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14 de abril, 1912. Quando o alarme soou, com 40 segundos de atraso, já era tarde demais. A bordo do imponente Titanic, Ida e Isidor Straus abriam caminho por entre uma multidão tumultuosa que se apressava para chegar a tempo aos botes salva-vidas, a última esperança para sobreviver àquele que viria a tornar-se um dos desastres marítimos mais trágicos da história. A uma distância de 111 anos, um novo acidente aconteceu no mesmo local, junto aos destroços do histórico navio britânico: morreram os cinco passageiros que seguiam a bordo do submersível Titan, após uma “implosão catastrófica”.
Após cinco dias de buscas praticamente ininterruptas, a Guarda Costeira norte-americana revelou esta quinta-feira à noite que as operações de resgate — que se mantiveram ativas mesmo depois do prazo previsto como limite para 0 fim do oxigénio disponível a bordo — tinham chegado ao fim. Hamish Harding, Shahzada e Sulaiman Dawood, Paul-Henry Nargeolet e Stockton Rush juntavam-se aos Straus e às mais de 1500 vítimas que perderam a vida no Atlântico Norte.
Apesar da distância temporal, as duas histórias cruzam-se de várias formas. A bordo do Titanic, Ida e Isidor, de 63 e 61 anos, foram vistos pela última vez no convés, de mãos enlaçadas: ele, por recusar que o seu nome e estatuto fossem motivo para poder passar à frente de mulheres e crianças que procuravam lugar nos botes salva-vidas; ela, determinada a permanecer ao lado do marido com quem vivera 40 anos. Histórias como a dos Straus alimentaram o fascínio de muitos pela exploração dos destroços da embarcação. Inclusive o fascínio de um dos tripulantes que morreu agora durante a viagem do submersível Titan — o empresário Stockton Rush, marido de Wendy Rush, a tetraneta daquele casal.
Do sonho de astronauta à “epifania” de explorar as profundezas dos oceanos
Casado desde 1986 com Wendy Rush, Stockton Rush, um dos fundadores da empresa de exploração marítima OceanGate, conhecia bem a história do Titanic. De modo mais pessoal a dos Straus, que apesar do desejo de morrer lado a lado viriam a ser separados no lugar de repouso — o corpo de Isidor foi encontrado cerca de duas semanas depois do naufrágio, o de Ida nunca foi recuperado. Mas o fascínio pelas profundezas do mar — que considerava oferecer à humanidade a melhor hipótese de sobrevivência quando a superfície da terra se tornar inabitável — só surgiu mais tarde.
O empresário cresceu numa família abastada, sendo descendente direto de Benjamin Rush e Richard Stockton, e desde cedo cultivou a reputação de aventureiro e visionário. Pouco depois de terminar a licenciatura em engenharia aeroespacial na Universidade de Princeton, mudou-se para Seattle para trabalhar na empresa McDonnell Douglas Corporation como engenheiro de teste de voo num programa dos caças F-15. Era nos céus que apostava todo o seu futuro. De acordo com o site da OceanGate, tinha apenas 19 anos quando, em 1981, completou a formação aos comandos de um DC-8, tornando-se o “piloto de transporte a jato mais jovem do mundo”.
Longe de pensar vir a criar uma empresa de exploração para ver de perto os destroços do Titanic, sonhava conquistar a fronteira do espaço. Como chegou a confessar em numerosas entrevistas, sempre sonhou ser astronauta e ser “o primeiro homem a chegar a Marte”, mas os planos foram desviados por causa dos problemas de visão. Com uma pequena alteração da rota, esperava vir a explorar o espaço num voo comercial como turista, mas tudo isso mudou depois de Richard Branson ter lançado a primeira aeronave comercial ao espaço (2004), como revelou em 2019 em entrevista à Smithsonian Magazine. “Tive a epifania de que não era nada disso que eu queria fazer. Eu não queria subir ao espaço como um turista. Eu queria ser o Capitão Kirk na Enterprise. Eu queria explorar“, sublinhou na altura. O pensamento era só um: o oceano era a “última fronteira”.
