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A guerra épica de Pedro Queiroz Pereira com o BES. Como o industrial ajudou a denunciar Ricardo Salgado

Começou por enfrentar o Grupo Espírito Santo em 1992. Acabou por ser um dos principais denunciadores de Ricardo Salgado antes da derrocada, em 2014. Cartas, actas e manobras de uma batalha histórica.

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É provavelmente uma das sagas mais repletas de intriga no mundo dos negócios em Portugal, nos últimos anos: a forma como o industrial Pedro Queiroz Pereira, falecido este sábado, ajudou a denunciar Ricardo Salgado, que foi talvez o homem mais poderoso de Portugal até 2013. Mistura todos os ingredientes das séries de sucesso que nos habituámos a ver na Netflix: uma guerra entre duas famílias que caminharam juntas ao longo de mais de 70 anos; aliciamento de irmãs do rival; ameaças de corte de crédito aos parceiros; equipas de 12 a 13 pessoas a recolher informações sobre o adversário; batalhas de advogados em Assembleias Gerais; uma denúncia ao Banco de Portugal e um depoimento numa comissão Parlamentar. Pelo meio, claro, cartas privadas, actas e gravações de reuniões secretas, negócios de muitos milhões e um escândalo.

Morreu Pedro Queiroz Pereira, um dos últimos grandes industriais

“Divergências que começam a surgir, cujas consequências são imprevisíveis”

Em 1937, Manuel Queiroz Pereira, administrador do Banco Comercial de Lisboa, contribuiu para ser deitada abaixo fisicamente uma parede que assegurava a divisória para o negócio do lado, o Banco Espírito Santo, no mesmo quarteirão da Rua do Comércio. Com essa fusão, nasceu o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, que materializou ao longo de todo o Estado Novo a aliança entre as famílias Espírito Santo e Queiroz Pereira, visível também, entre outros negócios, no lançamento do Hotel Ritz.

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Nas reprivatizações de 1992, com Mário Soares na Presidência e Cavaco Silva a primeiro-ministro, 55 anos após o derrube dessa parede na Baixa de Lisboa, a família Espírito Santo recuperou o controlo do BES, que tinha perdido nas nacionalizações em 1975. O líder do Grupo, Manuel Ricardo Espírito Santo, que tinha morrido um dia antes, viria a ser substituído por António Ricciardi, pai de José Maria Ricciardi e tio de Ricardo Salgado. Depois de duas gerações (entre 1955 e 1991) em que o grupo foi liderado pelo ramo de Manuel Espírito Santo, o poder voltava assim ao ramo de Ricardo Espírito Santo, presidente histórico do banco, entre 1932 e 1955 e avô de Ricardo Salgado.

Após a morte do pai, Pedro Queiroz Pereira, que tinha 43 anos, sentiu-se no direito de integrar o Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, uma vez que juntamente com as irmãs herdou 7% da Espírito Santo Control, a holdig de topo do grupo. O industrial manifestou esse desejo uma primeira vez, a 14 de Fevereiro de 1992, numa reunião onde estiveram António Ricciardi, António Espírito Santo, Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo e Mário Mosqueira do Amaral. A 19 de Março de 1992, insistiu, através desta carta, em três folhas dactilografadas:

Av. Fontes Pereira de Melo, 14, 1000 Lisboa – Portugal

Lisboa, 19 de Março de 1992

Ao Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, Rua de São Bernardo, 62, 1200 Lisboa

Exmºs Srs.

Na qualidade de representante da família Queiroz Pereira, e na sequência da reunião que tive no dia 14 de Fevereiro com o Conselho Superior do Grupo, julgo oportuno confirmar e detalhar a posição que então defendi.

Na fase actual de renascimento do Grupo considero imprescindível a preservação da filosofia e do espírito que imperou no Grupo Espírito Santo antes da Revolução de 1974.

Este espírito foi, sem dúvida, um dos factores mais importantes no crescimento e na consolidação das empresas controladas e participadas pelo Grupo ao longo de várias gerações, sem problemas de continuidade.

O desenvolvimento que referi realizou-se sempre com grande harmonia e respeito mútuo entre os accionistas e entre estes e os seus representantes nas empresas.

