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Ainda com o telefone em alta-voz, mas já de sorriso rasgado, Dino D’Santiago recebe-nos de braços abertos. Apesar do frio de outono, que parece ter finalmente chegado, conversamos lá fora, com vista sobre o Tejo, na ampla varanda da casa do amigo perfumista Lourenço Lucena, que há quase dois anos lhe criou a fragrância “Lisboa Crioula”. O “tu” sai-lhe, mais que natural, inevitável, e marca o tom da entrevista.
A poucos dias do lançamento de Badiu, que é editado esta sexta-feira, 26 de novembro (e também pouco antes de completar 39 anos), o quarteirense de origens cabo-verdianas dizia-se feliz e ansioso. O álbum encerra a trilogia começada em 2019 com Mundu Nôbu, uma profunda jornada de descoberta pessoal que, pelo caminho, fez dele uma referência em todo o mundo. Este é, assegura, o ponto mais alto da caminhada. Conseguiu transformar os medos em canções e sentir-se forte na vulnerabilidade.
À medida que o sol vai desaparecendo por trás dos prédios de Marvila, já nem o gorro amarelo-torrado nem as meias com o título do segundo álbum, Kriola, o mantêm quente, mas nem por isso desarma. É o final de um ano em grande, em que foi distinguido como um dos afrodescendentes mais influentes de 2021, ganhou três prémios Play e saiu em destaque na revista Rolling Stone. Mais importante do que tudo isto: o nascimento do primeiro filho, Lucas, hoje com nove meses.
Três anos, três álbuns: de onde vem esta produtividade toda?
Antigamente, os artistas focavam-se na arte. Foi essa a proposta que aceitei quando me juntei com o Kalaf [Epalanga, produtor musical]: queremos fazer arte ou músicas para comercializar? Uma não vive sem a outra, mas o teu propósito dita a tua entrega e a entrega foi pela arte. A arte do nosso tempo. Se pensarmos em tudo o que já aconteceu desde 2018 até aqui e na velocidade com que aconteceu: no Egito, na Nigéria, Venezuela, Yémen, o Afeganistão.
A pandemia…
A pandemia em termos globais. E eu escrevo sobre o momento.
Estás atento à política internacional?
É o que me faz escrever. Não sou de olhar para trás ou inventar histórias. Sinto-me um repórter fotográfico: gosto de pintar, de ver documentários, perceber o que está a acontecer no mundo.
Ou seja, se olharmos para isto em retrospetiva, vamos encontrar a forma como o Dino D’Santiago sentiu estes tempos.
Isso. Acredito mesmo numa “nação crioula”, que vai regenerar a humanidade. Os millenials são a geração mais inclusiva. Estamos a caminhar no sentido certo. E vejo na Grande Lisboa — não apenas no coração de Lisboa — o peso da aculturação. Comparando com Londres, Nova Iorque ou Paris, que têm muitas culturas diferentes, aqui sinto que as culturas se cruzam muito mais, fazem parte “de uma mesma cachupa”. Aqui, a não ser que te sirvam o prato tradicional do país, é muito difícil perceber se estás em casa de um angolano, moçambicano, ou cabo-verdiano.
Incluis nessa “cachupa”, como dizes, apenas as comunidades de origem africana?
Estou a incluir todas. A mais crioula de todas estas culturas é a cultura portuguesa: é um território por onde ao longo dos últimos 2500 anos passaram mais de 16 povos. De romanos, mouros, ciganos e judeus, toda a gente já teve este território como seu.
Voltamos à História.
Adoro História. É onde me inspirei a vida toda.
Avançando para o teu novo álbum, quem são os “badius” que lhe dão título?
Indo mesmo à origem, compunham o povo badiu os primeiros escravizados, que, a partir do século XIV os portugueses transportaram para a Ribeira Grande, hoje Cidade Velha, vindos da zona entre a Gâmbia e do Senegal e depois da Guiné. E, graças aos ataques de piratas franceses, ingleses, turcos e holandeses, que viam naquela região de Cabo Verde um interessante foco comercial, foram os primeiros que conseguiram fugir. Os portugueses que povoavam Cabo Verde vinham do norte de Portugal. Então, “badius” era como diziam “vadios”, um termo pejorativo. Só que já perto do início do século XX eles adotaram esse termo como símbolo de resistência e resiliência. Até hoje.