Na passagem a explorador do oceano, Rush contava com uma vantagem: desde os 14 anos que era um mergulhador certificado. Mas faltavam-lhe os fundos. Assim, foi só depois de uma passagem pela banca que, em em 2009, Rush reuniu o dinheiro necessário para juntamente com o empresário Guillermo Söhnlein avançar com os planos e fundar a OceanGate, a única empresa no mundo a oferecer viagens ao fundo do mar para ver de perto os destroços do Titanic. Lançou-se no mundo dos submersíveis e nunca mais olhou para trás.
“Era um visionário”, sublinhou esta semana Fred Hagen, um amigo de longo data. Numa entrevista à News Nation, destacou que, ao longo da sua carreira, o CEO da OceanGate foi capaz de reconhecer a importância e o valor das explorações marítimas em profundidade — alguém extremamente “metódico” e “cuidadoso”, que tentava ao máximo mitigar os riscos das explorações.
Também Greg Stone, ex-vice-presidente executivo e cientista-chefe da Conservation International, destacou os avanços que a empresa de submersíveis liderada pelo amigo procurava alcançar. “Eu gostei da direção em que ele caminhava”, revelou em declarações à Associated Press. Acrescentou-lhe, porém, um defeito, comum no mundo da inovação: “Tinha o problema que muitas pessoas da fronteira têm, estava à frente dos regulamentos“.
Facto é que Stockton Rush era conhecido como um homem que corria riscos e chegou a admitir que para chegar onde chegou ignorou algumas regras pelo caminho. “Acho que foi o general MacArthur que disse que uma pessoa se lembra das regras que quebra. E eu quebrei algumas regras para tonar isto possível. Fi-lo com a lógica e a engenharia a meu lado“, chegou a dizer numa entrevista ao YouTuber Alan Estrada no ano passado, em que assumiu que gostaria de ser recordado como um “visionário”. “É ao escolher as regras que queres quebrar que acrescentas valor aos outros e à sociedade. E para mim é disso que a invocação se trata”.
As viagens estilo Capitão Kirk a bordo da Enterprise
A certo ponto Stockton Rush quis ser a primeira pessoa a chegar a Marte, um cenário que afastou radicalmente quando percebeu que o oceano era a verdadeira fronteira a superar. No passado domingo, antes de submergir ao largo da ilha da Terra Nova, naquele que seria a última viagem da sua vida, Stockton Rush terá cumprido os rituais que marcaram todas as suas explorações: dormir muito bem na noite anterior, comer pouco nas 24 horas anteriores e deixar de ingerir líquidos uma hora antes. As expectativas para as explorações deste ano eram elevadas, como admitiu a Craig Howard. “Há sempre um outro mergulho”, terá dito o CEO da OceanGate antes da partida, segundo o testemunho do amigo de longa data.
Até agora, a OceanGate operava três submersíveis para realizar pesquisas, produção de filmes e “viagens de exploração”, incluindo passeios no Titan ao local dos destroços do navio inglês que se afundou no Atlântico Norte e se encontra a mais de 3.800 metros de profundidade. Um lugar nessa missão, de que vários milionários acabaram por desistir, custa 250 mil dólares.
Do arranque da empresa até se chegar às viagens ao Titanic, o caminho foi longo e não se fez sem dificuldades. Em 2009 a OceanGate tinha apenas um submarino, comprado a um proprietário privado. No ano seguinte adquiria o submersível Antipodes, com capacidade para cinco pessoas e capaz de atingir uma profundidade de 1.000 pés, um equipamento que terá feito cerca de 130 mergulhos em dois anos. Em poucos anos a empresa viria a adquirir um outro submersível que seria reconstruido para gerar o Cyclops 1, que já atingia uma distância mais longa, de 1.640 pés.
Foi deste protótipo que se chegou ao Titan, o submergível de sonho de Rush. Foi o próprio quem primeiro testou o submergível em viagens tripuladas com profundidades sucessivamente mais longas. Em dezembro 2018 a empresa planeou a primeira viagem aos destroços do Titanic e foi possível levar o submergível até por volta de 10.000 pés (cerca de 3 mil metros), quando a descida teve de ser interrompida inesperadamente.
