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Benjamim precisava de uma fuga. Um escape da realidade para o ajudar a lidar com uma série de desilusões que o atormentavam — pessoais, políticas, climáticas. Construiu um universo sonoro tendo como base o arquipélago das Berlengas, ao largo de Peniche.
Começaram por ser umas Berlengas imaginadas, projetadas na sua mente, que ganharam realismo — mas, sobretudo, surrealismo — quando Benjamim e uma equipa de cineastas e bailarinos se deslocaram às ilhas para alargar o projeto. Um disco que se tornou num filme e que vai originar um espetáculo.
Já se pode ouvir AS BERLENGAS, o quarto álbum de Benjamim, que foi editado a 5 de abril. É o resultado de um processo “exigente” que começou em 2017 e que está longe de estar terminado. A apresentação oficial do espetáculo acontece a 29 de abril no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Sem data prevista, o filme ainda está a ser rodado.
A semente de um projeto “alucinante” e “ambicioso”
Benjamim estava “farto” de escrever discos com canções eficazes, muitas vezes à guitarra. Tinha acabado de gravar o álbum 1986, editado em 2017. “Estava cansado de estar tudo muito certinho, com o formato pop de canção. E agarrei na minha MPC, uma caixa de ritmos sampler, e comecei a fazer umas coisas mais alternativas. Andava numa fase mais exploratória.”
[o novo álbum “AS BERLENGAS” está disponível na íntegra no Spotify:]
A arte do sampling não lhe era estranha. Desde os 18 anos que Benjamim faz experiências caseiras. Numas férias de verão no Alvito, vila alentejana a que também chama casa, gravou a banda dos bombeiros, que passava debaixo da sua janela durante a procissão, e usou o som que captou para construir um tema. Desde então que cultiva o gosto e os seus discos evidenciam isso mesmo, com diversos apontamentos, seja instrumentos manipulados e alterados ou sons do quotidiano que integra no corpo da obra que compõe. “Mas aqui quis levar isso mais ao extremo.”
Benjamim nunca tinha ido às Berlengas nem tinha qualquer relação com o arquipélago. “Só as tinha visto ao longe a partir de Peniche, talvez uma vez na vida. Mas sempre tive a ideia de ‘um dia, hei-de ir às Berlengas’.”
Num certo verão, após várias saídas à noite no Cais do Sodré, começou a desenvolver um universo sonoro e narrativo de forma muito orgânica. “Chegava a casa vindo da noite, estava solteiro, tinha os meus instrumentos todos espalhados pela sala, às vezes um bocado com os copos, ligava o sampler e era uma fuga para mim. De repente já era de manhã. E começou quase a ser uma terapia, porque metia os fones e estava mergulhado naquele universo. Comecei a ir ao Google, a pesquisar fotos das Berlengas e aquela água de repente parecia as Caraíbas. Toda a gente dizia que era gelada, mas na minha cabeça era quente.”
Estas Berlengas imaginadas, que ganharam vida através da MPC e outras ferramentas artísticas, foram servindo de base para uma história de espírito cinematográfico que Benjamim foi criando a pouco e pouco. “Durante muito tempo, não quis ir lá, porque não queria desfazer o mito da minha cabeça. Comecei a imaginar uma ilha maior do que ela é, personagens que lá viviam, e imaginava pessoas a dançar. As músicas tinham significados específicos dentro de uma narrativa muito vaga, e ao longo de anos fui pegando, largando e voltando a pegar. E houve um dia em que disse ao realizador Bruno Ferreira: estou aqui a fazer um disco que na verdade é uma banda sonora para um filme que não existe.” E foi então que decidiram avançar.
A ida às Berlengas
As conversas com o cineasta Bruno Ferreira levaram-nos a concluir que queriam fazer uma espécie de filme-bailado, sobretudo gravado nas Berlengas. Convocaram o coreógrafo João Reis Moreira, que por sua vez convidou uma série de bailarinos para se juntarem à expedição. Com poucas condições, mas muito profissionalismo e vontade, estes criativos partiram à aventura para uma estadia de quatro dias nas Berlengas (eram para ser cinco, mas o mar revolto não deixou).