E porquê ir buscar esse termo para dar nome ao álbum?
Toda a cultura do povo badiu foi muito reprimida. Badiu não é só a língua que se fala, mas também um povo que teve de resistir para que um dia houvesse a independência de Cabo Verde e da Guiné. Foram eles quem criou ritmos como o funaná e o batuku, que eu hoje eternizo na minha música e que as pessoas dançam, mas que foram censurados pela corte portuguesa e depois pelo Estado Novo, porque eram considerados sons do Diabo.
Contas muitas vezes como detestaste Cabo Verde a primeira vez que lá foste, ainda miúdo, e como só fizeste as pazes muitos anos mais tarde. Este recuperar da herança africana, tão presente na tua música, traduz também o teu percurso pessoal?
É um resgate até à minha essência. Sou negro de tez, mas a minha mente é extremamente caucasiana.
Os americanos têm um termo para isso que é o “coconut” [“côco”], castanho por fora e branco por dentro.
Não poderia dizer melhor. Mesmo quando ouvia dizer que Portugal era um país racista, sentia-me profundamente ofendido. Sinto-me tão português que não conseguia aceitar-me como parte desse sistema. O que é certo é que a vida depois me foi mostrando que afinal eu não era tão português como achava. Logo em 2018, na altura do Mundu Nôbu, a minha agência recebeu vários “nãos” de autarquias porque eu cantava em crioulo. Só quando começaram a ver pretos e brancos a cantar “a minha nação é kriola” é que começaram a querer o concerto. Agora estou a enfrentar outra resistência: quero assumir o palco como um espaço audiovisual, onde passam frases das minhas letras, porque sinto que a minha mensagem chegou às pessoas de uma forma dançante, mas não entenderam o teor das palavras, e as pessoas querem-me só a mim no palco. Mas já sei que vou vencer esta batalha.
[o vídeo de “Lokura”:]
Essa resistência ao crioulo é supreendente por ser tão recente. Sentes que, em Portugal, as pessoas, enquanto indivíduos, são mais abertas e disponíveis do que as instituições?
Claramente. Antes vivia-o de forma mais naif. Agora apercebi-me que é sistemático…
O que é que é sistemático?
É sistemático os EUA espirrarem e nós ficarmos constipados. No que diz respeito a ritmos, acontece assim com tudo o que sai do mercado anglo-saxónico e agora do mercado latino, com o reggaeton, e do Brasil com o fenómeno do funk. Compete-nos a nós ter a coragem de não nos moldarmos àquilo que o sistema acha que é o cool. Porque, se não, vai-nos acontecer o mesmo que aconteceu com o fado, que um dia foi dançado e que, desde que o Estado Novo o transformou em música de salão, achas que para ouvir fado tens de estar em silêncio e não dançar.
Hoje, quando ouves dizer que Portugal é um país racista, ainda te sentes ofendido?
Com olhos de adulto, considero que Portugal tem um sistema racista, castrador, que serve uns e abusa, pelo esquecimento, de outros. Há provas mais do que dadas que os imigrantes contribuem muito para o crescimento, quer do PIB, quer da natalidade. Dói-me dizer isto, porque faço parte deste país. Sinto-me 100% português e ao mesmo tempo 100% cabo-verdiano. E não quero ser o eterno lamento: sinto que posso contribuir para a mudança, porque as novas gerações ouvem-me e um dia serão elas a governar. A minha fé mantém-se: o país pode ser racista, mas tem a capacidade e a responsabilidade de inverter o jogo, por ser também dos países mais mestiços e aculturados que temos na Europa.
[ouça “Badiu” na íntegra através do Youtube:]
“Comecei a escrever e percebi que só conseguia escrever em crioulo”
A tua carreira explodiu nos últimos cinco anos, mas começou muito antes disso e com outras sonoridades, tanto com os Expensive Soul como com os Nu Soul Family. O que te faz, sabendo que podia ser um risco, mudar de rumo de forma tão radical, ir trás das tuas raízes e começar a cantar a crioulo?
