Sexta-feira, 18h20, e Daniel Martinho está a tentar vencer um campeonato de karts. Virtual. Nas mãos, uma consola Wii, até que o trânsito entre Leça do Balio e Vila Nova de Gaia diminua. Em Lionesa, a norte do Porto, o Super Mario acelera para chegar em primeiro. O jovem nos comandos espera. Só vai para casa por volta das 19 horas. Até lá, descontrai, que o dia começou cedo, às 8h45. E não é o único.
Daniel Martinho tem 26 anos e é software tester na Farfetch, ou seja, testa tudo o que é desenvolvido pela equipa de programação. Trabalha naquele que é o segundo maior site de comércio eletrónico de moda de luxo há pouco mais de um ano. A poucos metros de Daniel, estão quatro colegas a jogar Playstation. Entram na sala mais cinco, vestidos a rigor para um treino desportivo. Ao lado, uma mesa de pingue-pongue e outra de matraquilhos.
Ténis, colchões e um vídeo que começa a transmitir um treino de T25. É o norte-americano Shaun T quem dá as ordens. Sérgio Laranjeira, Carina Moura, Milena Araújo, Salomé Vieira e Sandra Pereira seguem as indicações. E explicam: todos os dias há treinos, ao final da tarde. À hora de almoço de terças e quintas-feiras há aulas de kizomba, salsa e bachata. Tudo isto na sede da Farfetch, a empresa portuguesa que em março foi avaliada em mil milhões de dólares, cerca de 918 milhões de euros. É agora uma das 78 empresas mundiais a entrar no The Billion Dollar Startup Club, do Wall Street Journal. E a única portuguesa.
Porquê um site de comércio de moda de luxo?
A proeza levou a Farfetch para o epicentro dos holofotes da imprensa internacional. Uma empresa de comércio online de moda de luxo lançada por um português com um modelo de negócio assente em comissões era agora uma “unicórnio”, o termo que Aileen Lee, fundador da Cowboy Ventures, utilizou para batizar as startups que atinjam esta valorização. O Financial Times não lhe ficou indiferente e lançou a dúvida, com base na ausência de lucros da empresa. Estará a tecnologia londrina a formar uma bolha?
José Neves, presidente e fundador da Farfetch, diz que o veredicto final não foi surpresa. Era a avaliação que tinha pedido naquela ronda de financiamento – recebeu 76 milhões de euros em troca de uma percentagem da empresa, o que extrapolando para o total do capital fez com que a empresa valesse mil milhões de dólares -, a quinta desde que a empresa foi lançada, em 2008. Em cima da mesa de negociações, estavam três propostas. O português explica ao Observador porque escolheu a liderada pela capital de risco DST Global. “Tinha os ingredientes necessários.” As portas abriram-se não para um admirável mundo novo, mas para um admirável mundo de contactos.
“[A DST Global] foi um dos investidores mais fortes do Facebook. Se eu quiser falar com Mark Zuckerberg através deste investidor, consigo. Não estou a dizer que é fácil e que basta pegar no telefone e ligar. Mas sei que tenho as portas abertas, se for necessário e estratégico para a empresa”, conta. O fundador da capital de risco, o russo Yuri Milner, disse ao Financial Times que tinha investido na Farfetch porque a startup tinha uma “equipa forte, um crescimento impressionante e um grande potencial”.
Foi a visão de Yuri Milner que contribuiu para a decisão e que fez José Neves recordar o momento em que o investidor impediu a venda do Facebook à Yahoo!. “Ele disse ‘não, isto é uma loucura’, não faz sentido vender esta empresa’. Hoje, o Facebook vale 227 mil milhões de dólares e Yuri Milner multiplicou 22 vezes o dinheiro dele”, diz. A Yahoo!, por sua vez, vale pouco mais de 42 mil milhões de dólares, ou seja, menos de um quinto do que a empresa liderada por Mark Zuckerberg.
Mil milhões sem lucros. Há bolha?
A última ronda de investimento avaliou a Farfetch em 918 milhões de euros, mais do que aquilo que o Banif vale em bolsa, por exemplo. Mais do que a PT SGPS (cerca de 518 milhões de euros), a Novabase (74 milhões) e o Sport Lisboa e Benfica (32 milhões) juntos. Estará a Farfetch sobreavaliada? “Por cada cético, há uma pessoa que escreveu o cheque, assinou e pagou. É como outra coisa qualquer. Quando vai a um restaurante, será que o preço que paga por aquela refeição vale mesmo esse dinheiro? Por cada pessoa que não entra, há uma que entra. Os preços estão determinados assim”, diz.
A 31 de março, a italiana Yoox anunciou que vai comprar a concorrente da Farfetch – e líder mundial no setor – Net-A-Porter, para criar um gigante tecnológico da moda de luxo. A operação valorizou a nova empresa em três mil milhões de euros, com base numa faturação de 1,3 milhões em vendas anuais.
