Em setembro de 2022, foi aprovado na Dinamarca um Plano de Saúde Mental para os próximos dez anos. Uma das áreas consideradas prioritárias foi a prevenção e intervenção precoce em crianças e jovens e o programa Mind My Mind tem sido apresentado como uma das iniciativas exemplares daquele país do norte da Europa em matéria de saúde mental.
O programa, concebido, desenvolvido e liderado pela investigadora e pedopsiquiatra Pia Jeppesen entre 2015 e 2016 e testado em quatro municípios da Dinamarca entre 2017 e 2019, está agora a ser implementado a uma escala maior, podendo em breve tornar-se um projeto de âmbito nacional.
Pia Jeppesen, o sociólogo Johan Ørsted Petersen e a investigadora e psiquiatra Louise Fugl Madelaire, que também integram o projeto, explicam como o Mind My Mind pode ser uma solução para tornar mais acessíveis os cuidados de saúde mental a crianças e jovens e uma oportunidade de reduzir o peso das perturbações mentais a longo prazo.
O Mind My Mind é um programa de saúde mental para crianças e jovens, dos 6 aos 16 anos, pensado para ser implementado nas escolas, tal com acontece acontece com programas de saúde oral. Qual a importância de um programa como este?
Pia Jeppesen (PJ): Na Dinamarca, 15% dos jovens são diagnosticados com uma doença mental antes dos 18 anos e estas taxas têm vindo a aumentar nos últimos 20-30 anos. Como na maioria dos países do mundo, temos cada vez mais jovens com ansiedade, sintomas depressivos, solidão, problemas de sono, distúrbios de comportamento, automutilação e irritabilidade. Isto indica um desenvolvimento negativo que deve ser levado a sério. São necessárias soluções em larga escala para satisfazer as necessidades urgentes destes muitos jovens.
Daí a criação do Mind My Mind?
PJ: Sim. É um programa para crianças e jovens que precisam de ajuda para problemas de saúde emocionais e comportamentais. O acesso à psicoterapia para aquelas faixas etárias continua limitado em todos os países do mundo, apesar da eficácia comprovada de diversos tipos de terapia. Como sociedade, estamos a perder a oportunidade de reduzir o peso das perturbações mentais.
Como é que o Mind My Mind contribui para que isso não aconteça, para que não se perca essa oportunidade?
PJ: A abordagem transdiagnóstica [que releva e inclui fatores, mecanismos ou processos partilhados por várias perturbações psicológicas] pode ser a forma de aumentar o acesso à intervenção precoce. O programa Mind My Mind consiste numa terapia cognitivo-comportamental (TCC) individualmente adaptável, transdiagnóstica para o grande grupo de jovens que precisa de ajuda, baseando-se no conhecimento existente de intervenções eficazes para a ansiedade infantil, sintomas depressivos e problemas comportamentais. A primeira abordagem transdiagnóstica e modular à terapia para crianças cientificamente avaliada foi o programa MATCH, desenvolvido por dois professores de psicologia (John Weisz, da Universidade de Harvard, e Bruce Chorpita, da Universidade da Califórnia), que identificaram e incluíram intervenções baseadas na evidência para problemas de ansiedade, depressão, trauma e comportamento num manual de tratamento, que foi testado no programa Child STEPS. Dois ensaios de grupo controlados e aleatorizados demonstraram efeitos benéficos desta desta abordagem em comparação com a TCC convencional e com os cuidados habituais. Inspirado por este trabalho pioneiro, um grupo de clínicos e decisores políticos na Dinamarca decidiu desenvolver uma versão dinamarquesa desta abordagem com o objetivo global de tornar a terapia baseada na evidência para crianças e jovens amplamente acessível no ambiente escolar da comunidade local.
E nasceu então o programa Mind My Mind. Quando é que começou a ser aplicado?
PJ: O manual Mind My Mind foi criado em 2015 e o projeto-piloto foi desenvolvido em 2016. Tal como o manual MATCH, estruturámos o tratamento de acordo com os princípios e métodos que são utilizados nos bem documentados programas daquela terapia (cognitovo-comportamental) para ansiedade, estados depressivos e perturbações comportamentais. A partir daí, enumerámos no nosso manual os métodos e técnicas-chave que pretendíamos. Depois recorremos a três psicólogos clínicos experientes para escrever o manual, em colaboração comigo como responsável pela investigação.
É muito detalhado, esse manual?