Fico arrepiado quando penso nisso. Foi precisamente para sair da frequência do sucesso e do que isso estava a fazer-me. Estive 11 anos com os Expensive Soul e mais quatro com os NuSoul Family, a pisar todos os palcos nacionais, a receber globos de ouro, prémios MTV, mas a sentir um vazio profundo. Não era a minha história que estava a contar. Ao mesmo tempo, sentia-me perdido em relação àquilo que era. Quando em 2009 regressei a Cabo Verde pela primeira vez desde a tal viagem de 1987 senti uma chapada tão forte que comecei aí um processo de reconstrução a vários níveis. Foram quarenta dias com o meu pai, a dormir na mesma cama, a senti-lo pela primeira vez abraçar-me enquanto dormia, a achar aquilo estranhíssimo, mas a não resistir. Fui soltando amarras em relação à minha educação muito católica e à sensação de estar constantemente a pecar. A vida toda me senti a ovelha literalmente negra da família. Porque não concordava com a forma como a missa era celebrada, não concordava com a busca de Deus no exterior. Cristo disse “o templo está dentro de ti” e eu queria ouvir mais a minha voz. Foi essa busca que me levou ao Dino D’Santiago. Deixei de ter vergonha de falar crioulo (os meus pais sempre falaram connosco em crioulo e nós respondíamos em português). Comecei a escrever e percebi que só conseguia escrever em crioulo. Quando dei por isso, tinha um disco, só com as conversas com os meus dois avós, com o meu pai… A partir daí, e até 2019, passei a ir no mínimo oito vezes por ano a Cabo Verde.
No mínimo oito vezes? Mas isso é perto de uma vez por mês.
Senti-me em casa. Toda a gente era igual a mim. Entrava numa loja e não tinha um segurança a ir atrás de mim, como aqui, onde já comprei, mesmo sem ter vontade, para não sentir a agressão de ser visto como mais um que tinha entrado só para tentar roubar. Em miúdo achava que era tratado assim porque era de um bairro de lata [Bairro dos Pescadores, em Quarteira]. Só na idade adulta, quando percebi que me acontecia o mesmo fosse em Quarteira, em Lisboa ou no Porto, é que comecei a achar que havia alguma coisa que não estava bem. Hoje, e também porque muitos são de origem africana, os seguranças vêm atrás de mim mas é para me agradecer pelo meu trabalho.
Ainda assim, o álbum que sai dessa experiência, o Eva, não tem nada a ver com o que fazes hoje.
Fui do 8 ao 80. As minhas referências eram anglo-saxónicas: hip-hop, Soul, R&B. Quando cheguei a Cabo Verde e senti toda aquela africanidade, percebi que aquilo me era natural. O disco Eva são 10 orações: o “Nôs Tradisom” fala da importância de percebermos as nossas tradições — porque assim dificilmente vais enveredar pelo mal; o “Pensa na Oji” é sobre a importância de estar no momento presente e de deixar o amanhã para amanhã; o “Eva” é dedicado à minha sobrinha, que nasceu quase por milagre, apesar de a minha cunhada ter um tumor no útero. Com o meu irmão a rezar a Fátima e a minha cunhada a recorrer a médicos em Espanha, quando a Eva nasce, eu sinto que é a altura de dar o grito do Ipiranga, que o meu disco só podia correr bem. E correu: foi considerado um dos melhores álbuns de world music, recebi prémios em Cabo Verde, atuei no Central Park, em Nova Iorque, na Coreia do Sul, no Brasil. Mas ao fim de três anos a tocá-lo, percebi que também era fruto do beat e do som eletrónico, mas não sabia como casar esses dois universos.
E demoraste a conseguir fazer esse cruzamento.
De 2012 até 2017: cinco anos.
Foi uma “travessia do deserto”?
Investi tanto, mas tanto, financeiramente, que tive de recorrer muitas vezes aos meus pais, mesmo sabendo que eles não tinham muito. Sendo franco, só em 2019 é que pude dizer, “vivo para a música e vivo da música”.
