Reportagem em Menasalbas, Espanha
“O teu pai foi comido pelos cães.”
Era assim que a mãe de Salud Gomez Sánchez respondia sempre que a sua filha lhe perguntava pelo pai. “Mataram-no e depois deram-no a comer aos cães.”
“A minha mãe nunca me escondeu nada”, recorda, agora com 79 anos, numa conversa com o Observador. A cada pergunta que a filha lhe lançava, a mãe respondia-lhe com a crueza dos factos que lhes assaltaram a vida na noite de 2 para 3 de abril de 1939.
A guerra tinha acabado pouco antes, depois de quase três anos em que Espanha ficou dividida entre republicanos e nacionalistas. Estes últimos acabaram por vencer o conflito que, entre 17 de julho de 1936 e 1 de abril de 1939, se estima ter matado cerca de 200 mil pessoas. Era 2 de abril e Bernardino Gomez Sánchez, 29 anos, tenente do Exército Popular da República, decidiu voltar à sua terra, Menasalbas, uma aldeia perto de Toledo onde vivem menos de 3 mil pessoas e que é conhecida pelo cultivo de gado. Era lá que tinha a mulher e a filha, Salud, com apenas dois anos. Depois da rendição dos republicanos, estava pronto para retomar a sua vida. Antes da guerra tinha sido carvoeiro — e era carvoeiro que pretendia ser depois dela.
Não teve essa oportunidade. Quando entrou em Menasalbas, foi capturado por brigadas de civis. Aqueles que tinham sido seus vizinhos e em tempos foram rojos (“vermelhos”, como os franquistas chamavam pejorativamente aos republicanos) tinham passado para o outro lado. Pegaram em Bernardino e levaram-no até a uma prisão improvisada (uma casa de pedra que antes da guerra era a Casa do Povo e que atualmente é o Museu Etnográfico de Menasalbas), onde já estavam outros antigos combatentes republicanos e também civis que foram sinalizados como anti-franquistas. Entre eles, estavam menores de idade — um rapaz de 13 anos, um de 16, irmão de Bernardino, e um terceiro com 17. Ao todo, eram 16 prisioneiros.
Durante horas, foram torturados pelos seus carrascos, que entretanto os levaram para um outro edifício da aldeia. Depois, já de noite, os 16 anti-franquistas foram atados aos pares e, sob escolta, foram obrigados a caminhar até uma parede exterior do cemitério de Menasalbas. Ali, contra o muro, foram executados. Depois, enterraram-nos.
Mas esta última parte Salud não sabia. A sua mãe sempre lhe dissera que os corpos tinham sido deixados ao ar livre e que tinham trazido cães de propósito para os comerem. Afinal de contas, fora também isso que lhe tinham contado depois de ter ficado viúva.
Salud cresceu sempre com o rótulo de ser filha de um rojo. A primeira marca desse facto era o seu nome. Salud era a maneira como os republicanos se cumprimentavam, em vez do convencional hola. “Quando a guerra acabou e o Franco passou a mandar, quiseram mudar-me o nome”, conta. “Mas a minha mãe disse-lhes que nem pensar. Disse-lhes que o meu nome era Salud, como o da Virgen de la Salud, e que nesse caso não podiam mudá-lo, porque era religioso”, diz, recordando a conveniente mentira que a sua mãe deu às autoridades de então. “Tiveram de levar com o meu nome. E até hoje continuam a levar com ele.”
De vez em quando, perguntavam-lhe quem era o seu pai. Nessas alturas, ela fazia que ouvia mal e respondia-lhes com o nome da mãe. Tinha receio de que os poucos que não soubessem quem tinha sido Bernardino Gomez Sánchez passassem a ter esse conhecimento. Já lhe bastavam as outras crianças que, talvez por ouvirem os pais dizerem-no em casa, lhe atiravam à cara com maldade que era filha de um rojo. Outros, diziam-lhe o mesmo do que a mãe: “O teu pai foi comido pelos cães”.