Estas condições permitiram o desenvolvimento com sucesso de muitos projectos conjuntos e contribuíram decisivamente para o fortalecimento de uma sólida amizade entre a família Espírito Santo e a família Queiroz Pereira à qual não é alheia a contribuição do meu Pai no renascimento do Grupo.

Analisando o ressurgimento do Grupo após 1975 e todas as iniciativas tomadas desde então, incluindo as bem sucedidas aquisições do controle do BESCL e da Tranquilidade, concluo fundamental realizar a consolidação do Grupo Espírito Santo.
Para atingir a desejada consolidação e o posterior desenvolvimento do Grupo é imprescindível que, no momento presente, o Conselho Superior do Grupo, o seu órgão máximo de decisão, seja perfeitamente representativo dos accionistas da ES Control, entre os quais está a família Queiroz Pereira.

Assim, e quanto ao preenchimento dos corpos sociais do BESCL entendemos que não se pode deixar de ter presente, a pretensão da família Queiroz Pereira [de] estar representada no Conselho de Administração do mesmo.

O caminho que proponho parece-me perfeitamente compatível com o espírito que imperava no Grupo Espírito Santo antes das nacionalizações de 1975, e capaz de eliminar as divergências que começam a surgir, cujas consequências são imprevisíveis.

Agradeço que me confirmem com a maior urgência a vossa concordância com o proposto e fico à vossa inteira disposição para todos os esclarecimentos que considerem necessários.

Pedro Queiroz Pereira

Quanto ao preenchimento dos corpos sociais do BESCL entendemos que não se pode deixar de ter presente, a pretensão da família Queiroz Pereira [de] estar representada no Conselho de Administração
Carta de Pedro Queiroz Pereira ao Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, em 1992

Invocando o papel do pai, Manuel Queiroz Pereira, no desenvolvimento do GES, e a amizade histórica entre as duas famílias, Pedro Queiroz Pereira, como accionista da Espírito Santo Control (holding de topo do grupo) queria sentar-se à mesa dos órgãos sociais do BES e do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, por entender que era o órgão onde eram tomadas todas as decisões estratégicas. Não teve sucesso.

A resposta de António Ricciardi: “Se tivesse o empreendimento corrido mal…”

Foi o próprio presidente do conselho superior do GES, António Ricciardi, na altura com 73 anos, que respondeu a Pedro Queiroz Pereira, em quatro folhas dactilografadas, a rejeitar os pedidos, numa troca de correspondência divulgada parcialmente pela revista SÁBADO em 2014 e agora aqui transcrita na íntegra.

ANTÓNIO LUÍS ROQUETTE RICCIARDI, Presidente

30 de Março de 1992

Exmº. Senhor Pedro Queiroz Pereira

Av. Fontes Pereira de Melo, 14, 1000 Lisboa

Exmº Senhor,

O Conselho Superior do Grupo Espírito Santo encarrega-me de responder à carta que V. Exª lhe dirigiu em 19 do corrente.

A iniciativa de reorganização do GES pertenceu aos promotores que, em Setembro de 1975 se reuniram em Londres e resolveram assumir a responsabilidade desse empreendimento.

Iniciadas as actividades, logo os seis promotores obtiveram o apoio de familiares e amigos, dentre os quais destacaremos sempre, com o maior reconhecimento e saudade, o Senhor Manuel Queiroz Pereira.

Seguiu-se um período de longos anos, durante o qual o grupo promotor enfrentou graves dificuldades e vicissitudes e correu sérios riscos.

Passo a passo, aquele grupo (a que mais tarde se juntou o dr. José Manuel Espírito Santo) conseguiu, em regime de dedicação exclusiva e, em numerosas ocasiões, com a caução de responsabilidades pessoais, ultrapassar todos os obstáculos e alcançar o sucesso da posição actual.

É certo que contou sempre com a [sic] valioso apoio e o encorajamento de numerosos amigos, que foram ingressando no GES, com especial destaque para o permanente e avisado conselho do Senhor Manuel Queiroz Pereira e, também, do dr. Luís Supico Pinto, Prof. Raul Ventura e Embaixador Alberto Franco Nogueira.