Ou seja, depois do Mundu Nôbu, o primeiro disco desta nova fase.
Saiu o Mundo Nôbo e no ano seguinte foi o sucesso, os concertos em nome individual, o auge em termos financeiros. Estes últimos três anos foram o reflexo de toda a luta dos meus pais, desde que, em 2004, decidi seguir música.
Como é que na altura eles receberam essa notícia?
Ficaram preocupados porque a minha cena sempre foi a pintura e o cartoonismo. Mas foram impecáveis. “Desde que não falte para os teus irmãos”, disseram. Tive uns pais maravilhosos. Estou aqui graças a eles e à minha irmã que, enquanto estudava Serviço Social, cantava no Casino de Vilamoura para pagar a faculdade e para me ajudar.
Vocês cantam todos?
Todos. O meu irmão também. Já foram em tour comigo. Adoro. E isso é um dos capítulos que, agora que já sou o Dino D’Santiago, quero desenvolver.
“A responsabilidade é tão grande que não consigo ir para o palco somente para fazer as pessoas sorrirem e dançarem”
Voltando ao período entre o Eva e o Mundo Nôbu…
Foi partir pedra. Como é que ia juntar estas sonoridades modernas e os ritmos tradicionais cabo-verdianos sem que um universo invadisse o outro? Não queria que as pessoas pensassem que aquilo era um produto dos Estados Unidos, de Inglaterra ou até mesmo de Berlim, de algum desses centros que vão ditando as tendências. Quando, com os meus produtores, conseguimos consolidar a sonoridade…
Sempre os mesmos produtores?
Sempre: o Kalaf, o Paul Seiji, que é metade britânico metade japonês, o Nosa Apollo, que é nigeriano, o Branko, que é o nosso português, e o Toty Sa’Med. Esse é o núcleo duro. Agora é que trouxemos mais pessoas.
Então e a Madonna no meio disto tudo, que papel é que desempenhou?
A Madonna representou aquilo que eu acho que devemos ser como artistas: ela foi uma agente da cultura. Mostrei-lhe a riqueza cultural da nossa cidade, todos os ritmos das pessoas que amo e admiro, para ela poder afirmar nos Estados Unidos que nunca sentiu uma cidade tão multicultural e rica como Lisboa. E isso vindo de uma pessoa como ela é real. Ela fez questão de emancipar e partilhar essa África portuguesa de que nós tantas vezes nos esquecemos porque queremos. E no momento de atribuir os créditos, soube ser nobre.
De certa forma, a Madonna chegou a Lisboa sem filtros. Depois, aquilo que evidenciou da cena musical surpreendeu muita gente.
Surpreendeu. O que a mim me surpreendeu foi a admiração que se seguiu quando perceberam quão bons éramos. Quantas mais Cesárias Évora, Tito Paris, Paulo Flores, Bongas terão de existir?
O batuku de que falas é o género musical que aparece no tema “Batuka” que ela lança em 2019.
Sim, sim. São cantos de lamento. São mulheres, quase todas analfabetas que depois utilizavam o batuku na prática dos casamentos, dos funerais, dos louvores a Deus e que a dada altura viram o seu género e o seu ritmo proibidos. Hoje, em qualquer canto do mundo onde vá e haja batucadeiras, recebo sempre uma mensagem por ter apresentado a Madonna ao batuku. Mas eu não fiz nada. Ela ficou foi fascinada com o que viu. Não acreditava que aquelas mulheres, depois daquilo, ainda iam lavar casas ou limpar o aeroporto. Viu naquelas mulheres uma força que nem ela tinha. Rejuvenesceu. E levou-as em tour. O batuku é o único momento em que aquelas mulheres realmente são o que nasceram para ser. De resto, são só escravas da sociedade.
E o Dino D’Santiago já é aquilo que nasceu para ser? No álbum anterior falavas nisso, no tema “Arriscar”.
Olha, sai-me tão caro… e quando eu digo caro é mesmo financeiramente caro. Foi um processo muito espiritual e de muito investimento na minha saúde mental.
[“Esquinas”:]
Em que sentido, psicoterapia?
