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Por cima da entrada que dava acesso ao antigo claustro do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, existe uma estreita porta em madeira. A entrada, que hoje se encontra vários metros acima do nível do chão, passa facilmente despercebida. Contudo, houve um tempo em que era por ali que as freiras clarissas que habitavam o mosteiro fundado no século XIII acediam ao interior da igreja, onde até ao século XVII se encontrava sepultada Isabel de Aragão. Foi, aliás, ainda no tempo da rainha que se percebeu que o piso original tinha de ser elevado para fugir às inundações provocadas pela subida das águas do Mondego, que em 2016, e também em 2019, provocaram grandes estragos na estrutura, levando a que fosse necessário realizar um trabalho de intervenção e restauro, que só recentemente foi concluído.
As imagens divulgadas durante o inverno de 2016 impressionaram. A água, que chegou a cobrir quase na totalidade as duas entradas laterais, era tanta que se podia navegar no interior da igreja. A Comissão Municipal de Proteção Civil de Coimbra teve de acionar o Plano Especial de Emergência para Cheias e Inundações para lidar com os incidentes provocados pelo mau tempo, que afetou também outras zonas da cidade, como o Parque Verde. Três anos depois, o caudal do rio voltou a subir, enchendo novamente a zona do antigo mosteiro, porém sem a mesma gravidade. Mas as cheias deixaram a sua marca: “Desmoronamentos, acumulação de líquenes, degradação de paramentos pelo acumular das águas durante um largo período, danos vários em percursos de visita e meios de acesso, danos nas instalações elétricas e mecânicas e inutilização do depósito de materiais arqueológicos” foram algumas das “consequências mais trágicas das cheias”, enumerou em 2019 a diretora Regional de Cultura do Centro, Suzana Menezes.
Tudo isso levou a que se encerrasse o monumento para obras de recuperação. A Direção Regional de Cultura do Centro (DRCC) negociou com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro verbas para a recuperação do edifício e dos mecanismos de proteção. A candidatura foi submetida em 2018 ao Programa Centro 2020 e foi aprovada em setembro desse ano. O plano de beneficiação, restauro e valorização do monumento foi apresentado publicamente no final de novembro de 2019 e o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha encerrado aos visitantes em agosto do ano seguinte. As obras, que deveriam ter sido concluídas em 18 meses, levaram quase três anos devido aos constrangimentos provocados primeiro pela pandemia de Covid-19 e depois pelo início da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, que dificultou, por exemplo, o fornecimento dos materiais necessários. Com a sua conclusão, o mosteiro vai finalmente ser reaberto.
A cerimónia de reabertura acontece esta segunda-feira, 26 de junho, a partir das 11h, e contará com a presença da secretária de Estado da Cultura, da diretora regional de Cultura do Centro e da presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro. Haverá dois momentos musicais, a cargo da soprano Carla Bernardino e do Coro Sinfónico Inês de Castro, durante a manhã, e um espetáculo para a infância inspirado nas lendas e histórias de Coimbra, “Canta-me um Conto em Coimbra”, pela companhia de teatro Atrapalharte, durante a tarde. Em comunicado, a DRCC destacou que, “após um extenso processo de beneficiação, restauro e valorização”, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha vai voltar “a receber visitantes, oferecendo uma oportunidade única para apreciar um rico e vasto património histórico e cultural” com características únicas que o distinguem de outros monumentos semelhantes em Portugal.
Mosteiro de Santa Clara-a-Velha: o sonho de uma nobre portuguesa que uma rainha tornou realidade
O Mosteiro de Santa Clara, conhecido como Mosteiro de Santa Clara-a-Velha desde a inauguração de um novo espaço num outro ponto da cidade, foi fundado em 1283, por D. Mor Diaz, uma dama da nobreza de Coimbra que se encontrava recolhida no Convento de São João das Donas, dependente do Mosteiro de Santa Cruz, conhecido também como Sé Velha. Em 1278, a fidalga começou a empreender esforços para a criação de um novo mosteiro feminino em Coimbra, usando para isso a sua enorme riqueza. Os monges de Santa Cruz, descontentes com o facto de D. Mor Diaz querer investir os seus bens num novo projeto, opuseram-se à fundação, argumentando que a dama era dependente do Convento de São João das Donas e que, por isso, não podia criar um novo mosteiro. A situação gerou uma contenda que durou 30 anos. Determinada, D. Mor Diaz não se deixou abater e mudou-se para o outro lado do rio, onde tinha alguns terrenos, com um grupo de religiosas de São João das Donas. Quando morreu, em 1302, deixou todos os seus bens ao Mosteiro de Santa Clara, mas este acabou por ser extinto em 1311.
