O poder de uma lista? No pico do verão de 1996, o co-fundador da CNN Ted Turner, à data casado com a atriz Jane Fonda, dava uma ideia no valor de um milhão de dólares — ou de vários milhões —, ao sugerir a criação de um ranking dos maiores filantropos do país, isto é, quem dava mais em vez de quem tinha mais. Em entrevista à colunista Maureen Dowd do The New York Times, as dores de crescimento eram evidentes: dois anos antes, a mão de Truner tremera na altura de passar um cheque de 200 milhões de dólares à caridade (dinheiro alocado à educação e ao ambiente) porque, ao fazê-lo, arriscava-se a perder o lugar cativo na cobiçada lista dos 400 homens mais ricos dos EUA assinada pela Forbes. O poder de uma lista!
É possível recuar até à chamada “Gilded Age” (“Era Dourada”) dos EUA, no final do século XIX, e encontrar os primeiros espécimes de tais listas (e o nascimento da “filantropia moderna” dada a ascensão da industrialização) — quando Andrew Carnegie, empresário que se tornou no homem mais rico do mundo depois de vender a empresa de aço em 1901 e fundador da Universidade Carnegie Mellon, e John D. Rockefeller, magnata do petróleo cujas doações ajudaram à construção da Universidade de Chicago, eram os protagonistas e os rivais do momento.
Os nomes Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, e Jean Paul Getty, fundador da Getty Oil Company, também estão entre os filantropos mais conhecidos da história recente. À The Week, o autor do livro “American Foundations”, Mark Dowie, descreve as motivações que serviam (e servem) de motor à filantropia: “Culpa, narcisismo, paternalismo, desejo pela imortalidade… e o amor pela humanidade”.
Mas a popularização e a frequência dos rankings filantrópicos sedimentou-se com o contributo de Ted Turner que, na mesma entrevista, garantia que tanto Bill Gates como Warren Buffett, à data os dois homens mais abastados no país, estariam mais inclinados a dar se alguém estivesse disposto a contar milimetricamente o peso das doações. Seria a publicação Fortune a dar consistência ao pensamento de Turner ao publicar um top dos 25 bolsos mais largos de 1996 — atualmente até existem listas que classificam os filantropos mais importantes do século passado, com esta a destacar no primeiro lugar o indiano Jamshedji Tata, fundador do Grupo Tata (Bill e Melinda Gates surgem logo atrás).
A importância da competição quando o tema é filantropia é destacada num artigo da Town & Country onde se lê que durante milénios as elites procuraram afirmar e construir status social através da generosidade para com os outros — seja disso exemplo o financiamento de luxuosos banquetes públicos na Grécia antiga ou, já na Idade Média, a construção de catedrais.
Musk e Bezos entre os 156 bilionários mais forretas em 2021
Estacionando agora em 2021, a filontropia é ponto assente entre as elites e gera uma competitividade que faz lembrar a corrida espacial, não fossem os intervenientes os suspeitos do costume. Eis Elon Musk na ribalta por estes dias, depois de prometer doar 2% da imensa fortuna se a ONU for capaz de “demonstrar exatamente” como isso acabaria com a fome no mundo. O mesmo homem que, no final de setembro, se tornava no mais rico do mundo e que à Forbes comentava o seguinte: “Vou enviar uma estátua gigante com o dígito ‘2’ a Jeffrey B., juntamente com uma medalha de prata”. A troca de galhardetes entre Musk e Bezos é frequente e temática: carros, espaço… e doações? O primeiro é o CEO da Tesla e fundador da Space X e da Starlink, o segundo é o criador da Amazon e da BlueOrigin.
Curiosamente, pouco depois de ter ido e voltado do espaço numa viagem de 11 minutos, a 20 de julho deste ano — nove dias depois de Richard Branson, fundador da Virgin Galactic, ter dado início ao turismo espacial —, Jeff Bezos enfrentou as câmaras, ainda com o fato espacial em tons de azul sobre o corpo de 57 anos e um chapéu de cowboy sobre a cabeça, para fazer um anúncio surpreendente: um prémio filantropo no valor total de 200 milhões de dólares. Os primeiros vencedores foram o chef José Andrés, do projeto World Central Kitchen, o mesmo que escreveu o perfil dos duques de Sussex a propósito da polémica capa da Time; e Van Jones, conhecido comentador político.
Não é por acaso que a publicação Town & Country lembra que o anúncio pareceu uma jogada apressada de relações públicas para afastar o burburinho de que o magnata não estava necessariamente focado no espectro filantrópico. Uma avaliação que vai ao encontro do recente comentário do príncipe William, de que os “grandes cérebros” deveriam estar a “consertar o planeta” e não à procura “do próximo lugar onde viver”. Além disso, poderia o prémio ser também uma resposta às críticas às práticas corporativas da Amazon? À chegada do espaço, Bezos anunciou também que as doações eram feitas sem compromissos e sem burocracia, uma abordagem muito aplaudida pelas organizações sem fins lucrativos. Mas antes dele, veio a agora ex-mulher — já lá vamos.