Terapia do desenvolvimento pessoal e do desenvolvimento espiritual. Consultas semanais com uma psicóloga, que mantenho. Investimento em fisioterapias, porque o corpo, fruto dessas crenças que nos foram impostas, desses medos, foi-se ressentido. O “Arriscar” foi o primeiro grito, mas este disco ainda foi mais fundo. Tenho canções como o “Voei de Mim”: voei para tão longe de mim que quando me olhei ao espelho já não me reconheci; passo por mim diariamente e não me reconheço; piso a minha essência e penso que é um estranho que ali está. Felizmente passei essa fase, de ser o reflexo do que os outros achavam que o Dino devia ser e comecei a aceitar e amar as minhas dificuldades e limitações. Consegui transformar em canções todos os medos e mostrar a minha vulnerabilidade sem recear o estigma do passado. Não queria que soubessem a minha história porque pensava que assim o meu mérito seria assombrado. Que sentiriam pena de mim, da minha história. Hoje já não tenho esse complexo. E sinto que há uma urgência real: temos um lugar de fala que é o microfone e há tanta gente que sente o mesmo e só precisa de uma palavra e, mais do que tudo, de sentir que somos todos pares.
Que há ali um igual.
Que tens os teus medos, as tuas resistências, os teus sentimentos de culpa fruto de uma sociedade que utiliza o medo para dominar e que fazes parte dela, mas que tens o direito de decidir não carregar a tua cruz.
É na música que consegues resolver estas questões?
É o único sítio. Muitas vezes, saio do palco e não me lembro do que disse. Parece que és um canal. E saio exausto, porque sinto que dei tudo e recebi muito amor. Mas a responsabilidade é tão grande que não consigo ir para o palco somente para fazer as pessoas sorrirem e dançarem. Sinto que tenho de deixar uma palavra.
Que tipo de palavra?
“Arriscar a ser aquilo que nasci para ser, dobrar a esquina hoje eu vou viver” [“Arriscar”] “Branco com preto, geração de ouro” [“Nação Kriola”], porque eu acredito mesmo nessa geração de ouro, que se acultura sem medo e se transforma em ouro. Deixámos de ter correntes físicas para ter correntes mentais. Mas onde é que está a nossa vontade própria? Sinto que na cultura somos mendigos. Quando o Estado nos dá 0,25%, só temos indignação, mas não conseguimos ter reação, porque perpetuamos esta relação. O grande impulsionador da cultura em Portugal continua a ser o Estado. Como é que podemos querer ser olhados de outra maneira se não nos movimentamos para provar, por exemplo, que não existiria a história de um país sem a cultura?
E a espiritualidade, que tipo de papel desempenha na tua vida?
Gigantesco.
Ainda te sentes próximo da fé católica? Batizaste o teu filho, por exemplo.
Não visto nenhuma camisola. Batizei o meu filho pensando nos meus pais. Mas fi-lo de forma consciente, não por me sentir refém dessa religião. Decidi batizá-lo com o Padre César [Chantre], que abrigou o meu pai quando chegou a Sines nos anos 1970, numa altura em que ainda havia muita agressão aos retornados ou a quem viesse das ex-colónias. O Padre César, que trabalhava para o exército, abrigava-os na igreja a partir das cinco da tarde e eles dormiam lá. Quanto a mim, já não sinto que tenha de ir em busca da palavra católica; vou em busca da palavra que edifica. E encontro-a no budismo, no hinduísmo, no Corão. O meu melhor condutor sou eu próprio. E quero ir cada vez mais fundo.
“Não quero que o meu filho cresça com medos”
Falámos de cinco anos de travessia no deserto e agora temos desde Mundu Nôbu quatro anos de grande sucesso. Em termos emocionais, como é que se gere isto?
Muito psicólogo! A sério. Quero mesmo passar a mensagem de que não há mal nenhum em trabalhar a prevenção, não procurar ajuda só quando já estamos no limite. Ler muito. Sobre as histórias da humanidade. As civilizações. Perceber o quão ricas são as culturas que desconhecemos. Quando falamos “dos chineses” focamo-nos no mundano, os restaurantes chineses, as lojas chinesas, mas não percebemos a sabedoria ancestral que eles têm.