O problema só foi resolvido vários anos depois, pela rainha, Isabel de Aragão, mulher de D. Dinis, que se interessou pelo projeto e o apadrinhou, refundando a casa em 1314. D. Isabel mandou construir novos edifícios, incluindo a atual igreja, consagrada em 1330, e mandou erigir um paço real junto ao mosteiro, onde se estabeleceu com a sua corte em 1325, após a morte do rei, e um hospital, concluído em 1333. O edifício hoje existente data desse período. Os arqueólogos sabem onde ficavam as antigas estruturas e que a igreja original foi aproveitada depois como Sala do Capítulo, o local onde se tomavam todas as decisões sobre o funcionamento do mosteiro, mas nada resta do mosteiro de D. Mor Diaz, um espaço muito mais modesto do que aquele que foi mandado construir pela rainha, no século XIV.
Quando o edifício foi encerrado no século XVII e as freiras clarissas transferidas para um novo espaço, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha ocupava uma área muito superior à que é hoje visível, que ia desde o local onde está estabelecido o Centro Interpretativo, por onde é feita a entrada para núcleo arqueológico, até à porta norte da igreja, ocupando todo o terreno relvado. Era um mosteiro enorme, com as dimensões de uma catedral, que era apenas ultrapassado em tamanho pelo Mosteiro de Alcobaça, fundado no século XII. Os arqueólogos só perceberam a verdadeira dimensão do edifício quando, em 1995, foi realizada a primeira campanha arqueológica no local, que pôs a descoberto parte do antigo mosteiro, nomeadamente o claustro gótico, na zona sul, o maior que se conhece em Portugal. A arqueóloga Catarina Leal, que há vários anos trabalha no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha e que esteve envolvida nos trabalhos de 1995, explicou ao Observador que se conhecia a existência de “uma ruína”, mas que não se sabia quais as suas dimensões e estado de conservação. “Ainda são visíveis as colunas e o pavimento, que estava em muito melhor estado de conservação do que imaginávamos”, disse, acrescentando que os conservadores ficaram surpreendidos com a boa conservação do espaço.
Os arqueólogos escavaram o interior e as laterais da igreja, o claustro e parte do dormitório, mas existem várias áreas do antigo mosteiro de freiras clarissas que nunca foram estudadas, como o paço da rainha, onde, ao contrário do que diz a lenda, Inês de Castro foi assassinada. O mesmo acontece com o local do hospital fundado por Isabel de Aragão. O edifício ruiu no inverno de 1559, na mesma altura que o paço, por causa de um terramoto. “Depois disso foi explorado como horta, mas nunca houve escavação”, apontou a arqueóloga. “Há muito para descobrir”, admitiu. “O resto do mosteiro está sob a relva. Estamos a falar de outro refeitório, as oficinas, o dormitório das noviças, o segundo claustro, outras dependências”, enumerou, frisando que, no entanto, não basta pôr a descoberto se não existe um plano. “Não adianta estar a escavar tudo se não se sabe o que se vai fazer com isso”, afirmou, lembrando que “espaços que são enormes” implicam custos elevados de manutenção.
A dimensão e a configuração do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha tornam-no único em Portugal. “Há uma série de características que são únicas neste edifício”, disse Isabel Leal, dando como exemplo “a cobertura em pedra, que não era comum” na época, e a presença da água, que “para muitos pode ser uma coisa muito romântica mas que, para nós, é a nossa batalha”.