Tendo em conta o mesmo rácio (valor de mercado/faturação), para atingir uma avaliação de mil milhões de dólares (918 milhões de euros), a Farfetch teria de faturar 397,80 milhões de euros num ano, mais 35% do que aquilo que faturou em 2014 (293,70 milhões de euros). Contudo, os objetivos para 2015 ultrapassam em 15% esse montante. José Neves espera que a Farfetch termine o ano com vendas no valor de 459 milhões de euros.
A dúvida sobre uma eventual bolha tecnológica não assusta o empreendedor. Faz antes com que se sinta lisonjeado. “Nós nem sequer estamos cotados em bolsa. Nunca poderíamos criar uma bolha que a afetar alguém, afetaria os investidores. E esses investidores são investidores profissionais que avaliaram a empresa entre centenas de outras empresas”, conta. A Farfetch vende cerca de 125 mil produtos de moda de mais de 1.500 marcas, como a Alexander McQueen, Chloé, Dolce & Gabbana ou Marc by Marc Jacobs, oriundas de mais de 300 lojas. Em média, os clientes da Farfetch gastam cerca de 645 dólares por compra.
José Neves explica que a Farfetch é rentável na Europa e que, a nível global, os resultados ainda não são positivos, porque a empresa está a fazer investimentos na abertura de novos mercados, como Xangai, Moscovo ou Tóquio. Em São Paulo trabalham 60 pessoas.
O que intriga na valorização da Farfetch? O facto de a empresa ainda não ter apresentado lucros, mas José Neves sublinha que que isso só se verifica nos resultados globais da empresa. “Na Europa, a Farfetch é rentável. Em Portugal, a empresa tem resultados líquidos positivos, paga impostos. O que ainda não é rentável é o grupo todo, porque estamos a fazer investimentos. Abrimos escritórios em Xangai, Moscovo e vamos agora abrir em Tóquio. Temos 60 pessoas a trabalhar em São Paulo, por exemplo”, diz.
Em 2008, investiu “o que tinha e o que não tinha”
Criada em pleno epicentro da crise financeira, a Farfetch entrou no mercado duas semanas antes da falência do banco de investimento norte-americano Lehman Brothers, em setembro de 2008. A ideia tinha surgido no ano anterior, durante a Paris Fashion Week, onde José Neves estava presente com a marca de calçado Swear, que lançou em 1996, em Londres. Foi aí que reparou que havia uma oportunidade de mercado no retalho de luxo.
“Vimos que os retalhistas de moda que foram ao nosso showroom – pequenas lojas com um ponto de vista fantástico e uma curadoria fantástica – estavam em dificuldades. E os grandes grupos que se tinham lançado na internet estavam com sucesso”, conta. Foi aí que percebeu que tinha de criar uma plataforma para que estes curadores pudessem aceder à clientela global. “Depois, foi meter as mãos à obra”, revela. O facto de a Farfetch ter nascido a par com a crise financeira ainda hoje está no ADN da organização. Trouxe-lhe disciplina e “ponderação nos custos”, que se mantém.
Por não ter conseguido encontrar investidores para a empresa, avançou com capitais próprios. “Foi tudo o que tinha e o que não tinha”, conta. O “desafogo” da primeira ronda de investimento, de cerca de cinco milhões de dólares (4,6 milhões de euros) aconteceu em 2010, numa altura em que a empresa já estava com tração e o mercado com liquidez. “Fazíamos cerca de 15 milhões de dólares em faturação anual, tínhamos uma equipa dinâmica e várias lojas na plataforma. Já dava para perceber que era um negócio com pernas para andar”, revela. Entre 2008 e 2015, a empresa passou por cinco rondas de investimento.
Sempre quis ser patrão de si próprio?
Londres, e uma paixão que começou na programação
Aos oito anos, os pais de José Neves ofereceram-lhe um computador ZX Spectrum, no Natal. Vinha acompanhado de um manual de programação. Era um “brinquedo fantástico”, com o qual não podia brincar – 48k de memória, que equivale à dimensão de um email hoje, que não tinham um único jogo. Nem monitor – o computador tinha de ser ligado à televisão. Abriu a primeira página do manual. Quando percebeu que podia “mandar” na televisão, os jogos transformaram-se em programação. “Achei aquilo fascinante. Fiquei apaixonado e a partir daí já nem quis saber de jogos”, conta.
Não deixou de programar, mas na chamada “hora h”, optou por se formar em Economia. Queria ser patrão de si próprio, empreender. “Sabia que conseguia aprender programação por mim próprio, mas que não conseguia ler balanços e demonstração de resultados e entender contabilistas. Para isso, precisava de formação”, diz. José Neves nunca teve um emprego por conta de outrem. Aos 19 anos, lançou a primeira empresa, a Grey Matter, de software. Ainda estava na faculdade. A Swear, de calçado, veio dois anos depois.
Como é que a programação se casa com a moda? Pela mão do avô, que teve uma fábrica de sapatos em Felgueiras, e com a ajuda da região que o viu nascer. Quando lançou a Grey Matter, o “cliente natural” no Norte era a indústria têxtil e do calçado. A partir daí os percursos seguiram em paralelo. Chegar a Londres foi uma questão de tempo.