Foste este ano incluído na lista das Nações Unidas de 100 afrodescendentes mais influentes de 2021, foste o artista mais distinguido nos prémios Play, escreveram sobre ti na revista Rolling Stone, antes de tudo isto, a tua relação profissional com a Madonna: em miúdo, no Bairro dos Pescadores, em Quarteira, o Claudino Pereira alguma vez sonhou que isto podia acontecer?
Sabes que tenho de ser franco…
Claro.
Hoje, depois de um longo processo terapêutico, posso dizer que acreditei que tive uma infância feliz porque tentei meter dentro de um baú tudo o que me fez sofrer. Hoje, depois de abrir esse baú, percebi que sofri bastante e que criei o meu mundo imaginário. Então, no meu mundo de Peter Pan, via-me a fazer animé no Japão, via-me a passear com o Batman em Gotham City. Eram utopias. Hoje, mais consciente e a viver tudo isto, sinto uma profunda gratidão. Man… Por exemplo, os prémios, eu nunca os consegui receber genuinamente. Neste meu processo de terapia, vê lá, a minha psicóloga disse-me, “vais tirar uma foto com todos os prémios que tens”. Porque dei-os todos, pensando que não era merecedor. Então, com um fotógrafo, tirei fotos com todos. E só ao olhar para elas é que chorei. Como é que estive tão longe de mim que não me permiti ser feliz e sentir-me merecedor de tudo o que está a acontecer. Hoje já me sinto merecedor de tudo, recebi os prémios Play e a distinção da ONU com gosto, mas sei que tenho de estar sempre alerta, porque por trás há sempre aquela criança com medo da exposição, da desaprovação. E tenho de estar sempre ali a consolá-la, porque não quero que o meu filho cresça com medos.
Falando no teu filho, que é uma grande novidade na tua vida…
É “a” novidade.
Numa entrevista à Folha de São Paulo, falando da tua relação com o teu pai, dizias que os crioulos são duros na forma como criam e que tinhas crescido numa “prisão de amor”. Agora és pai. Tens-te debatido com estas questões?
Sinto-me a reescrever. Sinto o privilégio de, enquanto pai, viver nesta era. Sinto-me na pele de um novo crioulo. Crescemos com os pais africanos a terem de ser muito duros connosco porque a vida foi dura. No meio disto tudo, o meu pai tentou passar-nos muito amor. Hoje consigo perdoar as vezes em que me senti injustiçado e sei que não quero cometer o mesmo tipo de injustiça. É um compromisso que assumi para comigo. Sinto que perdi a minha criança, não a vivi como merecia, e como acredito que a criança é sempre a verdade eu quero perceber os “sins” e “nãos” do meu filho antes de o proibir do que seja.
E de que forma está o Lucas presente neste novo álbum?
Está em todas as canções. Fez parte do processo. Ele e a mãe estiveram connosco durante as quatro semanas em Março e Abril em que estivemos numa casa alugada na Terrugem, só a produzir. Éramos nós, os músicos e muitos que foram entrando via Internet. Desse tempo saíram 37 canções; eu escolhi 12. Até a voz dele está numa das canções, quando chorou durante um take e resolvi deixar ficar. Mesmo a forma como ele desconstruía o nosso cansaço. Ele aparecia e todos queríamos pegar nele. Foi lindo. Sinto que esta obra fecha bem a trilogia Mundu Nôbu, Kriola, Badiu. Se eu partisse deste plano da vida para outro já ia com a sensação de missão cumprida.
“Quem é o português afinal? O português é o povo mais crioulo da Europa”
Fecha-se um ciclo? Já sabes o que vais fazer depois?
Já estou em 2030! Já consigo ver o que está lá à frente porque eu estou sempre a projetar.
Então e o que é que está lá à frente?
Já me estás a lixaaaaaaaar……
Alguma coisa que queiras partilhar.
