário Centeno, ministro das Finanças, garantiu que não valeu a pena. “As horas extraordinárias feitas pelos funcionários públicos aumentaram no mesmo período”, foi assegurando o ministro socialista em intervenções parlamentares, como prova de que a medida não serviu para baixar os custos do Estado, conforme era esperado.
Mas os ex-ministros do PSD e do CDS juram que sim: afinal, eram cinco horas a mais prestadas pelos trabalhadores em funções públicas, num momento em que as admissões estavam sujeitas a restrições fortíssimas e em que os serviços se queixavam de falta de pessoal.
Na verdade, ninguém sabe. Ao mesmo tempo que se queixa de não ter conhecimento de qualquer estudo que tivesse fundamentado a alteração do horário de trabalho, Mário Centeno garantiu já, por diversas vezes, aos deputados da Assembleia da República, que o Executivo tinha pedido uma série de dados aos serviços e que estava a fazer um estudo sobre a medida. Mas as conclusões do tal estudo ainda não aparecerem e, entretanto, as alterações já chegaram ao terreno.
Vamos por isso aos factos (os poucos que existem). Os dados mais recentes são da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP) e foram publicados em janeiro de 2013. Fazem uma comparação dos horários de trabalho das administrações públicas dos Estados-membros da União Europeia (na altura, a 27, sem a Croácia), com base em dados de 2010.
A comparação já não será totalmente válida. Tal como Portugal, ao longo da crise económica e de dívidas soberanas muitos Estados-membros reviram as regras laborais das suas administrações públicas. A tendência foi, segundo a OCDE, para reduzir direitos, mas não é conhecido nenhum outro estudo exaustivo com dados mais recentes que inclua uma comparação completa do número de horas efetivamente trabalhadas.
Seja como for, vale a pena revisitar algumas das conclusões retiradas naquele inverno de 2013, sobre a relação entre número de horas trabalhadas e produtividade.
“Podemos afirmar com segurança que a primeira variável não é preditora da segunda, uma vez que não existe uma relação consistente entre o número de horas trabalhadas e a produtividade”, diz o relatório da DGAEP.
A DGAEP explicava que era possível identificar “disparidades muito grandes [na produtividade] em países com um número de horas trabalhadas semelhantes ou iguais”, o que levou os autores do estudo a concluir que esta “é apenas uma variável em todo o processo produtivo”. Só através da “articulação saudável” entre todas as variáveis — onde se incluem também, por exemplo, as qualificações, a motivação, a identificação pessoal com os objetivos organizacionais, as tecnologias de informação — e os próprios modelos de organização do trabalho podem “determinar melhorias na produtividade”.
No caso concreto da equipa de Marco Jacinto, a redução do horário para as cinco pessoas que são contratadas em funções públicas implica 25 horas a menos prestadas pela equipa. “Não chega a ser o horário de uma pessoa”, frisa o técnico de análises clínicas. E não fará com que a carência de pessoal se agrave ainda mais? “Essa é uma falsa questão. Já tínhamos pessoas a menos. O que precisamos não é de pôr os mesmos a trabalhar mais horas, mas sim de ter uma pessoa extra a quem possa ser atribuída uma nova tarefa”, garante.
Neste ponto, a literatura sobre o assunto dá-lhe razão. De acordo com a DGAEP, que cita conclusões da Organização Internacional do Trabalho, horários longos apresentam problemas.
“Quantas mais horas seguidas a pessoa trabalhar durante um determinado período de tempo, maior nível de fadiga e de persistência e aumento dessa fadiga essa pessoa irá apresentar”, lê-se no relatório. “A repetição deste ciclo vicioso no tempo levará a que o cansaço acumulado se repercuta numa debilidade prolongada dos trabalhadores e, consequentemente, numa menor produtividade por parte dos mesmos.”
Sinais para o exterior
Seja como for, mesmo que o número de horas trabalhadas não diga muito sobre a produtividade, tem sido lido pelas instituições internacionais como um sinal de retrocesso nas reformas executadas pelo país. Subir Lall, chefe de missão do Fundo Monetário Internacional para Portugal, já criticou a opção do Executivo.
“Presumivelmente, em alguns setores o trabalho que tem de ser feito vai continuar a ter de ser feito. Se o tempo de trabalho é reduzido, então, o pagamento vai ter de ser extraordinário”, frisou, numa entrevista à Lusa, a 28 de junho.
A crítica encaixa-se numa preocupação do Presidente da República, que depois de ponderar os vários argumentos decidiu dar “o benefício da dúvida” ao Executivo e promulgar a lei. Mas deixou um aviso: as despesas com pessoal, tal como impõe o próprio diploma que estabelece o regresso às 35 horas semanais, não podem aumentar. “Sob pena de poder vir a enfrentar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade”, avisou.
Já para Subir Lall, as garantias e promessas de não aumentar a despesa pública dadas pelo ministro das Finanças não colhem. Das duas uma: ou o trabalho está a ser feito de modo eficaz e, nesse caso, terão de ser feitas horas extraordinárias, ou os funcionários estavam a gastar as cinco horas a mais noutra coisa que não trabalho.
“Se todo o trabalho que era feito em 40 horas pode agora ser feito em 35 horas, isso pode sugerir um certo nível de sobredimensionamento em algumas partes do setor público”, argumentou o responsável do FMI.
Os alertas do FMI fazem coro com os da Comissão Europeia e o Governo já não se livra da imagem de ter retrocedido em reformas estruturais. A reversão do alargamento do horário é colocada no mesmo bolo da devolução dos salários aos funcionários públicos, ou da reposição dos quatro feriados que tinham sido eliminados pelo anterior Governo. A pressão para implementar medidas de controlo orçamental adicionais aumenta à medida que as previsões de crescimento para a economia portuguesa encolhem e a conjuntura externa se degrada. Por isso, agora é Marco Jacinto aproveitar o novo tempo de lazer. Não se sabe o dia de amanhã.