Água: fonte de vida e de muitos problemas
Em 1331, apenas sete meses após a igreja ter sido aberta aos fiéis, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha sofreu a primeira inundação. As águas do Mondego cobriram o túmulo da rainha, que escolheu o mosteiro para ser enterrada, longe do marido, que tem a sua sepultura em Odivelas. Em consequência, D. Isabel ordenou que fossem feitas alterações dentro da igreja para evitar uma nova cheia. A arqueóloga Catarina Leal explicou ao Observador que a solução encontrada na altura passou por elevar o piso. “A rainha, que tinha a arca [tumular] ao fundo da igreja, viu-a ficar toda coberta de água e pensou em colocá-la num sítio que fosse seguro.” Mandou, para isso, construir um novo piso, onde o túmulo foi colocado e onde esteve durante vários séculos até à sua transferência no século XVII para o novo mosteiro, localizado num ponto mais alto da cidade e longe do rio. “Pensaram que ia resolver alguma coisa, mas na verdade não resolveu nada. Não foi suficiente para manter a água afastada, porque as cheias tornaram-se cada vez mais frequentes e maiores”, afirmou Catarina Leal.
Leal explicou ao Observador que a solução encontrada na altura passou por elevar o piso. “A rainha, que tinha a arca [tumular] ao fundo da igreja, viu-a ficar toda coberta de água e pensou em colocá-la num sítio que fosse seguro.” Mandou, para isso, construir um novo piso, onde o túmulo foi colocado e onde esteve durante vários séculos até à sua transferência no século XVII para o novo mosteiro, localizado num ponto mais alto da cidade e longe do rio. “Pensaram que ia resolver alguma coisa, mas na verdade não resolveu nada. Não foi suficiente para manter a água afastada, porque as cheias tornaram-se cada vez mais frequentes e maiores”, afirmou Catarina Leal.
O Mosteiro de Santa Clara-a-Velha foi construído junto ao rio Mondego não só porque D. Mor Diaz tinha ali alguns terrenos, mas porque a localização era “uma mais valia para a implantação” da casa, apontou Catarina Leal. O Mondego não só era uma fonte de água, como era também através dele que chegavam os bens necessários para abastecer o mosteiro. Contudo, a proximidade com o rio foi desde o início um problema e acabou por marcar a história do edifício e ditar o seu fim — depois de muitas adaptações, foi decidido em meados do século XVII a mudança das clarissas para um novo edifício, hoje conhecido como Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. Nessa altura, o piso térreo da igreja estava transformado numa cisterna e apenas o piso superior, estendido sobre os arcos, era utilizado. Os fiéis acediam à igreja através de uma janela e as religiosas entravam pela porta em madeira que ainda é visível do exterior. Esta estava ligada a um corredor construído sobre as abóbadas da galeria original. O refeitório, que ficava mais próximo do rio, há muito que tinha sido abandonado.
A insistência das religiosas em permanecer em Santa Clara-a-Velha apesar das contingências prende-se com o facto de ser o local onde estava sepultado o corpo de Isabel de Aragão, considerada santa ainda em vida e canonizada pelo papa Urbano VIII em 1625. “Era o espaço que nasceu da mão dela e que ela escolheu para a acolher depois da morte”, apontou a arqueóloga Catarina Leal. Foi apenas quando já não era possível continuar a viver no mosteiro, e após a construção do novo edifício, graças ao patrocínio de D. João IV, que as freiras deixaram Santa Clara, mas só após os restos mortais de D. Isabel terem sido trasladados. O antigo mosteiro ainda preserva o arco maneirista em calcário sob o qual devia ter sido colocado o túmulo de cristal e prata da rainha se a mudança não tivesse sido concretizada. Além de Isabel, foi também trasladada para Santa Clara-a-Nova uma neta e as principais abadessas do convento. Inês de Castro, que chegou a estar sepultada no mosteiro, em local desconhecido, encontrava-se desde a morte de Afonso IV, pai de D. Pedro I, em Alcobaça.
