Discurso do Presidente da República
Aqui nos encontramos para dizer o mais simples, mas verdadeiro: o 5 de Outubro está vivo porque a República está viva, a democracia está viva em Portugal. A República está viva. Resistiu à tentação de ser apenas uma minoria urbana cercada pelo Portugal monárquico. Resistiu à fragilidade do parlamentarismo, dos governos, dos desafios das novas realidades económicas, sociais e políticas. Resistiu à Grande Guerra, à Gripe Espanhola, aos movimentos pimentistas e sidonista, à noite sangrenta de outubro de 1921, aos mandatos presidenciais só uma vez completados, às crises financeiras crónicas. Resistiu ao 28 de Maio de 1926, à ditadura militara, à ditadura política, às frustradas expectativas do fim da II Guerra, da campanha de Norton de Matos, do desespero do Regime perante a evidência da campanha e do voto massivo em Humberto Delgado, a três frentes em África, a bem mais de um milhão de imigrantes. Assistiu, em suma, aos mais difíceis confrontos. No nascimento, nas guerras, na debilidade da I República, tal como na repressão da ditadura militar e política por natureza anti-republicana. Sobre os resistentes, nos golpes ensaiados, nas prisões, na clandestinidade, nas lutas estudantis, na afirmação da imprensa livre.
Marcelo Rebelo de Sousa tinha prometido que ia ficar em silêncio sobre o debate que marca a atualidade política: a aprovação ou não do Orçamento do Estado para 2025. O tom professoral, de resenha histórica com que iniciou o discurso, antecipava que não ia fazer avisos aos partidos. Acabaria por nada dizer sobre Orçamento do Estado, tendo optado por elogiar e exaltar a vivacidade da democracia. De certa forma, o chefe de Estado valorizou o pluralismo democrático (onde cabem todas as negociações entre partidos) e enumerou crises que o país ultrapassou com graus de dificuldade e complexidade muito superiores à situação política atual. Foi a sua versão de otimista-realista-com-fundamento-histórico. E ficou ainda mais um sinal quanto à colaboração entre os vários órgãos de soberania em prol do interesse nacional: ao contrário da cerimónia de 2023, em que foi Marcelo, sozinho, a hastear a bandeira, desta vez foram quatro os protagonistas (Marcelo, Montenegro, Moedas e Aguiar-Branco) a puxar a corda. Curiosamente, são todos do mesmo partido.
A República renasceu pela coragem dos jovens militares a 25 de Abril de 1974. Percorreu dois anos anos de Revolução. De descoberta da liberdade e dos direitos fundamentais. Dois pactos do MFA/partidos, a eleição da Assembleia Constituinte, a conturbada descolonização no meio da Revolução, a aprovação da Constituição de 1976. A República mais democrática nos direitos e sua universalidade. No poder político. Nas dimensões económicas, social e cultural, afirmou a sua plena legitimidade eleitoral em 1982.
O Presidente da República lembrou que os 114 anos da República coincidem com os 50 anos de democracia, estando, muitas vezes, interligados. Numa altura em que o Presidente da República, embora não o assuma publicamente, tenta evitar que o almirante Henrique Gouveia e Melo (que estava na cerimónia) seja o seu sucessor, ganha particular relevância o facto de considerar que a “plena legitimidade eleitoral” foi atingida em 1982. Ora, esse foi precisamente o ano em que foi extinto o Conselho de Revolução e os militares foram definitivamente arredados do poder político (apesar de Eanes ter sido Presidente até 1986). Naturalmente que Gouveia e Melo — caso seja mesmo candidato em 2026 e vença — será sempre um ex-militar eleito para um cargo político e eletivo e, portanto, não teria poder para impor uma maior influência das Forças Armadas na decisão política. Ainda assim, é curioso que Marcelo (que ignorou outros momentos como o 25 de Novembro de 1975) tenha definido o momento em que os militares deixam de ter influência política como um momento crucial de afirmação da democracia.
A República e a democracia viveram, em 1986, a adesão às comunidades europeias. Em 1996, a criação da CPLP. Em 2002, a efetiva adoção da Moeda Única. Em menos de 30 anos, fim de império de cinco séculos, de ditadura de meio século e integração europeia e monetária que demorara o dobro do tempo para as grandes economias da hoje União Europeia. A República e a democracia experimentaram substanciais mudanças, no sistema de Governo, nos regimes económicos e sociais. Avanços em saúde, educação, solidariedade com o tempo e o modo tantas vezes esmorecidos. A República e a democracia viram o mundo mudar de bipolar para unipolar, e de unipolar e para multipolar. Com antigas ou novas potências a crescer ou a minguar. E Portugal sempre fiel aos seus princípios. Sempre presente, pelas suas Forças Armadas, pela sua diplomacia, pelos seus protagonistas em centros de decisão de mediação, de projeção universal.
Numa altura em que António Guterres foi considerado persona non grata pelo Estado de Israel e foi impedido por Telavive de entrar no país, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou a cerimónia de exaltação da República para destacar os protagonistas portugueses que estão em centros de decisão de mediação de projeção universal. É a defesa do amigo Guterres, que o país também apoia na candidatura a Prémio Nobel da Paz. Numa leitura mais forçada, Marcelo pode também estar a referir-se a António Costa, com quem tinha estado nas 8 cerimónias do 5 de Outubro anteriores e que também vai assumir um cargo num centro de mediação que, embora europeu, tem projeção universal.
A República e a democracia resistiram a crises financeiras e económicas, cá dentro e lá fora. Nos anos 70, 80, no fim da primeira e começo da segunda década do século, à pandemia e a guerras como a da Ucrânia e do Médio Oriente. A República e a democracia assistiram a partidos e forças sociais subirem e descerem, ao surgimento de outras, década após década, e às vezes a adaptação das originárias.”