Mas se tivesse o empreendimento corrido mal, o peso praticamente total das consequências teria recaído exclusivamente sobre os membros do grupo promotor. Por isso, além do bom conselho e do apoio recebidos, qualquer adesão válida, no propósito de compartilhar do esforço e da responsabilidade daquele grupo, teria sido na altura igualmente muito bem recebida.

A indispensável evolução para uma especialização de funções de gestão no topo e, simultaneamente, a necessidade de coordenar as diferentes especializações, conduziu à criação do Conselho Superior. Órgão executivo, este Conselho é, actualmente, composto por cinco membros: quatro dos promotores originais e o dr. José Manuel Espírito Santo.
O desenvolvimento das actividades poderá, no futuro, determinar a entrada de novos membros que, como sucede com os actuais, além da participação accionista na E. S. Control Holding SA, deverão satisfazer a exigência básica do desempenho da função a tempo inteiro e com exclusiva ocupação nas actividades do Grupo.

Pela força das circunstâncias, não é possível equiparar o actual Grupo Espírito Santo àquele que existia antes da Revolução de 1974.

Todos sabemos perfeitamente que o objectivo, que é vital, da recuperação do controle da Companhia de Seguros Tranquilidade e do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa nunca poderia ter sido alcançado sem importante reforço dos meios financeiros, conseguido pelo acesso ao mercado internacional de capitais (com a consequente obrigatoriedade do cumprimento das novas regras de uma estrutura financeira aberta) e pelo inevitável alargamento da base accionista a novas entidades, nacionais e estrangeiras.

Esta a razão por que a composição do Conselho de Administração do BESCL não poderá deixar de reflectir, além da presença do GES (representado pelo seu Conselho Superior), a participação dos outros principais investidores: o C. N. C. A [credit nacional credit agricole], pelo peso significativo que detém na BESPAR, e aqueles que realizaram importante esforço financeiro na Espírito Santo Financial (Portugal),  holding financeira de controle em Portugal, e para o qual também foi, oportunamente, formulado convite ao grupo Queiroz Pereira.

Haverá também que manter a presença de determinados administradores, oriundos de gestão estatal, dado que, por continuar nacionalizada grande parte das empresas nacionais de maior dimensão, há evidente interesse em conservar a cooperação daqueles administradores para o bom relacionamento com tais empresas e com instituições do Estado, clientes do Banco.

E haverá ainda que manter na Administração alguns elementos que, além de serem quadros da instituição e de reconhecido mérito profissional, também representam importante contributo para o clima de boa harmonia de que se pretende rodear o regresso do GES ao controle da gestão.

Esta a razão que forçou o alargamento para 15 do número dos membros do futuro Conselho de Administração do BESCL.

Ficam assim confirmadas as explicações que, de viva voz, já tinham sido dadas a V. Exª na conversa do dia 18 de Fevereiro último.

É certo que contou sempre com a [sic] valioso apoio e o encorajamento de numerosos amigos, que foram ingressando no GES, com especial destaque para o permanente e avisado conselho do Senhor Manuel Queiroz Pereira e, também, do dr. Luís Supico Pinto, Prof. Raul Ventura e Embaixador Alberto Franco Nogueira. Mas se tivesse o empreendimento corrido mal, o peso praticamente total das consequências teria recaído exclusivamente sobre os membros do grupo promotor. Por isso, além do bom conselho e do apoio recebidos, qualquer adesão válida, no propósito de compartilhar do esforço e da responsabilidade daquele grupo, teria sido na altura igualmente muito bem recebida.
Resposta de António Ricciardi a Pedro Queiroz Pereira

Resta-nos confirmar também que, da parte do Conselho Superior, existe o firme desejo de se encontrar a melhor forma para desenvolver a cooperação que o grupo Queiroz Pereira possa pretender do GES em relação com as suas actividades empresariais. Para o efeito, apenas deverá ser facultada ao GES a oportunidade de estudar os projectos que, sendo iniciativa do Grupo Queiroz Pereira, possam também ter interesse para o Grupo Espírito Santo.

