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Estávamos em 1979 quando foi pela primeira vez decretada a lei marcial na Coreia do Sul. A decisão foi tomada após o assassinato do então ditador Park Chung-hee. Esta terça-feira, 45 anos depois, o atual líder do país, Yoon Suk-yeol, anunciou de surpresa — para o país e para o mundo — a mesma decisão, alegando que a oposição está a adotar “claros comportamentos anti-Estado”. Mas, apenas cinco horas e meia depois, e sem apoio da Assembleia Nacional (nem do seu partido, nem da oposição e com muitos protestos nas ruas), Suk-yeol voltou atrás e levantou a medida.
Quando a proposta foi a votos numa reunião de emergência do órgão legislativo da Coreia do Sul, a decisão tomada por Yoon Suk-yeol no início da madrugada não foi aprovada por nenhum dos 190 deputados presentes (onde se incluem os deputados da oposição e os do partido do Presidente). De acordo com a lei sul coreana, Yoon Suk-yeol passou a estar obrigado a cumprir com o levantamento da lei marcial, mesmo que o exército tenha saído em defesa do governante eleito em 2022. “Aceitei a decisão tomada pela Assembleia Nacional de dissolver e levantar a lei marcial”, anunciou, já de madrugada na Coreia do Sul, o Presidente Yoon Suk Yeol.
Por que foi imposta a lei marcial?
Yoon Suk-yeol apareceu para uma comunicação ao país ao final do dia desta terça-feira. Anunciou a imposição da lei marcial — pela primeira vez em quatro décadas — com o argumento de que as forças na oposição estariam a adotar “claros comportamentos anti-Estado” com vista a “incitar a rebelião” contra o poder político instituído. O Presidente sul coreano acusou essas mesmas forças de “paralisarem assuntos de Estado e de transformarem a Assembleia Nacional num covil de criminosos”.
De facto, na Coreia do Sul parece haver “uma oposição apoiada pelo regime norte-coreano” e “poderá haver aqui ações norte-coreanas, que podem estar a pôr em marcha uma desestabilização no país”, reconheceu o major-general Isidro Morais Pereira em entrevista ao programa Gabinete de Guerra, da Rádio Observador.
Mas Morais Pereira ressalvou que pode haver uma outra justificação por trás, “que tem que ver com a família do Presidente”. Yoon Suk-yeol tem estado debaixo de fogo político, uma vez que a sua mulher foi acusada de corrupção e tráfico de influências — situação política que se agrava com o facto de a oposição ter chumbado o orçamento que o governo sul-coreano tinha inicialmente apresentado.
A lei marcial poderia mesmo ser aplicada?
Era essa a vontade do Presidente sul-coreano. Mas, segundo o major-general Isidro Morais Pereira, a constituição da Coreia do Sul obriga a que esta decisão seja primeiro votada (e aprovada) no Parlamento. “E os partidos [da oposição], de tendência pró-comunista, fazem parte do Parlamento”, lembra o militar.
Apesar de as forças especiais sul-coreanas terem entrado no interior da Assembleia Nacional, esta conseguiu reunir-se e votou favoravelmente uma resolução que exige o levantamento da lei marcial. No momento da votação, de forma unânime, os 190 deputados presentes não se dividiram e todos votaram a favor (os do partido da oposição e os do partido do Presidente, que inicialmente quis implementar a lei marcial).
A partir desse momento, “o Presidente vai ter de respeitar” a posição da Assembleia, explica o major-general. “O Presidente no fundo propõe, avança com a iniciativa, mas se o Parlamento não a ratificou é porque não colheu o apoio da maioria.”
O exército sul coreano saiu de imediato em defesa do presidente do país, afirmando que iria manter-se a lei marcial até que o governante decretasse o seu levantamento. Esse respaldo de um ramo das Forças Armadas não impediu, no entanto, que, ao fim de poucas horas do anúncio ao país, Yoon Suk-yeol recuasse e anunciasse o fim do estado de exceção.
Ao mesmo tempo, milhares de pessoas sairam às ruas e tentaram entrar pelos portões do Parlamento. Foram primeiro travados pela polícia e depois pelos militares. Os protestos continuaram pela madrugada. Ouviram-se gritos a pedir o impeachement do Presidente e cânticos contra a lei marcial.
Também dentro da Assembleia, para onde as forças especiais se deslocaram inicialmente de forma a travar qualquer incidente — houve bloqueios à sua intervenção. Os trabalhadores bloquearam as entradas com mobiliários para travar a sua passagem antes da votação e mesmo tendo-o feito através de janelas, que partiram, a votação acabou mesmo por acontecer.
Que restrições Suk-yeol queria implementar?
“Quando se decreta a lei marcial, há liberdades e garantias que são temporariamente retiradas aos cidadãos”, lembra o major-general Isidro Morais Pereira.
Foi precisamente isso que o general Park An-soo, nomeado comandante da lei marcial, fez, ao anunciar que estavam banidas “todas as atividades políticas”, escreveu o New York Times. As pessoas não se podiam reunir na rua. O militar decretou também que “todos os media e publicações ficam sob controlo do comando de lei marcial”. E ainda proibiu as “fake news”.
Além disto, o comandante ordenou todos os médicos (mesmo aqueles que ainda estão a estagiar), que têm estado em greve, regressassem ao trabalho nas 48 horas seguintes ao anúncio da imposição da lei marcial. Todos os que violassem as medidas decretadas seriam presos, avisou.
Quanto tempo poderia vigorar este estado de exceção?