Marcelo Rebelo de Sousa — que no passado alertou para os perigos do populismo e do extremismo — optou agora por normalizar as alterações verificadas nos últimos anos no espectro político-partidário português. O Presidente da República descreve com naturalidade as oscilações de força dos partidos e o surgimento de outros (em que o Chega se destaca pela originalidade e força), bem como as mudanças nos partidos tradicionais forçadas pela conjuntura e pelos partidos ditos mais radicais.
A República e a democracia testemunharam os dramas e a capacidade vital de ex-combatentes e de regressados da descolonização. De novas emigrações de nacionais, sobretudo neste século. E sempre de imigrações de falantes e não falantes de Língua Portuguesa. Tudo hoje perfazendo 11 milhões vivendo cá dentro e mais do que esses 11 milhões, nacionais e lusodescendentes vivendo lá fora. E nos que vivem cá dentro, um milhão de não-nacionais, neles claramente dominando os lusófonos. A República e a democracia viram como ao lado do catolicismo, avultaram outras importantes confissões cristãs, em rápida subida. E também outros numerosos credos e igrejas e não crente. Um mosaico riquíssimo, bem diferente do mosaico de alguns dos nossos vizinhos europeus.
O Presidente da República volta a aproveitar o 5 de Outubro para desdramatizar, e até desmentir, a ideia de que há grandes tensões relacionadas com a imigração em Portugal. E diz até que, ao contrário de outros países europeus, Portugal tem um “mosaico riquíssimo” de culturas. É, novamente, uma resposta ao Chega de André Ventura. Marcelo Rebelo de Sousa voltou a insistir que, ao contrário do que diz o Chega, a maior parte dos imigrantes são falantes de Língua Portuguesa. A referência de Marcelo remete para a resposta que acabou por dar na Universidade de Verão do PSD quando foi questionado — por um aluno e por escrito — sobre o referendo à imigração pedido por André Ventura. No final de agosto, em resposta ao referendo de Ventura, Marcelo dizia que era “fundamental, ao falar-se de imigração, numa pátria como a nossa, que foi sempre de emigração, saber do que estamos a falar”. Depois, à semelhança do que fez este sábado na Praça do Município (embora de forma mais simplificada), o Presidente da República apresentou dados concretos sobre a imigração, que desvalorizam a ideia de um choque cultural: “Quantos são os imigrantes? Um milhão em quase onze milhões que são a população residente no nosso território físico. Desse milhão, quantos integram a comunidade brasileira e luso-brasileira? Porventura mais de trezentos mil, a crescerem rapidamente e a poderem ser acima de quatrocentos mil em 2026 ou 2027. Quantos ucranianos, de radicação antiga e vítimas da guerra? Setenta mil ou perto disso. Somados são perto de quarenta por cento do total.” Marcelo sugeria então que mais de 70 por cento dos imigrantes estavam perfeitamente enquadrados e até identificados com a cultura portuguesa e ocidental. A ideia foi agora repetida.
Portugueses, numa palavra, com 114 anos a República e 50 anos a democracia, com anos amiúde atribulados para uma e para outra, o certo é que estão vivas. O mundo mudou, o mundo que fala português mudou, a Europa mudou, Portugal mudou. Mas a República está viva. Não é perfeita, nem acabada, longe disso. É obra de todos os dias, de sucessivas gerações de portugueses. A democracia está viva, não é perfeita nem acabada, longe disso. É obra de todos os dias, de sucessivas gerações de portugueses. A República e a democracia estão vivas, mas sabem que têm de mudar e muito: nos dois milhões de pobres e mais os em risco de pobreza, nas desigualdades entre pessoas e territórios, no combate à corrupção, no envelhecimento coletivo e também em tantos sistemas sociais. Na insuficiência do saber, da inovação, do crescimento. Constantes essas graves que não conseguimos alterar em 50 anos de Abril. Sabendo, no entanto, quais as razões essenciais de estarem vivas a República e a democracia.”
Marcelo Rebelo de Sousa mantém aqui a tónica de todos os discursos que tem feito — nos 5 de Outubro, 25 de Abril e 10 de Junho — que a democracia portuguesa está viva e de saúde, mas que é um projeto imperfeito e inacabado. E, nesse particular, mantém as mesmas prioridades para o país: o combate à pobreza, o combate à corrupção, bem como contrariar o inverno demográfico. São bandeiras de Marcelo desde que chegou a Belém, mas muitas, como reconhece o Presidente, tiveram uma evolução lenta ou quase nula.
Viver com liberdade é melhor que viver com repressão. Pluralismo é melhor do que viver com verdade única. Tolerância e universalismo é muito melhor do que aversão ao diferente e fechamento. A mais imperfeita democracia, é muito melhor do que a mais tentadora ditadura. Por isso vale a pena aqui virmos todos os anos. Até para dizermos que queremos que queremos que a nossa República democrática seja mais livre, mais igual, mais justa, mais solidária, para o bem de Portugal que é o que nos une, agora e sempre. Viva a República. Viva a democracia. Viva Portugal.”
É uma versão da célebre frase de Winston Churchill, musicada por Sérgio Godinho, que diz que “a democracia é o pior de todos os sistemas, à exceção de todos os outros”. Marcelo diz o mesmo por outras palavras: que a pior democracia é melhor que a mais atrativa ditadura. No seu penúltimo discurso de 5 de Outubro — só terá mais o de 2025 — Marcelo Rebelo de Sousa volta a exaltar a democracia.