Com toda a consideração e estima,

Ricciardi

O pai de José Maria Ricciardi traçava assim essa fronteira entre os familiares e amigos, onde estava Manuel Queiroz Pereira, e os seis promotores que tinham relançado o grupo a partir de 1975, onde não estava Manuel, nem o seu herdeiro, Pedro Queiroz Pereira.

O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa passou rapidamente a ser apenas Banco Espírito Santo, uma abreviatura conveniente que deixou cair simbolicamente a parte do Banco Comercial de Lisboa, que tinha pertencido à família Queiroz Pereira.

“Não achava graça e fui ao Banco de Portugal”

As relações entre as duas famílias não voltaram ao que eram antes da Revolução. Em 2000, quando tentou comprar a Cimpor, em vez de pedir um empréstimo ao BESI, PQP recorreu ao Santander. A equipa de Ricardo Salgado terá então retaliado e favoreceu outro concorrente, a Teixeira Duarte, nessa corrida à cimenteira. “Vocês são inconcebíveis!”, queixou-se Queiroz Pereira a José Maria Ricciardi, numa recepção dada na altura por Patrick Monteiro de Barros. “É pá não faço aqui mais nada para não estragar a recepção do Patrick e nunca mais te dirijo a palavra até me pedires desculpa”, reagiu o banqueiro, citado num artigo do Público de 2014.

“Tenho fortes indícios que me levam a pensar que Salgado está a tentar abocanhar o meu grupo”, disse PQP a José Maria Ricciardi

Fizeram as pazes anos depois. Isso permitiu que Pedro Queiroz Pereira fizesse um aviso a José Maria Ricciardi: “Tenho fortes indícios que me levam a pensar que Salgado está a tentar abocanhar o meu grupo e levar a Maude [Queiroz Pereira, irmã de Pedro] para o lado dele, mas vou defender-me”.

O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa passou rapidamente a ser apenas Banco Espírito Santo, uma abreviatura conveniente que deixou cair simbolicamente a parte do Banco Comercial de Lisboa, que tinha pertencido à família Queiroz Pereira.

O industrial continuava a ter uma participação de 7% na ES Control (o GES também tinha participações na Sodim e na Cimigest, da família Queiroz Pereira) e começou a desconfiar de que algo não estava bem no grupo. Passou 12 anos a perguntar a a Ricardo Salgado quem eram os verdadeiros donos da Mediterranean, uma sociedade luxemburguesa que se tinha tornado accionista do seu grupo, a Semapa. Salgado dizia que eram investidores discretos, que não queriam ser conhecidos. Mas em 2012 o Grupo Espírito Santo assumiu o controlo da Mediterranean. Sentindo-se traído, organizou um contra-ataque: preparou uma equipa com 12 a 13 pessoas, entre advogados e peritos financeiros, para passar a pente fino as contas das holdings da família Espírito Santo, que obteve no Luxemburgo, e onde percebeu a “situação financeira calamitosa” em que o grupo se encontrava.

“Não achava graça que uma empresa nesta situação quisesse usar a minha como terá feito com a PT e fui ao Banco de Portugal”, admitiu, quando depôs na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso BES, em Dezembro de 2014. Foi a 4 de Outubro de 2013 que o industrial foi recebido pelo então vice-governador Pedro Duarte Neves.

[Os bolos das irmãs e a verdade. Reveja no vídeo os ataques de Pedro Queiroz Pereira a Ricardo Salgado]

A batalha nas Assembleias gerais dos dois grupos

Muito antes, tinha já começado uma espécie de batalha nas Assembleias Gerais. Os representantes do GES começaram a exigir a presença do notário nas assembleias gerais das holdings que controlavam a Semapa. “As assembleias passaram a durar mais de cinco horas em que os advogados do GES começaram a insultar-me…”, queixou-se o industrial, que retaliou na mesma moeda.  Após a apresentação de resultados numa Assembleia Geral do Banco Espírito Santo em 2013, no Hotel Ritz, os primeiros dois accionistas que intervieram encheram de elogios a administração do BES. O terceiro, Nuno Correia Lopes, advogado do escritório de Júlio Castro Caldas, (que representava Pedro Queiroz Pereira), encheu a sala de perguntas difíceis:

1) “Se o exercício de 2012 for semelhante ao de 2013, os resultados do banco vão cifrar-se em centenas de milhões de euros de prejuízo. (…) Significa isto que a administração do BES planeia uma operação de aumento de capital?”