Assim pensou Salud ao longo dos anos — desde criança, passando pelos anos de adulta, antes e depois da Transição Democrática, que se seguiu à morte de Franco, e até ao século XXI. Uma vida, portanto. Até que, em 2010, isso mudou.
Três anos antes, em 2007, com o impulso do Governo socialista liderado por José Luiz Rodríguez Zapatero, o Congresso dos Deputados aprovou a Lei da Memória Histórica, com a oposição do Partido Popular, já então liderado por Mariano Rajoy. 32 anos depois da morte de Franco, a lei estabelecia que, por exemplo, as ruas e praças com referências a figuras daquela época teriam de mudar de nome. Para lá do simbólico, havia o compromisso de que fossem investigados os crimes do franquismo, que o Congresso dos Deputados então condenava pela primeira vez desde o fim da ditadura. E, mais importante para Salud, a lei dizia que “o Governo, em colaboração com as administrações públicas, elaborará um protocolo de atuação científica e multidisciplinar que assegure a colaboração institucional e uma intervenção adequada das exumações”. Além disso, havia o compromisso de o Estado “subvencionar as entidades sociais que participem nos trabalhos”.
Atualmente, esse trabalho está parado. Se Mariano Rajoy se opôs à Lei da Memória Histórica quando estava na oposição, quando chegou ao poder tratou de revê-la. Logo em 2012, reduziu em 60% (de 6,2 milhões de euros anuais para 2,5) os apoios dados para as exumações de vítimas e aboliu o grupo Vítimas da Guerra Civil e da Ditadura, um organismo criado pelo Governo de Zapatero que coordenava esses trabalhos. E, em 2013, o Orçamento do Estado deixou de prever qualquer financiamento para este fim.
A esquerda quer falar sobre a guerra civil e a direita mantém o silêncio
Mesmo com o passar dos anos, a guerra civil e a sua memória continua a ser uma questão premente na política espanhola — e, quase 80 anos depois, com linhas divisórias tão claras quanto as daquela altura. À direita, os programas eleitorais do PP e do Ciudadanos não referem qualquer iniciativa neste campo. À esquerda, o caso muda de figura. O PSOE defende a retomada das exumações e refere que “o Estado deve assumir diretamente a gestão das políticas e ações de busca da verdade, justiça e reparação das vítimas” — indo ainda mais longe do que a lei de 2007, que dava essa responsabilidade a entidades privadas, ONG e grupos de cidadãos. O Unidos Podemos quer “elaborar um mapa integral de fossas comuns” para depois “desenhar um futuro plano integral de exumações”.
Assim, a esquerda propõe voltar àquilo que a direita anulou, retomando as buscas e escavações de fossas que aconteceram um pouco por toda a Espanha depois da lei de 2007 ter sido aprovada. No entanto, não deve ser esquecido que estas já existiam antes de 2007 — mas também é factual que a partir do momento em que houve luz verde de Madrid, o número de esqueletos desenterrados subiu exponencialmente. Desde 2000 até à aprovação da lei, foram exumados 973 cadáveres, de acordo com um estudo do médico forense Francisco Etxeberria. Depois da lei e até 2011 — ano em que o Governo de Mariano Rajoy alterou a lei e começou a reduzir o seu financiamento —, o número subiu para 4 768. Entre estes, estavam os 16 de Menasalbas.
Foi fácil encontrá-los. Em maio de 2010, a neta de um dos executados de Menasalbas, que vive em Valência, fez um apelo público para que se tratasse de encontrar o que restava do avô. Foi aqui Jesús Sánchez Rodríguez, genro de Salud e carpinteiro daquela aldeia, agora com 57 anos, entrou em cena.