Foram de barco com comida, água potável e todos os mantimentos necessários. “A ilha ainda era mais pequena do que eu imaginava, a água era melhor — não a achei fria, nadei todos os dias e adorei —, e ainda por cima não fomos durante a época balnear, por isso não havia outra malta, não havia hotéis nem o parque de campismo a funcionar… Acordávamos no forte e tínhamos a ilha inteira mesmo para nós. Foi especial, foi mesmo muito fora. Sentíamos mesmo que estávamos no filme.”
Esta epopeia atingiu proporções surreais quando conheceram Pedro Jorge, pescador e cicerone local que se tornou inevitavelmente numa das personagens da história. “Quando ele apareceu, parecia que estávamos num filme. Ele tinha de aparecer, aquela personagem fazia parte daquilo. Era o tipo mais querido, era quem ajudava o pessoal do forte e ia buscar o lixo uma vez por semana. Ele adorava cinema, tinha opiniões sobre os planos e falava com o diretor de fotografia”, conta Benjamim. “Lembro-me de ele nos dizer que, para vermos e filmarmos algumas das ilhas, tinha de ser logo. Então nem fizemos uma repérage quando chegámos. Foi ele com o barco mesmo a abrir, mais a rapariga que trabalha com ele, a Maria, que ia na maior a beber uma cerveja e nós todos agarradíssimos, com o mar cheio de ondas. Foi surreal.”
Tão surreal que Benjamim e a sua comitiva acabaram a almoçar o peixe de Pedro Jorge com o chef Alexandre Silva e um reputado cozinheiro Michelin de Tóquio, que ali estavam para uma visita ao arquipélago. “Às tantas o nosso diretor de fotografia já passava a vida na casa do Pedro Jorge para comer peixe e marisco, foi mesmo engraçado. A ilha tratou-nos muito bem.”
A estadia da ilha também moldou o álbum que estava a ser preparado. “Ir às Berlengas fez com que desse nome às coisas. Estudei os mapas, mal cheguei fui gravar sons a todo o lado.” O som das gaivotas, das cagarras ou do mar a bater nas rochas acabou por se entrosar no disco. Algumas letras e conceitos mudaram; no fundo, Benjamim ganhou mais referências para popular o álbum. Mas o resultado é sempre como se fosse cinema — ou seja, nunca são as Berlengas completamente reais que se apresentam à nossa frente. Existe uma encenação sonora erguida por este artesão-produtor.
Um disco diverso que vai do luto ao humor, passando pela política
AS BERLENGAS é uma obra bastante conceptual, que foi pensada detalhe a detalhe, com um encadeamento específico, seguindo um autêntico guião. “Por exemplo, a canção da Praia! é sobre estar encalhado na praia, entre o passado e o futuro, uma ideia muito importante ao longo do disco inteiro. A música a seguir chama-se A Grande Libertação. Depois de estar na praia encalhado, vêm vozes do mar que te imploram, é o passado a reclamar o teu corpo de volta e tu queres-te libertar do passado. Existe uma ideia de diálogo, quase como se fosse uma ópera, é quase como teatro. E ao mesmo tempo é vago e ambíguo, e quis manter essa ambiguidade ao longo do disco.”
O Futuro Foi Cancelado, noutro exemplo, é uma canção mais politizada que acaba por refletir a atualidade política e social. “É das letras mais recentes que fiz e tem tudo a ver com o que estamos a viver hoje em dia. O disco tem uma atualidade enorme do ponto de vista político. O que temos agora estava anunciado, é um bocado a nossa trajetória. É indiscutível que estamos a viver tempos que apresentam grandes desafios. Hoje em dia existe uma luta ideológica, estamos a assistir a um regresso das ideias de ditadura, falamos de guerra na Europa de uma forma que nunca imaginei que fôssemos falar há uns anos. Essa ideia esteve sempre presente no disco, ele também nasce deste inconformismo.”