Tipicamente, a lei marcial tem caráter temporário, mas pode ser aplicada por tempo indefinido, esclareceu a Sky News. Esta lei é normalmente imposta em situações de guerra ou em caso de emergência (como, por exemplo, por motivos relacionados com catástrofes naturais ou revoltas civis).
Quais poderiam ser as consequências? A Coreia do Norte poderia responder?
Para o major-general Isidro Morais Pereira, a posição assumida esta terça-feira pelo Presidente sul-coreano poderia servir para mostrar a “perda de poder” por parte dos Estados Unidos no que toca à mediação dos conflitos. Isto porque, “além da preocupação com a Ucrânia e com o Médio Oriente”, há agora um problema na Coreia do Sul (sendo que a tensão política, num país que, recorde-se, faz fronteira com a Coreia do Norte, não se esfuma com o levantar da lei marcial).
Ainda assim, para o especialista em Relações Internacionais, Jorge Tavares da Silva, estamos perante uma situação que terá apenas “implicações internas”, ressalvou em entrevista à Rádio Observador, afastando a hipótese de podermos estar perante o início de uma nova guerra.
“Julgo que não [há risco de surgir uma nova guerra]. Mas podemos ter uma situação interna tensa e violenta, que acontece quando há divisões políticas internas. Mas, do ponto de vista de política externa, não vejo problemas diretos com a Coreia do Norte”, disse.
Contudo, poderá haver um “impacto do ponto de vista internacional”, a partir do momento em que se trata de uma liderança “mais conservadora com um instinto populista contra políticas mais progressistas”, acrescentou Tavares da Silva. E, apesar de reconhecer que isto “não é novo”, alerta que podem ser criados “conflitos do ponto de vista regional com outros parceiros”, mas nada com uma escala maior. Ainda que, recentemente, a Coreia do Sul tivesse prometido ajudar a Ucrânia militarmente, depois do envio de militares por parte da Coreia do Norte para reforçar o exército russo.
Como reagiram os outros responsáveis políticos à decisão de Suk-yeol?
O anúncio de Yoon Suk-yeol provocou reações imediatas, incluindo de responsáveis políticos do seu próprio partido que criticaram a imposição da lei marcial. Han Dong-hoon, líder do Partido do Poder Popular (a força política a que pertence o Presidente da Coreia do Sul), foi lacónico: Suk-yeol tomou uma decisão “errada” e, por isso, o chefe de Estado devia “cessar” de imediato o caminho que estava a seguir. Dong-hoon não se coibiu mesmo de dizer que soube da decisão pelos jornalistas.
Também Lee Jae-myung — líder do principal partido da oposição, que, em 2022, perdeu a corrida presidencial por uma curta margem — considerou tratar-se de uma decisão “ilegal e inconstitucional”.
O porta-voz do secretário-geral da ONU, Stéphane Dujarric, afirmou que as Nações Unidas estavam a acompanhar de perto e com preocupação a situação na Coreia do Sul.
Kurt M. Campbell, vice-secretário de Estado dos Estados Unidos, disse também que a Casa Branca estava atenta a todos os desenvolvimentos com “grande preocupação”. “A nossa aliança com a Coreia do Sul é sólida. Temos toda a esperança e expectativa de que quaisquer disputas políticas na Coreia do Sul sejam resolvidas pacificamente e de acordo com o Estado de direito”, escreveu a Sky News.
Joe Biden, ainda de visita a Angola, recebeu informações constantes sobre o incidente. E a Casa Branca fez saber que não foi informada antecipadamente das intenções do Presidente sul-coreano.
Quando se soube do levantamento da lei marcial, a Casa Branca disse estar aliviada com a decisão do Presidente sul-coreano. “A democracia é a base da aliança entre os EUA e a Coreia do Sul e vamos continuar a monitorizar a situação”, disse um porta-voz da administração Biden, acentuando a estreita relação entre os dois países, um bloco entre a Coreia do Norte e a China.
O governo britânico mostrou-se igualmente “profundamente preocupado” com a Coreia do Sul, apelando a uma resolução pacífica e legal da situação.
E o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, considerou a situação na Coreia do Sul “preocupante”, acrescentando que a Rússia estava também a “acompanhar de perto” a situação.
Quem é Yoon Suk-yeol, o Presidente da Coreia do Sul?
Yoon Suk-yeol chegou à cadeira do poder após uma eleição presidencial renhida em 2022, que permitiu que os conservadores voltassem a liderar o país e afastou do poder o progressista Moon Jae-in, que ocupou o lugar durante um mandato de cinco anos.
Na altura, quando assumiu a presidência (em março), Yoon Suk-yeol disse que tinha como objetivo retomar as conversações com a “vizinha” Coreia do Norte e sublinhou ser relevante reforçar os laços com os Estados Unidos. O líder queria estabelecer um canal de diálogo tripartido entre as duas Coreias e os EUA, escreveu a agência Reuters.
No entanto, o sul-coreano mencionou à época que ataques preventivos à Coreia do Norte podiam ser a única forma de pressionar e contrariar o hipotético lançamento de ataques hipersónicos por parte do norte contra o território do sul.
Inicialmente, Suk-yeol defendia também os princípios da liberdade e da democracia. Mas, pouco tempo depois de ser eleito, começou a reprimir os órgãos de comunicação. Foram levadas a cabo várias operações em casas de jornalistas e em redações, acusados de espalharem fake news.
Em abril deste ano, nas eleições para o Parlamento sul-coreano, o partido de Yoon Suk-yeol foi confrontado com uma derrota pesada, que acabou com a oposição a deter maioria parlamentar. Consequentemente, a popularidade do presidente diminuiu, devido à dificuldade em implementar a sua agenda e iniciativas, assim como ao aumento dos preços e à dificuldade em comunicar com a população.