“Há muito tempo, muito mesmo, que procuro toda a informação que posso sobre este tema”, diz ao Observador. Um dia, decidiu abordar um homem que à altura das execuções tinha 13 anos e que sempre viveu perto do cemitério. “Já me tinham dito que ele sabia ao certo onde era a fossa. Como sabia que ele é de esquerda, sabia que estava à vontade para falarmos” recorda. Quando falou com o ancião, este apressou-se a apontar-lhe para a parede exterior do cemitério onde os 16 de Menasalbas fora executados e depois enterrados. “Se já não estiverem aí, foi porque entretanto os tiraram”, contou a Jesús, recordando-lhe que no dia seguinte à matança tinha visto sangue no muro. O carpinteiro perguntou-lhe se alguma vez tinha falado daquilo com alguém. “Não. Nunca ninguém me tinha perguntado nada.”
“Aqui no nosso pueblo, toda a gente é direita, sabes?…”
Falar da guerra civil em Menasalbas, tal como um pouco por toda a Espanha, é o mesmo que mexer numa ferida que, acredita-se ou quer-se acreditar, já está sarada. Mas há muitos que discordam dessa avaliação e para quem a ferida continua aberta. No entanto, sobre estes prevaleceu o pacto de olvido (pacto de esquecimento) feito após a Transição Democrática, oficializado pela Lei da Amnistia de 1977. Seguiram-se anos de silêncio sobre as atrocidades da guerra civil — cometidas pelos dois lados — e também das que foram cometidas nos anos da ditadura, que começou em 1939 e durou até 1975.
“O que motivou este silêncio foi um medo atávico do passado, o receio de que se repetisse a confrontação sangrenta da Guerra Civil Espanhola”, escreve o jornalista e correspondente do The Guardian em Madrid, Giles Tremlett, no livro “Fantasmas de Espanha — Viagens pelo presente escondido de um país” (Alêtheia Editores, 2006). “Hoje, parte da piada é a de que o hino nacional é um dos poucos hinos nacionais do mundo que não têm letra. As velhas palavras franquistas foram retiradas depois da sua morte, mas não foram substituídas por quaisquer outras.”
Antes de concordar em dar uma entrevista ao Observador, Jesús cita alguns receios. Não quer falar na rua sobre o assunto. Tem medo que “as moscas” o oiçam. “Aqui no nosso pueblo, toda a gente é de direita, sabes?…”, explica, dentro do único café “de esquerda” da aldeia. A partir da porta do café, dá para ver o monumento pelos “caídos por Espanha e por Deus”. Colocado dentro da propriedade da Igreja, este consiste numa cruz com quatro metros de altura. Aos pés, destaca-se o nome de José António Primo de Rivera, o fundador da Falange, que foi executado em 1936 pelos republicanos. Por baixo deste, está uma lista de homens da aldeia que morreram a lutar por Franco. Tudo isto numa praça que até há poucos anos lhe fazia homenagem: a Plaza del Generalisimo, hoje Plaza de España.
Se o PP conseguisse ter, a nível nacional, os resultados que tem em Menasalbas, palavras como “impasse” ou “bloqueio” estariam bem longe do léxico da política espanhola. Aqui, o município pertenceu sempre ao PP. Nas últimas eleições autárquicas, em 2015 os conservadores tiveram 59% dos votos. E, nas legislativas de dezembro do mesmo ano, ganharam com 65%.
Para Jesús, que arregaçou as mangas para que a exumação fosse para a frente, esta foi uma barreira difícil de transpor. O primeiro passo foi fazer uma escavação inicial, para confirmar que ali estavam mesmo os corpos dos 16 de Menasalbas. “Fui ter com um tipo daqui de Menasalbas que tem uma escavadora para ver se ele nos podia ajudar. Mais uma vez, só fui ter com ele porque sei que é de esquerda. Mas depois ele perguntou-me o que é que íamos fazer”, recorda Jesús. “Quando lhe explicámos para o que era, disse logo que não. Ele é de esquerda, mas teve receio de se meter nisto. Tivemos de ir a uma aldeia aqui ao lado, onde a câmara é socialista, para arranjar uma escavadora.”