PJ: O manual de tratamento prescreve 9-13 sessões de formação individual, em 17 semanas ou menos, com duas sessões de reforço, respetivamente 12 e 24 semanas após o final do tratamento. O manual está escrito de forma orientar mesmo psicólogos que tenham uma formação muito limitada em psicoterapia. Para isso, as instruções são exaustivas, mas fáceis de ler. O conteúdo está organizado em módulos genéricos e módulos específicos de cada problema. Cada módulo é apresentado num formato fixo, começando com uma visão geral dos objetivos, materiais, processos e métodos, seguido de instruções detalhadas de quando e como aplicar os métodos e técnicas. Além disso, ao longo do manual são dados exemplos do diálogo entre o terapeuta e os participantes. Os princípios-chave são destacados em caixas, e são utilizadas vinhetas clínicas para ilustrar o curso da terapia, denominado formação.
E como é que do manual se passou à prática?
PJ: Inicialmente, implementámos o programa num ensaio controlado aleatorizado que realizámos entre 2017 e 2019 em quatro municípios da Dinamarca, que envolveu 396 crianças. O nosso objetivo era estudar a eficácia da abordagem para jovens com problemas emocionais e comportamentais comuns. Comparámos os benefícios, danos e custos do Mind My Mind com os benefícios, danos e custos do tratamento habitual em ambiente escolar, não especializado, longe da clínica universitária. Utilizámos os relatórios dos pais, professores e testemunhos das crianças e jovens para quase todos os resultados. Os participantes foram recrutados entre os jovens com problemas emocionais e comportamentais que procuravam ajuda e foram incluídos todos os que não necessitavam de encaminhamento para os serviços de saúde mental. Este recrutamento foi feito com a ajuda de professores, enfermeiros de saúde escolar, psicólogos e outros profissionais que apoiavam os pais na procura de avaliação. Não foi necessário qualquer encaminhamento formal, uma vez que rastreámos todos os requerentes de ajuda através de um rastreio padronizado, em duas fases, que implementámos nos municípios.
E através desse rastreio foram excluídos do programa crianças e jovens que necessitavam de ajuda mais especializada?
PJ: Sim, exatamente. Crianças e jovens com diagnóstico clínico prévio de qualquer perturbação de desenvolvimento ou com sinais de incapacidade intelectual ou perturbação mental grave não foram incluídos no programa. Quando encontrámos casos desses, apoiámos a família na procura de tratamento especializado através do encaminhamento para os serviços de saúde mental.
Que situações foram essas? Que casos excluíram?
PJ: Perturbação do espectro do autismo, perturbação do défice de atenção/hiperatividade, perturbação psicótica, perturbação alimentar, perturbação obsessivo-compulsiva, automutilação repetida e abuso de álcool ou drogas psicoativas.
E os que participaram no projeto-piloto, que resultados obtiveram? Houve algum diagnóstico mais comum?
PJ: Aos escolhidos aleatoriamente para o grupo de intervenção com o Mind My Mind foi dado um curso de formação constituído por 9-13 sessões semanais com o seu psicólogo (chamado de formador) para treinar novas formas de pensar, aprender a lidar com os problemas e aprender a lutar para atingir os seus objetivos. A ansiedade foi o problema primário mais comum, a que chamámos problema principal [top problem] (58%), seguido de problemas comportamentais (26%) e depressão (16%). Os jovens com ansiedade começaram geralmente com psicoeducação para aumentar a consciência das emoções e integrar o modelo cognitivo. O módulo seguinte concentrou-se no aumento da flexibilidade cognitiva. Utilizámos o “raciocínio de detetive” para ajudar a criança a substituir os pensamentos negativos automáticos por pensamentos mais úteis e realistas sobre a probabilidade de acontecerem as situações ou eventos que temiam e as suas consequências. Este trabalho preparou o caminho para a exposição gradual da criança às situações ou objetos temidos. A criança e os pais trabalharam com o terapeuta para construir uma hierarquia de medos e para planear as recompensas da criança em cada etapa da exposição aos mesmos. O principal objetivo era reduzir os comportamentos de evitamento e, aos poucos, enfrentar as atividades temidas sem pânico e assim controlar a ansiedade através da regulação das emoções.
Parecem resultados promissores, os desse projeto-piloto. O que aconteceu a seguir?