AS BERLENGAS nasce desse lugar de desilusão. “Pode ser pessoal, coisas que aconteceram; mas também uma desilusão ideológica, política, histórica. O disco aborda a ideia de divisão. A ilha e a viagem são uma fuga, e esta pessoa que vai a nado até à ilha e descobre outras pessoas que já lá estavam mas que também chegaram à ilha… É descobrires que na ilha, o sítio para o qual fugiste, mesmo que fujas vais encontrar uma réplica daquilo que é uma sociedade. E mesmo na ilha as pessoas estão divididas, não concordam, andam à pancada e também se apaixonam. Por muito que fujas e te escondas, por muito que finjas, todas as coisas que acontecem no mundo real também estão lá.”
[o vídeo de “As Berlengas (parte 1)”, o primeiro tema do novo álbum a ser revelado:]
Mas também há otimismo, como se pode descobrir, por exemplo, em À Partida. “Apesar de tudo, acredito que é possível dar voltas às coisas, que é possível batermo-nos para que o mundo seja melhor, para fazer com que o amor triunfe. Precisamos de conviver, de amizade, de nos abraçar, de nos juntar, porque estamos cada vez mais separados, cada um no seu canto.”
Para Benjamim, esta fuga artística representou a terapia que acabou por não fazer. “Acredito mais em resolver as coisas na vida real, mas a música para mim tem este lado de terapia. Imagino que são as coisas que eu diria ao meu terapeuta. Por exemplo, este disco também tem luto. A Constelação Alice é uma música sobre perda, é um bocado a ideia de deixar uma constelação para esta pessoa que já está noutro mundo.”
[o vídeo de “Atrás da Barricada”:]
E existe humor. Num disco especialmente longo, com 20 faixas, Benjamim quis incluir um “cabo das tormentas” musical em forma de Rochedo (Ilhéu Maldito). “Estás quase a chegar ao final do álbum e ainda levas com aquilo, aquela coisa meio árida e com melodias muito tortas que se somam a outras ainda mais tortas e começas a criar ali um caos que é uma grande fritura para a cabeça. No fundo é uma piada: vamos ver quem é que passa à frente esta música e quem é que aguenta ouvir este cabo das tormentas.”
A ideia de ser um álbum “grande de mais”, que até integrou outros temas que ficaram pelo caminho, tem a ver com um certo “gesto de provocação”. “Há aqui humor, o facto de não existirem canções pop. As que são mesmo curtinhas não dão para passar na rádio, as que dão são sempre demasiado longas. Tem um lado de estarmos presos aos 15 segundos do Reels e do TikTok e eu querer uma cena que não caiba nesse formato. Estamos presos ao não dar atenção a nada e os discos já não interessam, às tantas já nem os músicos fazem discos com grande convicção e para mim o formato álbum, artisticamente, vai sempre fazer sentido.”
Um espetáculo que também pretende ser uma fuga
Ao vivo, o espetáculo de AS BERLENGAS, que ganha vida primeiro no Teatro Maria Matos e depois pelos palcos do país fora — com destaque para o Vodafone Paredes de Coura, onde Benjamim irá atuar a 16 de agosto —, é em si mesmo também uma performance. Não será um concerto normal do artista, a intercalar os novos temas com outros do seu reportório, que de um cerne mais folk tem vindo a ganhar contornos eletrónicos cada vez mais proeminentes.
Com imagens captadas no arquipélago a serem projetadas sobre o palco e os próprios instrumentistas, quais “operários da música”, a ideia é que o próprio concerto também seja a tal fuga, neste caso para o público que vá assistir. Vão tocar os temas do disco, mas deixar espaço para a improvisação. Benjamim, em particular, vai estar muito encarregue da sua MPC, ferramenta catalisadora da grande maioria das canções, e de onde planeia lançar sons captados no arquipélago que possam ajudar a conduzir e a adornar a viagem.
“Não quero que seja sobre nós, não quero que seja sobre mim. É sobre aquela história, sobre a mensagem que está lá, é sobre a viagem e a fuga. As coisas não têm que estar fechadas, nada tem que estar definido. Se calhar daqui a quatro meses, o vídeo pode ser outra coisa e o espetáculo pode estar em evolução. Não quero que aquilo se torne demasiado formatado, e que toquemos sempre da mesma maneira. Dá margem para acontecerem erros catastróficos, mas temos de conviver com essa realidade.”