Nessa viagem, que viria a descrever à Smithsonian Magazine “como estar abordo da Enterprise”, o Titan acabou por sofrer danos nos seus componentes eletrónicos, segundo noticiou o New York Times, citando a plataforma de tecnologia GeekWire. O ano de 2019 trouxe novos desafios, uma vez que a viagem que se esperava ser de arranque foi adiada devido a um problema no cumprimento das limitações da lei marítima do Canadá. No ano seguinte a empresa anunciou mesmo que chegou a trabalhar com o programa Marshall Space Flight Center da NASA para garantir que o submergível tinha as capacidades necessárias para sobreviver à profundidade exigida. O ano de 2021 trouxe as tão aguardadas boas notícias, com o arranque das expedições ao Titanic.
A OceanGate fez manchetes pela forma inovadora de conduzir as expedições, mas o nível de segurança das viagens foi posto em causa mais do que uma vez, tanto por especialistas da área como por aqueles que estiveram prestes a embarcar nos seus submersíveis. Foi o caso de Chris Brown, que em 2018 desistiu da viagem porque não parecia uma “operação de mergulho profissional”. Para o argumentista Mike Reiss e o jornalista David Pogue, que já foram ao fundo do mar com o Titan, a experiência é problemática. “Não há apoio, não há cápsula de fuga. É chegar à superfície ou morrer”, afirmou na quarta-feira Pogue, em declarações à BBC.
A companhia continuou com as viagens mesmo depois de um grupo de especialistas da indústria de submersíveis ter avisado o CEO da OceanGate que a expedição para observar o Titanic poderia vir a ter vários problemas “desde pequenos, a catastróficos”. O aviso chegou a Rush em 2018, numa carta assinada por 38 peritos da área, que afirmavam que o marketing feito pela empresa era enganador, uma vez que o mesmo dizia que o submersível satisfazia ou excedia as normas de segurança.
As dúvidas não ficaram por aí. A OceanGate esteve mesmo envolvida num processo judicial no mesmo ano. Na altura o diretor das operações marítimas da empresa, David Lochridge, elaborou um documento com informações que davam conta de que o Titan precisava de mais testes e sublinhava “os potenciais perigos para os passageiros quando o submersível atingia profundidades extremas”.
Apesar das críticas que marcaram o caminho da empresa, Stockton Rush procurou sempre contornar a questão, garantindo que o submersível era seguro e que os riscos faziam parte da inovação. “Em algum momento vais ter de correr riscos, e é mesmo uma questão de risco-recompensa”, disse o CEO da OceanGate em novembro, num episódio do podcast Unsung Science. E foi mais longe: “A certa altura a segurança é só um desperdício. Quer dizer, se queres estar só em segurança não saias da cama, não andes de carro, não faças nada”, sublinhou.
O receio de não voltar à superfície e a implosão na última viagem
Ao longa da sua carreira, Stockton Rush terá feito mais de 30 viagens às profundezas do oceano. Aos 61 anos, a viagem que começou na manhã de domingo a bordo do Titan era simplesmente mais uma. “É realmente uma experiência que muda a vida. Não há muitas coisas assim”, chegou a admitir em várias entrevistas.
Apesar da facilidade com que parecia lançar-se à aventura, Rush não tinha receio de partilhar os medos que sentia quando participava em viagens turísticas. À CBS News chegou a admitir que o preocupava os obstáculos que podiam impedi-lo de regressar em segurança das profundezas do mar. “O que mais me preocupa são as coisas que podem impedir-me de chegar à superfície”, explicou, referindo-se à possibilidade do equipamento ficar preso durante a viagem, mas desvalorizando o hipótese.
Nos últimos dias, após o submersível ter desaparecido, este foi, aliás, um dos cenários que os especialistas apontaram como possível explicação para o Titan não ter conseguido regressar à superfície: algo o poderia estar a impedir de regressar. A tese viria, porém, a ser rejeitada na noite desta quinta-feira, quando se soube que os cinco tripulantes que seguiam no Titan morreram na sequência de uma implosão. A tragédia repetia-se, assim, 111 anos depois, exatamente no mesmo ponto do oceano Atlântico.