PJ: Os resultados foram muito promissores, considerando que o Mind My Mind foi implementado para utilização num ambiente não especializado, escolar, e a terapia foi conduzida por psicólogos com muito pouca experiência anterior com TCC. É importante, por isso, que os decisores políticos reconheçam que a evidência de eficácia diz respeito a um programa apoiado por materiais de alta qualidade com instruções detalhadas, ensino e supervisão semanal. O modelo de implementação foi provavelmente crucial para a eficácia. Isto significa que o programa e manual Mind My Mind não pode ser implementado apenas parcialmente, é entregue como um pacote completo, incluindo a base de dados para a monitorização do fluxo e dos resultados dos participantes, a formação e supervisão de psicólogos, incluindo a utilização de vídeo-feedback das sessões utilizadas na supervisão. Espero que os clínicos defendam a implementação em larga escala dos programas para assegurar a qualidade dos cuidados a crianças e jovens.
E o programa Mind My Mind já está a ser implementado na Dinamarca a nível nacional?
Johan Ørsted Petersen (JOP): Não. Até agora, o programa está implementado em oito dos 98 municípios, incluindo os quatro originais onde foi feito o ensaio. Mas, em setembro do ano passado, o Parlamento [dinamarquês] aprovou um Plano de Saúde Mental para os próximos dez anos, que se centra em cinco áreas que necessitam de ação, a primeira das quais diz respeito a crianças e jovens que se encontram em sofrimento mental e têm sintomas de distúrbios mentais. Consequentemente, o Parlamento concordou em financiar uma intervenção preventiva e de fácil acesso para crianças e jovens, a nível municipal. A intervenção descrita no plano corresponde ao programa Mind My Mind, o que significa que este poderá ser implementado à escala nacional. As negociações sobre qual o programa a financiar ainda não começaram, mas espera-se que tenham lugar nesta primavera.
Se isso se concretizar, que resultados poderá ter a curto e médio prazo?
PJ: Esperamos que as crianças tenham fácil acesso a psicoterapia baseada na evidência quando têm problemas emocionais e comportamentais que afetam a sua saúde mental e a sua vida e que o tratamento as ajude a controlar melhor estes problemas para um maior bem-estar e um melhor funcionamento diário e social. A longo prazo, a esperança é de melhores resultados em termos de qualidade de vida relacionada com a saúde, taxas mais baixas de doenças mentais graves e menos pessoas que abandonam a educação, o emprego e a formação.
Como é que as crianças e os jovens abrangidos pelo Mind My Mind têm reagido ao programa?
JOP: Sabemos pelas entrevistas com pais que as famílias estão extremamente satisfeitas. Em particular, pelo facto de o psicólogo, no programa Mind My Mind, trabalhar com a família na resolução dos seus problemas específicos. Também expressam gratidão pelo apoio na interiorização do pensamento cognitivo. Por outro lado, os pais recebem tarefas concretas para levarem para casa e trabalharem e isto dá-lhes várias ferramentas nas quais podem apoiar-se quando surgem novos problemas.
A abordagem do Mind My Mind é transdiagnóstica, mas os processos terapêuticos são definidos em função dos problemas específicos de cada criança ou jovem, não é?
Louise Fugl Madelaire (LFM): Sim, em geral, sim. No programa Mind My Mind exploramos o facto de que vários princípios e abordagens terapêuticas são comuns, e eficazes, a diferentes problemas e espectros de diagnóstico. Baseando o tratamento no problema principal que a criança ou cuidadores identificam e não num diagnóstico específico, somos capazes de individualizar a terapia e torná-la mais significativa para a criança e/ou cuidadores. Dito isto, haverá muitas vezes diferenças nos elementos da terapia que serão mais relevantes e adequados para os diferentes problemas. Por exemplo, se a ansiedade for o problema principal, o foco estará na terapia de exposição, enquanto que, se os problemas comportamentais forem o problema principal, haverá um foco acrescido na formação dos pais. Em geral, nos problemas de saúde mental, existe uma vasta gama de tratamentos, desde a terapia ambiental, apoio psicossocial, psicoeducação, terapia individual, familiar ou de grupo até diferentes categorias de tratamento médico.
A idade das crianças abrangidas pelo Mind My Mind vai dos 6 aos 16 anos. A abordagem terapêutica é diferente para crianças e adolescentes?
LFM: Para crianças mais pequenas, a terapia é dirigida aos pais (como na formação parental para crianças com problemas de comportamento) ou, pelo menos, envolve-os substancialmente. Para as crianças mais velhas, os pais estão menos envolvidos e para os adolescentes acima dos 15 anos estão pouco envolvidos ou não estão de todo. Além disso, é essencial adaptar a terapia ao nível cognitivo e maturidade emocional das crianças.
Quais são os principais problemas de saúde mental de crianças e adolescentes na Dinamarca?