“Sempre tive o sonho de viver no estrangeiro, de ter uma vida internacional, de viajar. Quando tinha 13 anos, a minha mãe fez um doutoramento no King’s College London e eu ia para lá frequentemente com ela. Apanhei aquele gosto por viagens e por Londres, em particular”, conta o primeiro empreendedor português do One Billion Dolar Startup Club.
25 perguntas rápidas a José Neves
Em sete anos, o ecossistema de empreendedorismo mudou em Portugal, numa época que foi marcada pela crise – primeiro a financeira e depois a que recaiu sobre a economia real. José Neves espera que a Farfetch e outras startups que estão a ter sucesso no estrangeiro sejam uma fonte de inspiração para quem quer arriscar com um negócio próprio.
“Existe crise, sem dúvida, mas também existem oportunidades. Falou de desemprego e é verdade. Há desemprego em certas áreas, mas também há uma grande falta de pessoas para áreas como engenharia informática e tudo o que esteja ligado a tecnologias”, diz. E deixa uma sugestão aos governantes: porque não possibilitar que um engenheiro químico se transforme num informático num ano, por exemplo? “As teorias de base e a capacidade académica estão lá. As bases científicas são as mesmas. Rapidamente poderia ser readaptado”, diz, sem dúvidas de que o país mudou. Está mais ativo no empreendedorismo. E mais interessante. “Penso que a nível externo já se olha para Portugal quase como uma Berlim do Oeste”, acrescenta.
7,34 milhões de euros em 24 horas
A Farfetch é o segundo maior site de comércio online de moda de luxo, a seguir ao Net-A-Porter. Para 2016, o objetivo é chegar a primeiro. Como? Competindo pela diferenciação de produto e pelo modelo de negócio. “Apesar de muitas vezes os nossos produtos serem da mesma marca, são diferentes e comprados pelas nossas boutiques de forma diferente. E também temos cerca de mil marcas, mil designers mais alternativos, mais interessantes”, conta.
Enquanto a Net-A-Porter é um negócio de retalho puro, a Farfetch funciona como se fosse uma comunidade de curadores de moda, espalhada pelo mundo. Não tem armazém central e quem envia as encomendas aos clientes são as lojas. A empresa de José Neves recebe, por sua vez, uma comissão pelas vendas. “É essa parte de curadoria, de presença física e de descoberta de novos mundos que vamos explorar. E penso que é por aí que vamos ultrapassá-los”, diz.
A 21 de novembro de 2014, a Farfetch faturou 7,34 milhões de euros em 24 horas. E o cliente de topo gastou cerca de 698 mil euros em mais de 400 pedidos, que incluíram 30 casacos, 145 vestidos, 88 jaquetas, 42 pares de sandálias, 17 pares de botas e 58 pares de sapatos. Cerca de 450 mil pessoas, oriundas de 180 países, fazem compras na Farfetch. Por mês, a loja online tem cerca de nove milhões de visitas. E os principais mercados são os Estados Unidos da América, Reino Unido, Brasil, Austrália, China, Japão, Coreia e Alemanha.
Quando o Observador lhe pergunta qual foi o seu maior erro, José Neves responde que erra muito, todos os dias. E relembra uma decisão que poderia ter saído cara, mas que conseguiu resolver a tempo – quando se lançou no mercado norte-americano numa parceria 50-50 com outra empresa. Valeu-lhe o facto de ter conseguido comprar a outra participação numa ronda de financiamento.
“O mais importante é termos paixão pelo que estamos a fazer, ter uma ideia clara da nossa missão. É daí que vem a força de vontade que faz com que nada nos pare”, diz. É a determinação “inabalável” que faz com que se esteja num projeto onde mesmo quem falhou, não falhou. “Porque falhar teria sido não tentar”, diz.
O que é a Farfetch? Pessoas. A equipa que José Neves classifica como fantástica. No escritório da empresa, em Leça do Balio, há o desenho de um coração branco numa bola vermelha, de um globo branco noutra, de uma lâmpada noutra, de um foguetão noutra e de três pessoas numa bola maior. São mensagens para os colaboradores: Be human (sê humano), Be global (sê global), Be brilliant (sê brilhante), Be revolucionary (sê revolucionário) e, por último, em português, ”todos juntos”.
O que pensam os colaboradores
Nos mercados onde a Farfetch tem escritórios (sete), trabalham mais de 600 pessoas, espalhadas por países como Portugal (Leça do Balio e Guimarães), Reino Unido, Estados Unidos, Japão, Brasil, China e Rússia. Só em Portugal, trabalham cerca de 300 pessoas e a tecnologia da Farfetch é 100% portuguesa.
Todos os dias chegam e saem do escritório da empresa dois autocarros para levar os colaboradores que moram em Braga ou em Guimarães a casa. À sexta-feira, há surpresas. No dia em que o Observador visitou as instalações da empresa em Leça do Balio, os colaboradores receberam bolas de Berlim, oferecidas pela Farfetch. Não valem mil milhões de dólares, mas valeram centenas de sorrisos. “Quem faz esta empresa são as pessoas. As pessoas são o mais importante. A ideia é secundária”, disse José Neves. Secundária, mas multimilionária. É uma ideia de mil milhões de dólares.