A 19 de setembro, quando os quatro participantes da missão Inspiration 4 — a primeira tripulação composta apenas por civis — voltou à Terra após três dias em órbita, Elon Musk fez algo semelhante e anunciou, via Twitter, a doação de 50 milhões de dólares. Não veio ao acaso: afinal, o principal objetivo da missão era sensibilizar a população mundial para a investigação na área da oncologia pediátrica e angariar mais 100 milhões de dólares para serem aplicados na investigação de tratamentos contra o cancro no St. Jude Children’s Hospital (o valor juntar-se-ia aos outros 100 milhões já reservados para o projeto).
Em abril, o mesmo Elon Musk era destacado na imprensa norte-americana por nos primeiros quatro meses do ano ter destinado quase 150 milhões de euros diretamente a instituições de caridade. Mas numa coluna do Los Angeles Times, o magnata era chamado de “sovina” porque, feitas as contas e considerando a fortuna então conhecida, se Musk doasse 600 milhões por ano, demoraria 311 anos a ficar sem nada. Curiosamente, no início de 2021 Elon Musk pedia sugestões onde aplicar doações.
Btw, critical feedback is always super appreciated, as well as ways to donate money that really make a difference (way harder than it seems)
— Elon Musk (@elonmusk) January 8, 2021
De tanto terem a cabeça no ar ou apontada às estrelas, quem sabe, tanto Musk como Bezos — que estão ainda mais ricos desde o início da pandemia — figuram no grupo dos 156 bilionários mais forretas. Ou seja, segundo o levantamento do Forbes Philanthropy Score 2021, ambos doaram menos de 1% das suas fortunas para causas filantrópicas (Warren Buffett é o maior doador da lista). Isto apesar de Bezos andar a fazer progressos depois de no ano passado se ter comprometido a dar 10 mil milhões de dólares até 2030 para combater as alterações climáticas (até à data do artigo, 5 de outubro, tinha distribuído 865 milhões de dólares). O estudo em causa considerou as contribuições de 400 bilionários, sem incluir doações para fundações privadas ou fundos com incentivos fiscais que ainda não chegaram aos mais carenciados. No entanto, em 2018 Bezos estava no topo da lista dos mais filantrópicos.
A “generosidade” de MacKenzie Scott e a campanha “Giving Pledge”
Antes do prémio vantajoso de Bezos e antes da promessa de Musk, já MacKenzie Scott fazia soar os alarmes de uma filantropia aparentemente mais robusta. Ela que não perdeu tempo após divorciar-se de Bezos, em 2019, para abrir os cordões à bolsa. Com a separação — estavam casados desde 1993 — vieram dezenas de mil milhões em ações da Amazon e vieram também as contribuições meticulosamente estudadas. Desde julho de 2020, MacKenzie já doou cerca de 8.6 mil milhões de dólares a quase 800 organizações e fê-lo sem qualquer fundação que distribuísse os fundos ou site pomposo. De acordo com a organização Candid, que monitoriza os gastos no sector da caridade, Scott foi responsável por 20% de todos os fundos de cariz filantrópico relacionados com a Covid-19 doados globalmente no ano passado.
O gesto foi tão bem recebido que, em dezembro, a publicação New York Daily News publicava o seguinte título: “A generosidade de MacKenzie Scott envergonha os mil milhões de Jeff Bezos”. E como se fosse preciso correr mais tinta, a Vanity Fair salientava que Scott conseguira a vingança apropriada após a vinda a público da traição do ex-marido ao fazer o que ele não faz: partilhar a sua “riqueza inacreditável”.
Em dezembro do ano passado, também o The New York Times assinalava como a equipa de MacKenzie enviou centenas de emails inesperados a diferentes caridades, notificando-as das doações. Algumas das mensagens foram encaradas como possíveis esquemas fraudulentos, outras foram simplesmente parar ao spam. Muitas resultaram nas maiores doações que algumas instituições já receberam (à data foram mais de 4 mil milhões de dólares atribuídos sem quaisquer obrigações para 384 grupos, muitos deles liderados por mulheres e por mulheres negras, outros orientados para a defesa dos direitos LGBTQ, focados nas alterações climáticas e em eliminar a pobreza e a fome).