LFM: Antes de mais, é essencial distinguir entre problemas de saúde mental e perturbações de saúde mental (diagnósticos psiquiátricos). O Mind My Mind é dirigido para os problemas das crianças, sem que se nomeie um diagnóstico. O nosso foco está no seu problema principal para as ajudar no que é importante para elas. No ensaio, fizemos diagnósticos de investigação e descobrimos que 80% preenchiam efetivamente os critérios para pelo menos um diagnóstico psiquiátrico e 26% tinham dois ou mais diagnósticos, transcendendo as principais categorias de diagnóstico. Assim, podemos concluir que estas crianças chegam relativamente tarde ao processo, tendo em consideração que trabalhamos com prevenção e não com tratamento efetivo. Consideramos grave o facto de tantas pessoas que procuram ajuda preencherem de facto os critérios de diagnóstico de uma perturbação psiquiátrica.
E quais são os diagnósticos mais comuns?
LFM: Em geral, a incidência das perturbações psiquiátricas distribui-se de forma diferente entre rapazes e raparigas. As cinco perturbações com maior incidência acumulada até aos 18 anos nas raparigas dinamarquesas são as perturbações de ansiedade (7,9%), Perturbação de Hiperatividade e Defice de Atenção, ou PHDA, (3,0%), perturbações do humor (2,5%), perturbações alimentares (1,8%) e perturbações do espetro do autismo (1,8%). Para os rapazes dinamarqueses é PHDA (5,9%), transtorno de ansiedade (4,6%), perturbações do espectro do autismo (4,3%), outras perturbações do desenvolvimento (2,7%) e perturbações do uso de substâncias (1,6%). Estes números são provenientes de um estudo epidemiológico de âmbito nacional da [revista cientívida] JAMA Psychiatry de 2019.
E estes dados revelam um aumento da prevalência?
LFM: Os estudos epidemiológicos populacionais mostram uma prevalência relativamente estável de perturbações mentais em crianças e adolescentes. Mas nas últimas décadas verificamos um aumento de famílias que procuram ajuda, de encaminhamentos e entrada nos serviços de saúde mental para crianças e adolescentes e de diagnósticos psiquiátricos. Ao contrário do que se poderia pensar, esta é uma boa notícia, porque significa que estamos menos dispostos a aceitar que as crianças tenham problemas de saúde mental sem obterem a ajuda e apoio de que necessitam.
Por que acha que isso está a acontecer, então?
LFM: Diminuição do estigma, maior sensibilização, melhor tratamento e mudanças nos critérios de diagnóstico são algumas das razões para este aumento, que resulta sobretudo da visibilidade e reconhecimento dos problemas existentes. Mas há uma discussão sobre se estará a ocorrer um aumento real das perturbações de saúde mental, embora tenhamos estudos que relatam uma diminuição geral do bem-estar das crianças e adolescentes, pelo que, quer se verifiquem ou não critérios para diagnóstico psiquiátrico, parece que temos um verdadeiro desafio em matéria de saúde mental na nossa sociedade.
O que torna um programa como o Mind My Mind ainda mais pertinente, num contexto em que o acesso público ao apoio psicológico e à psicoterapia é problemático em quase todos os países do mundo, mesmo nos mais desenvolvidos. O que falta para tornar universais programas como este? Vontade política?
JOP: A área psiquiátrica está significativamente atrasada em termos de recursos, financiamento, investigação, conhecimento, etc. Isto significa que o acesso a tratamento psicológico, pelo menos na Dinamarca, é muito mais difícil e frequentemente de menor qualidade do que, por exemplo, o acesso ao tratamento oncológico ou da diabetes. Uma explicação para este facto é a estigmatização que tem condicionado a saúde mental, e de muitas formas ainda o faz. Na Dinamarca, isto resultou em falta de vontade política e em estratégias de curto prazo. Mas a opinião pública e política parecem ter mudado e existe agora maior vontade de agir e de dar prioridade à saúde mental.
Ainda assim, mesmo com vontade política de financiar e lançar um programa como o Mind My Mind, ainda há várias etapas a vencer para implementar o projeto sem comprometer a qualidade. Cada município na Dinamarca tem a sua própria administração, o que torna a implementação difícil. Para que seja bem-sucedida, é preciso o empenho e envolvimento de todos os níveis da administração: governo, regiões, municípios e os psicólogos responsáveis pelo programa.
O Mind My Mind poderia ser aplicado em Portugal?
JOP: O programa Mind My Mind está protegido por direitos de autor, mas, sim, penso que poderia haver uma colaboração com o governo português ou outras entidades para a sua implementação em Portugal. Em alternativa, poderia ser criado um programa inspirado pelo Mind My Mind — com uma configuração semelhante e baseado em terapia cognitiva comportamental.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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