Não demoraram muito tempo a encontrarem ossos. Na noite de 2 para 3 de abril de 1939, os franquistas que mataram os republicanos não os enterraram mais fundo do que a meio metro abaixo do chão. Durante mais de 70 anos, menos de quatro de palmos de terra esconderam-nos da luz.
Após a descoberta, Jesús e outros familiares das vítimas entraram em contacto com o Foro Por La Memoria, uma organização pró-republicana que faz pela denúncia dos crimes do franquismo. Estes juntaram um grupo de 60 voluntários, entre arqueólogos, antropólogos, especialistas em ciências forenses, entre outros, para fazerem a exumação dos corpos. Partiram para Menasalbas.
Os trabalhos começaram em julho de 2010 e durariam uma semana. Durante esse tempo, lamenta Jesús, nenhum dos voluntários foi bem recebido em Menasalbas. “Havia gente que lhes gritava insultos quando eles passavam”, recorda. Quando voltaram ao local do crime para iniciar o segundo dia de escavações, foram surpreendidos por um graffito que dizia: “Não vão acabar connosco. Viva Franco, sempre nos nossos corações”. A partir daí, foi montado um grupo de vigilância noturna.
Também a autarquia colocou restrições. Quando lhes foi pedido que cedessem um pavilhão da autarquia para dar guarida aos 60 voluntários, a resposta foi negativa. “Tiveram de ir para San Martín de Montalbán, uma aldeia aqui ao lado, onde a câmara é socialista, porque aqui não davam nada”, Jesus tornou a lamentar. O Observador tentou marcar uma entrevista com a autarca de Menasalbas, Marina García Diaz-Palacios. O pedido foi recusado.
No final das exumações, os corpos foram levados para um laboratório em Barcelona, para serem identificados através de uma análise do ADN. Um ano depois, voltaram para Menasalbas, onde foram enterrados. Desta vez, no cemitério, com direito a uma cerimónia. Por decisão das famílias, os esqueletos foram colocados em caixas separadas, mas sepultados todos sob a mesma lápide. Esta foi paga pelo Estado, conforme a lei do Governo de Zapatero estabeleceu. Sem cruz, com uma estrela e o busto da República, lê-se nela: “O vosso sangue faz o nosso caminho, de memória e liberdade”.
Salud lembra esse dia com uma “emoção grandíssima”. “Foi muito importante ver o que restava do meu pai, depois de uma vida inteira a ouvir que os cães o tinham comido”, diz. “Quando recuperaram o corpo do meu pai foi uma alegria enorme. Para mim, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Mas para os daqui, para os outros… A eles é que não lhes deu nenhuma alegria.”
“Os republicanos mataram muita gente, bastava que lhes apetecesse”
María está sozinha na Igreja de Santa María Magdalena, no centro de Menasalbas. Aos 86 anos, costuma vir até esta igreja para ajudar nas limpezas. É delas que se ocupa, no altar, limpando de forma cuidadosa todo o pó que consegue apanhar com um pano cor-de-laranja. “A nossa igreja é bonita”, começa por dizer. “Mas antes dos rojos é que era uma coisa lindíssima de se ver. Antes de eles terem destruído tudo.”
Aos 86 anos, esta costureira e empregada de limpezas reformada, ainda guarda recordações dos tempos da guerra civil espanhola. “Da minha família, os rojos levaram dois dos meus irmãos para combater. Ainda eram pequenos, tinha só 16 e 17 anos. Isto aqui era um pueblo de rojos“, recorda. “Não tinham como escapar e foram obrigados a ir combater para Toledo.”