2) “Se não tivesse havido a venda da dívida pública portuguesa, o resultado positivo não teria ocorrido?”

3) “O BES registou ganhos na aquisição de dívida emitida pelo Grupo. Qual o teor destas operações?”

4) “Quais os mecanismos de salvaguarda dos interesses do Banco na política de remuneração dos membros do conselho de administração?”

Ricardo Salgado e mais dois administradores (Morais Pires e Rui Silveira) responderam que não estava previsto um aumento de capital e as propostas da administração ainda foram aprovadas por esmagadora maioria, mas pela primeira vez a liderança absoluta do banqueiro que era conhecido como Dono Disto estava a ser posta em causa em plena Assembleia Geral do BES.

Vendo que Ricardo Salgado estava a manobrar nas suas costas para assumir o controlo da Semapa, Queiroz Pereira tentou antecipar-se, mas o Conselho Superior, após “alongada troca de impressões entre os presentes”, decidiu por unanimidade responder que o Grupo Espírito Santo não desejava vender as posições accionistas no Grupo Queiroz Pereira

O dia em que PQP enfrentou sozinho o conselho superior dos Espírito Santo

As relações com o grupo de Pedro Queiroz Pereira eram já assunto regular nas reuniões do conselho superior do GES desde Setembro de 2012, conforme se percebe pela leitura das actas desse órgão, entregues por José Maria Ricciardi ao Parlamento, em 2014, aquando da Comissão Parlamentar de Inquérito à derrocada do BES (e parcialmente divulgadas na altura pela Sábado). Essas actas identificam os intervenientes pelas iniciais (ALR é António Ricciardi; RESS é Ricardo Salgado; PQP é Pedro Queiroz Pereira) e são breves resumos das reuniões, ou seja, apesar de tudo nada que se compare ao conhecimento que o público veio a ter do que se passou no último ano antes do fim, a partir das gravações que se tornaram públicas no jornal i.

Essa reunião de 28 de Setembro de 2012 começou com a leitura, por António Ricciardi (que era formalmente o presidente do Conselho Superior do GES), de uma carta de Pedro Queiroz Pereira a manifestar interesse em comprar as participações dos Espírito Santo nas suas empresas (na Sodim e na Cimigeste). O industrial já tinha sido alertado por alguns dos seus accionistas de que estavam a ser abordados pelo Grupo Espírito Santo para vender as suas posições e que, caso não o fizessem, podiam ver comprometidos os créditos bancários que tinham no BES. Vendo que Ricardo Salgado estava a manobrar nas suas costas para assumir o controlo da Semapa, Queiroz Pereira tentou antecipar-se, mas o Conselho Superior, após “alongada troca de impressões entre os presentes”, decidiu por unanimidade responder que o Grupo Espírito Santo não desejava vender as posições accionistas no Grupo Queiroz Pereira.

Quando recebeu Pedro Queiroz Pereira no conselho superior, Ricardo Salgado garantiu que não queria controlar o seu grupo

Cinco semanas depois, às 16h00 de 9 de Novembro de 2012, o caso PQP voltou a ser discutido no Conselho Superior, reunido no 15º piso do BES, desta vez com a participação especial de dois administradores do banco: a advogada Rita Amaral Cabral, namorada do actual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, que era administradora da Cimigeste; e Rui Silveira, administrador com o pelouro de auditoria no BES, também representante dos Espírito Santo na Cimigeste. Após uma descrição das reuniões a que tinham assistido, foi decidido agendar um encontro com Maude Queiroz Pereira, irmã e, na altura, rival do industrial, para obter esclarecimentos sobre o relacionamento entre ambos.