Novidades invisíveis, mas importantes. Centro de Interpretação também vai entrar em obras em breve
“A água foi sempre um problema”, disse a coordenadora da equipa do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, Manuela Fonseca. “Aqui, a água é quase poesia. É fonte de vida, mas também não o é. É por isso que o mosteiro está aqui — foi a proximidade com a água que levou a que fosse construído aqui, mas tem estes dois lados: o lado bom e o lado mau”, comentou a responsável, explicando que, apesar das alterações introduzidas durante a campanha de obras, o monumento será sempre afetado pelo Mondego, porque se encontra numa “cota inferior”. “Se houver uma cheia no rio, não temos como a evitar”, afirmou. “Aliás, se houver cheia, temos de desligar o sistema de bombagem, porque o coletor não consegue escoar a água, porque é mandada para o rio.” Graças à intervenção que foi realizada e o reforço do sistema de bombagem, “quando o rio regressar ao seu leito e o coletor conseguir suportar, podemos ligar o sistema e não precisamos de qualquer outro apoio para escoar a água, porque foram colocadas bombas que têm uma capacidade muito grande de funcionamento”.
Questionada sobre se o monumento estará sempre sujeito a danos provocados pela água, Manuela Fonseca disse que “qualquer cheia provoca sempre danos” e que o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha “já passou por muitas”. “Vamos considerá-lo como um monumento que precisa sempre de apoio de conservação e restauro. Aliás, temos duas conservadoras-restauradoras na equipa. É óbvio que qualquer situação de cheia implicará sempre uma beneficiação. O facto de ser um monumento aberto [não tem portas e as janelas não estão fechadas] também levanta algumas questões que o fragilizam. As aves que entram, e algumas delas nidificam, são um problema e estamos constantemente a tentar encontrar soluções”, afirmou a responsável, apontando que os pombos, “aves extremamente inteligentes”, têm encontrado sempre forma de fugir às armadilhas. Na sexta-feira, o mosteiro recebeu a visita de um falcoeiro, que vai trabalhar juntamente com a equipa para manter as aves afastadas. “Uma estrutura que está fechada não está tão sujeita a chuvas e intempéries”, a pombos e andorinhas, que vão entrando e saindo pelas várias janelas do edifício.
Apesar de diferentes áreas do mosteiro terem sido alvo de obras de beneficiação, restauro e valorização, estas são pouco visíveis. Talvez apenas a limpeza da fachada seja evidente para quem passa regularmente por aquela zona da cidade. Porém, como destacou Manuela Fonseca, a intervenção foi fundamental “para a salvaguarda do equipamento”. A coordenadora apontou que, além do reforço do sistema de bombagem, que será decisivo caso seja necessário retirar grandes quantidades de água, foi necessário fazer várias reparações, nomeadamente no sistema elétrico, que ficou danificado. O sistema de rega também teve de ser arranjado, assim como os passadiços em deck de madeira, que ligam o Centro Interpretativo à igreja. “Ficou tudo danificado”, declarou a responsável, considerando que, “apesar de tudo, o monumento acabou por resistir bastante bem”.
De entre os trabalhos realizados recentemente, Manuela Fonseca destacou o reforço do sistema de bombagem. “Tínhamos quatro furos ao longo do septo e havia bombas na igreja, mas agora temos três conjuntos de bombas que foram reforçadas. Temos duas na cabeceira e duas junto à casa do paço [no exterior], o que significa que temos dez bombas com capacidade para retirar água. Funcionam em fases diferentes. Não estão sempre ligadas em simultâneo, mas é significativo”, afirmou. A coordenadora revelou que, durante os trabalhos feitos na igreja, foi descoberto um esqueleto de um jovem, provavelmente um militar, que tinha umas esporas de ouro. Desconhece-se a sua identidade.
No decorrer das obras, foi construído um armazém para albergar o rico espólio arqueológico do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, algum do qual em exposição permanente. Este armazém vem substituir a casa em madeira que ficou danificada durante as cheias, que destruíram ainda a horta monástica, que servia para explicar aos visitantes o que era cultivado no mosteiro. A plantação será também recuperada.
Manuela Fonseca revelou que o Centro Interpretativo entrará em obras em breve, mas que ainda não há data para o início da intervenção. Durante este período, o mosteiro permanecerá aberto e visitável. A responsável antecipou muitas visitas para este verão, especialmente no início de agosto, quando o monumento receberá algumas iniciativas organizadas no âmbito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Independentemente disso, “há muita curiosidade, há muita vontade em vir”. A partir de segunda-feira, as portas vão estar abertas.