Quanto à igreja, María — que preferiu não ser fotografada nem revelar o seu apelido — nunca entrou nela até Franco vencer a guerra. “Na minha família éramos todos católicos, mas não podíamos assumi-lo”, recorda. “Os republicanos mataram padres, mataram católicos, mataram quem tivesse um pedacito de terra maior do que o dos outros. Mataram muita gente, bastava que lhes apetecesse”, diz, visivelmente irritada. A voz começou serena, mas quando toca neste tema já a faz ressoar pelas abóbadas da igreja. Hoje, é sabido que durante a 2ª República foram mortos 4 184 sacerdotes, 2 365 frades, 283 monges, 13 bispos e mais de 3 mil fiéis.
Segundo conta María, logo em 1931, quando começou a 2ª República, a igreja de Menasalbas começou a ser espoliada. “Partiram coisas, queimaram imagens. Tudo coisas muito preciosas. Foi uma barbaridade. No final, fizeram disto uma cocheira!”, lembra-se. “O meu pai dizia-me que a igreja era lindíssima.”
Depois da guerra, foi sendo recuperada, até ao atual estado. Parece uma igreja como as outras — nem muito austera, nem muito vistosa. “Se está assim, foi porque levou muito tempo a ser melhorada”, diz María. A isso, dá graças a Deus e uma outra pessoa em particular: “Tenho a agradecer a Franco por isso”.
Porém, María não se fica por Franco. Quando fala da Igreja, com i maiúsculo, tem mais a quem agradecer: “A Franco agradeço por ter ajudado a Igreja a levantar-se. Ao PP, agradeço por terem continuado isso”.
À semelhança de muitos em Menasalbas, María nunca votou noutro partido além do PP. “Voto sempre neles porque são os que mais gostam da Igreja e são os únicos que lhe querem o melhor. Os outros não. Os outros gostam de dizer outras coisas, gostam de atacar a Igreja por tudo e por nada”, diz, para depois resumir: “Não gostam de nós.”
As provas de María, além de estarem na história, estão no próprio cemitério. Mais propriamente na lápide dos 16 de Menasalbas, onde no lugar de uma cruz estão símbolos republicanos e esquerdistas. “A mim parece-me muito estranho e mau gosto haver uma lápide num cemitério paroquial sem uma cruz”, aponta. “Se o sítio é católico, deviam ser como os outros. Mas não quiseram ter uma cruz. Puseram para lá uma coisa qualquer. Isto ouvi eu dizer, que eu nunca me aproximei de lá.” O cemitério de Menasalbas não chega a ter uma área de metade de um campo de futebol. Para ver a lápide republicana, bastaria ir até à ponta do terreno que fica do lado oposto à entrada. Mas María recusa-se a fazê-lo. “Nunca fui àquele lado nem hei-de ir. Para quê?!”
Para María, as exumações foram um erro. “A ferida já estava sarada. Já estava tudo esquecido”, refere. “Não havia necessidade de irem mexer naquilo. Há sempre gente que insiste em falar de coisas que já demos por terminadas. E isso só cria mau ambiente.”
“Comunista cabrão. Viva Franco!”
Mau ambiente foi o que Jesús, o genro de Salud, sentiu na pele meses depois das exumações de julho de 2010. Desde então que nunca mais voltou a encontrar trabalho. Em tempos, o carpinteiro era convocado por todos para fazer e montar portas ou construir corrimões. Mas, a partir do momento em que participou ativamente nas exumações, o telefone deixou de tocar. “É verdade que o setor da construção estava em queda e que eu na altura já tinha pouco trabalho”, concede. “Mas desde que começámos a exumação, fiquei sem trabalho de forma súbita. Nunca mais tive nada. Nem aqui, nem nas aldeias em voltas. É um pouco estranho, não?”