Lá à frente, um dos grandes objetivos é fazer da Ilha de Santiago o meu epicentro de comunicação. Levar para lá conhecimento e investir. De lá, fazer passagens periódicas por outros países: Bissau, Maputo, Luanda. Criar uma ponte verdadeiramente cultural entre o Brasil e os nossos países afroportugueses, acreditando sempre numa Lisboa crioula, que pode usar a sua influência eurocêntrica para traduzir isso em oportunidades de comunicação e diálogos.
Portanto, países afroportugueses, Brasil, Lisboa e Quarteira?
Isso mesmo. Para superarmos a supremacia anglosaxónica e espanhola. Participei numa série documental que vai sair pela HBO – “Accoustic Room” — e em 10 episódios 8 são com espanhóis. Os portugueses sou eu e o Plutónio. Dois portugueses de origem afroportuguesa que, se esta notícia fosse, por exemplo, sobre tráfico, seriam um “cabo-verdiano” e outro “moçambicano”. Portugal é muito mais do que as pessoas pensam. Quem é o português afinal? O português é o povo mais crioulo da Europa.
Sentes que a música portuguesa é finalmente multicultural, com um cruzamento orgânico das várias culturas?
Ela é sem dúvida multicultural. Nós é que ainda não aceitámos. Hoje, na era digital, quando vês os tops, tens artistas como a Nenny, que chega aos maiores programas nos EUA, como o Tinydesk da NPR, faz o Festival Afropunk, o Colours. Tens o Wet Bed Gang, que são número 1 em todas as plataformas mal editam um disco. Tens os Calema, que têm uma versão da canção “Te Amo” feita por duas das maiores artistas brasileiras [Simone e Simaria], já com milhões de visualizações, mais a versão que eles fizeram com uma superestrela marroquina [Saad Lamjarred], que em três meses já atingiu 40 milhões de visualizações. É preciso o Will Smith reconhecer o Bonga para nós olharmos para o Bonga de outra maneira.
É preconceito?
Também há uma grande responsabilidade que é nossa, dos artistas. Queremos tanto vingar em Portugal que nos esquecemos que temos outros mercados como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné. Agora África está na moda, mas esta fase vai passar e depois vamos olhar à volta e pensar que tipo de empoderamento é que demos a essas nações africanas. Cabe-nos a nós valorizar mais essa matriz e essas populações. Para que não queiramos todos passar na Rádio Comercial ou na Mega Hits. Não: vamos criar a nossa rádio. Os afro-americanos conseguiram criar a sua própria indústria de entretenimento. Quando estivermos todos a chorar, não vai acontecer nada.
O funáná é mesmo o novo funk?
Sem dúvidas! Nem que seja pela resiliência e, acima de tudo, pela força que tem, a que ninguém consegue ficar indiferente. Esse slogan nasceu-me na Coreia do Sul, quando o público ficou louco com o funáná, e perguntava “what is funaná?”, e eu não lhes conseguia explicar. Funáná é um estilo de vida, é um cântico de guerra, o grito de Ipiranga de um povo, do povo das minhas origens. Mas a forma que encontrei de lhes explicar foi dizer, “Do you know funk? James Brown? The energy is the same”.
No Instagram partilhas muitas coisas da tua vida. O que é que te motiva. Como lidas, geres?
Sinto que hoje é tudo tão “fake” que quis que aquilo fosse um reflexo real do que é a minha vida. Ao mesmo tempo, percebi que há muita gente que deixa de me seguir sempre que o assunto é a situação de ser negro, a luta diária. Então há uma filtragem natural. Se eu falecer um dia, isto que aqui está é verdade. Em tudo o que faço quero ser transparente.
Mas agora apagaste uma série de posts. Agora só lá estão coisas a partir de novembro.
Não apaguei; arquivei. Agora é o Badiu, um novo capítulo. O que já foi feito, está feito. E é esse desprendimento que eu procuro. Precisamente para não darmos tanta força àquela máquina. A vida não acontece ali; a vida está a acontecer aqui. O resto imprimo e ponho numa moldura e penduro em casa. Agora é a jornada do Badiu, a minha jornada mais consciente de mim para mim e mais vulnerável. E a sentir-me forte nessa vulnerabilidade. E isso não tem preço.