O contacto foi feito por Ricardo Salgado e pelo primo José Manuel Espírito Santo, que descreveram a conversa com Maude Queiroz Pereira na reunião seguinte, a 9 de Dezembro de 2012. Decidiram então formar uma aliança entre o Grupo Espírito Santo e a irmã de PQP: se um vendesse a participação na Cimigeste, o outro também venderia. Rita Amaral Cabral e Rui Silveira assistiram a esta parte inicial da reunião, mas em seguida retiraram-se e entrou o próprio Pedro Queiroz Pereira, que enfrentou sozinho todo o Conselho Superior. Propôs afastar “as questões emocionais” e sugeriu a nomeação de uma comissão com dois quadros superiores de cada grupo, para tentar negociar um acordo entre os Queiroz Pereira e os Espírito Santo.

PQP prosseguiu manifestando vontade de manter boa relação com o GES onde se incluía o respeito mútuo. Com esse objectivo, propunha retirar as questões emocionais e sugerir que fosse nomeada uma comissão composta por dois quadros superiores de cada grupo, que analisaria a relação entre os grupos
Acta da reunião em que Queiroz Pereira enfrentou o Conselho Superior dos Espírito Santo

Ricardo Salgado assegurou logo a seguir que o GES “nunca desejou assumir o controlo do GQP nem o deseja”. E garantiu que quando Margarida Queiroz Pereira, irmã de PQP, se aproximou do GES para vender acções da Sodim “nem sequer ocorreu ao GES que essas acções pudessem ser usadas contra PQP”.

Vale a pena ler na íntegra toda esta parte da acta, com a descrição do encontro feita por um elemento do GES.

“Depois de Rita Amaral Cabral e Rui Silveira terem abandonado a reunião, foi recebido PQP que começou por afirmar que sempre tinha contado com o apoio do GES no seu desenvolvimento empresarial, assim como, pela sua parte, sempre tinha feito questão de apoiar o GES no que lhe fosse necessário, tendo exemplificado com a operação de transacção da Enersis. Por outro lado, considerava também a relação com o BES como muito importante para o desenvolvimento da Semapa, pese embora o relacionamento de PQP com RESS [Ricardo Salgado] não ter vindo a ser fácil.

PQP prosseguiu manifestando vontade de manter boa relação com o GES onde se incluía o respeito mútuo. Com esse objectivo, propunha retirar as questões emocionais e sugerir que fosse nomeada uma comissão composta por dois quadros superiores de cada grupo, que analisaria a relação entre os grupos e que procuraria negociar os acordos necessários ao estabelecimento de um shareholder’s agreement que servisse ambas as partes.

RESS Salgado relembrou que, antes do regresso de PQP do Brasil, já existiam duas heranças: a participação da família QP no capital da ES Control; e a participação que o GES detinha no capital da Sodim. Referiu também que o GES sempre apoiou PQP na sua gestão e que inclusivamente o controlo que PQP hoje admite ter assegurado no seu grupo é devido ao facto de alguns membros da família ES lhe terem vendido as acções necessárias para o efeito. O GES nunca desejou assumir o controlo do GQP, nem o deseja. Por essa razão, mesmo quando a Margarida QP se aproximou do GES no sentido de este lhe adquirir as suas acções da Sodim nem sequer ocorreu ao GES que essas acções pudessem ser usadas contra PQP.

Essas posições accionistas foram sempre mantidas numa base de absoluta passividade relativamente à gestão de PQP. Por esse motivo o GES não pode deixar de demonstrar a sua perplexidade quando tomou conhecimento que o Dr. Rui Silveira não seria reeleito no CA da Cimigeste porque PQP desconhecia quem se encontrava por detrás dos fundos institucionais que adquiriram a posição de Margarida QP. Tendo o GES adquirido essa posição, foi mais tarde, surpreendido com a notícia que PQP tencionava novamente destituir o dr. Rui Silveira.

PQP apresentou as razões e os motivos que lhe levavam a propor a não recondução de Rui Silveira no CA da Cimigeste.