A partir de novembro daquele ano, começou a ser alvo de ataques. Primeiro, entraram-lhe num armazém. “Partiram vidros, queimaram coisas que eu tinha lá dentro, viraram tudo de pantanas”, queixa-se. Do lado de fora, escreveram na parede branca: “Comunista cabrão. Viva Franco!”. Três semanas depois, riscaram-lhe a carrinha de trabalho e cobriram-na de azeite queimado. Outras três semanas mais à frente, foi a vez de lhe meterem um petardo na caixa de correio. Da segunda vez que lho fizeram, conseguiu ver quem eram os delinquentes. “Uns chavalos de 16 anos, imagine-se”, diz, rindo de forma nervosa. “Todos de extrema-direita, claro. Um deles andava a ler umas coisas na internet, andava por lá a dizer que era franquista, que era nazi, que era tudo… E depois influenciava os amigos.” Mais tarde, recebeu um pedido de desculpas do pai de um deles.
As inclinações políticas de Jesús nunca foram segredo em Menasalbas. Afinal, nos anos 90 chegou a ser candidato à autarquia pela Izquierda Unida e mais tarde liderou o PSOE local. “Aí, nunca houve problema nenhum”, recorda. “Mas assim que pusemos as mãos na terra, eles começaram a aparecer.” Para este carpinteiro de 57 anos, a explicação é simples: “As pessoas não querem saber, nem querem lembrar, que os seus pais e os seus avós foram em tempos assassinos”.
Sentado numa mesa do Restaurante Cruce, um ponto de encontro para os ganadeiros e latifundiários de Menasalbas, Gonzalo Ajofrin Ramírez aproveita a pausa para almoço para ver a repetição de uma tourada que acontecera no dia anterior em Alicante. Aos 46 anos, é um respeitado ganadeiro da aldeia. Também ele é um eleitor fiel do PP. “Não é por gostar necessariamente do PP, mas porque são eles que têm as ideias mais próximas daquilo que eu defendo”, justifica. Que ideias? “As do trabalho. O valor do trabalho é muito importante para mim. E a direita é assim: quer trabalhar”, diz, tirando os olhos da televisão. “Aos de esquerda não lhes agrada muito trabalhar. Não é bom, custa muito, não gostam. Querem ser todos na Andaluzia, que ficam em casa sentados à espera de subsídios. Aqui somos diferentes.”
O tom de Gonzalo, sorridente e descontraído, muda bruscamente quando lhe perguntamos o que pensa das exumações. “Não deviam ter ido lá”, diz, de um jeito lacónico que não tinha até agora. “Não fazia falta a ninguém. Aqui morreram os da direita, morreram os da esquerda. Morreram todos. E isso já passou tudo”, explica. “Esquerda, direita, Franco, [Santigo] Carrillo [do Partido Comunista Espanhol, que liderou desde os tempos da ditadura, em 1960, até 1982]… Já passou tudo. Há que esquecê-lo.”
Ainda assim, há algo que Gonzalo não esquece, nem perdoa, no episódio das exumações: o facto de a lápide dos 16 de Menasalbas ter sido paga pelo Estado espanhol. “Por mim, podem fazer os funerais todos que quiserem à vontade. Mas eles que os paguem!”, diz de voz alta. “Porque a mim ninguém me vai pagar nada quando eu for para debaixo da terra.” Perguntamos-lhe se acha que a cruz dedicada a Primo Rivera na praça principal da aldeia é um monumento franquista. “Monumento franquista? Sim, tudo bem, é um monumento franquista, pois que o seja. Mas, assim sendo, o outro é um monumento Zapaterista.”
Não demora muito até Gonzalo se levantar da mesa, cortando a conversa cerce. “Já chega de falar da guerra. Já acabou. Há conversas que não se têm”, diz, para depois se levantar.
Salud discorda. “Foi uma guerra. E sei que as guerras são sempre feias. O que eu mais quero é que nunca volte a haver outra. E enquanto esta geração for viva, temos de falar da guerra. Não nos podemos esquecer nem podemos deixar que não se fale do que se passou”, afirma. “Guerra é guerra. Os que ganharam, ganharam. Os que perderam, perderam. Mas, para muitos, a guerra ainda não acabou.”