Segundo a Forbes Philanthropy Score 2021, a riqueza acumulada de Scott também cresceu em ano de pandemia: de 57 mil milhões para 58.5 mil milhões — feitas as contas, as suas doações representam 13% do património líquido. As contribuições só foram possíveis graças à “equipa de conselheiros” que MacKenzie escolheu de maneira a acelerar o processo, o que fez o modelo tradicional de filantropia revolver-se sobre si mesmo. Afinal, fundações multibilionárias como a Bloomberg Philanthropies e a Bill & Melinda Gates Foundation exigem sedes vistosas, muito ao contrário do projeto liderado pela ex-mulher de Bezos.
Foi precisamente o casal Gates — agora separado — que, juntamente com Warren Buffett, criou em 2010 a campanha “Giving Pledge” com o intuito de convencer as figuras mais abastadas do mundo a doar, pelo menos, metade da riqueza a instituições de caridade. Até ao início de 2021 já 216 signatários de 27 países se comprometeram a fazê-lo. A promessa, essa, é uma bem pública: os signatários são convidados a fazer uma declaração que apresente os motivos da adesão. O motivo de tal procedimento passa por seduzir os pares de bolsos cheios a juntarem-se à causa.
A iniciativa continua em marcha mesmo após o anúncio do divórcio de Bill e Melinda French Gates ao fim de 27 anos de casamento. E a julgar pela calculadora da Forbes, Bill e Melinda já distribuíram mais de 30 mil milhões de dólares da fortuna através da fundação que criaram em 2000 — um perfil da Fortune de 2008 sobre Melinda, salientava a influência positiva desta sobre o marido no que a doar dizia respeito. Aos 91 anos, quem também doou largas quantias pela mesma via foi Buffett. E quem se juntou à “Giving Pledge”, menos de dois meses após ter anunciado no Twitter a finalização do divórcio foi MacKenzie.
Aliás, a aparente discrepância na generosidade de MacKenzie Scott e do ex-marido destapam uma história semelhante: a de Laurene Powell Jobs e o então marido Steve Jobs que, sendo muitas coisas, não era um filantropo. Aliás, num artigo do The New York Times datado de 2011, ano da sua morte, lia-se que não existiam registos públicos de dinheiro doado por Jobs à caridade, além de que o empresário não fazia parte do “Giving Pledge”, tampouco tinha uma ala hospitalar ou qualquer edifício do âmbito académico em seu nome. Antes da sua morte já a mulher dava os primeiros passos na senda da filantropia ao criar a organização College Track, que ajuda jovens desfavorecidos no acesso à universidade. Após a morte do magnata, Laurene Powell Jobs fez muito mais.
Já Mark Zuckerberg e a mulher Priscilla Chan são os nomes à frente da Chan Zuckerberg Initiative, literalmente. É através desta organização que o casal pretende cumprir a promessa feita em 2015, quando Zuckerberg e Chan anunciaram que durante as suas vidas iriam doar 99% das ações do Facebook à caridade. Num livro recente sobre a rede social, citado pela Town & Country, lê-se que, a certa altura, Zuckerberg queixa-se aos seus conselheiros que a filantropia por ele exercida não recebe suficiente atenção positiva. “Porque é que as pessoas não pensam em mim da mesma forma que pensam no Bill Gates?”, terá perguntado.
A filantropia beneficia os super ricos?
Em setembro de 2020, o The Guardian colocava uma pergunta pertinente: com milhões a serem doados todos os anos — e, ainda assim, a configurarem apenas uma pequena percentagem da fortuna dos respetivos filantropos — o que justifica que se mantenham as desigualdades sociais? Só nos EUA, que os números mostravam então tratar-se das nações mais filantrópicas, apenas um quinto do dinheiro doado por estas figuras era direcionado aos mais desfavorecidos, com grandes fatias a serem atribuídas às artes, ao desporto, à cultura, à educação e à saúde.
Olhando à lupa, as maiores doações em educação no ano pré-pandemia foram feitas a universidades e escolas de elite já de si frequentadas pelos ricos. Uma realidade semelhante foi também verificada em solo britânico, considerando um período de 10 anos que culminou em 2017. Não é à toa que no mesmo artigo se lê que grande parte da filantropia de elite é destinada a causas de elite.
Ainda assim, a fundação encabeçada por Bill e Melinda Gates é um exemplo no que a doações para a pesquisa sobre a malária diz respeito, o mesmo com a poliomielite — escreve o jornal acima citado que a fundação permitiu que cerca de 2,5 mil milhões de crianças tenham sido vacinadas contra a doença, com os casos a nível global a sofrerem uma redução mais do que significativa.
Mas apesar dos sérios contributos para a humanidade, há quem possa olhar para isto do seguinte ângulo: os problemas em cima da mesa podem não ser vistos como os mais prioritários pelos locais. Em 2016, Anne Petersen, então presidente da Global Philanthropy Alliance, dizia que no passado a filantropia norte-americana assentava no dar localmente, algo que mudou de forma dramática com as doações a serem a nível internacional. “E isso só vai continuar.”