RESS [Ricardo Espírito Santo Salgado] manifestou o seu acordo à formação da comissão proposta por PQP. Tendo este referido que iria propor, através dessa comissão, que o GES estivesse disposto a continuar a apoiar o crescimento do GQP, nomeadamente através da realização de um aumento de capital de até 200 milhões de euros, tendo-se, no entanto, recusado a informar a que se destinava especificamente esse aumento de capital

Finalmente, a instâncias de MFES [Manuel Fernando Espírito Santo] e JMR [José Maria Ricciardi], PQP anuiu em alterar a ordem de trabalhos da reunião de CA da Sodim no sentido de, nesta, deixar de constar a intenção de destituição de Rui Silveira do cargo de membro do CA da Cimigeste.”

Esta destituição de Rui Silveira, que era administrador do BES, do cargo de administrador da Cimigeste, deixou Ricardo Salgado perplexo, mas acabaria por não se resolver.

“Parece existir um entendimento no Grupo Espírito Santo de que a sua representação na Cimigest resulta de um direito próprio e não de uma decisão do Grupo Queiroz Pereira, no âmbito das boas relações que este sempre fez por preservar. Esclarece que se trata de um equívoco: a representação do GES depende da vontade do Grupo QP e, como tal, deve ser entendida para todos os efeitos”.
Excerto da acta do GES com a descrição da carta de Pedro Queiroz Pereira

Uma carta dura: “A representação do GES depende da vontade do Grupo Queiroz Pereira”

Sempre avançou a tal comissão mista para avaliar o relacionamento entre os dois grupos. Francisco Cary, administrador do BESI, e o advogado Luís Cortes Martins foram os dois representantes dos Espírito Santo nessa comissão de negociação com PQP e propuseram um acordo accionista que permitiria aos dois grupos acesso a toda a informação. Mas essa abordagem foi recusada pelos representantes de Queiroz Pereira, que se aconselhava muito na altura com Fernando Ulrich, que presidia ao BPI.

O Grupo Queiroz Pereira tinha subido a proposta em 20 milhões de euros. Mesmo assim, estava ainda longe dos 330 milhões pedidos pelo GES. Os dois grupos negociavam valores para acertar a separação, ao mesmo tempo que Pedro Queiroz Pereira reunia informação sensível sobre as fragilidades do GES para entregar ao Banco de Portugal

Mais tarde, quando o Grupo Espírito Santo indicou o nome de Francisco Cary para administrador do Grupo Queiroz Pereira, (através de uma carta enviada por António Ricciardi), o industrial respondeu que essa nomeação só faria sentido se os dois grupos chegassem a acordo sobre o relacionamento futuro. E deixou claro que tinha um entendimento diferente sobre as relações de poder entre os dois grupos:

“Parece existir um entendimento no Grupo Espírito Santo de que a sua representação na Cimigest resulta de um direito próprio e não de uma decisão do Grupo Queiroz Pereira, no âmbito das boas relações que este sempre fez por preservar. Esclarece que se trata de um equívoco: a representação do GES depende da vontade do Grupo QP e, como tal, deve ser entendida para todos os efeitos”.

Em Agosto de 2013, o Banco de Portugal quis ouvir Ricardo Salgado sobre o confronto com PQP e o banqueiro terá respondido assim: “O problema do GQP é um problema entre irmãos; a relação entre GES e GQP é muito antiga; o GES não é uma parte do problema, mas uma parte da solução”.

Também Rita Amaral Cabral deu esclarecimentos ao Departamento Jurídico do Banco de Portugal sobre o confronto, tendo referido, de acordo com a acta de 3 de Setembro de 2013 do conselho superior do GES, que Maude Queiroz Pereira estava a acicatar a relação com o irmão, enquanto o GES procurava encontrar uma solução entre os dois – ora, isto não era rigorosamente assim, já que os Espírito Santo estavam alinhados com a posição de Maude.

Antes, em Julho, na comissão mista, já se discutiam valores para fechar a separação dos dois grupos. O Grupo Queiroz Pereira tinha subido a proposta em 20 milhões de euros (não se diz para quanto, na acta do Conselho Superior). Mesmo assim, estava ainda longe dos 330 milhões pedidos pelo GES. Tudo isto decorria em simultâneo: os dois grupos negociavam valores para acertar a separação, ao mesmo tempo que Pedro Queiroz Pereira reunia informação sensível sobre as fragilidades do GES para entregar ao Banco de Portugal. O industrial admitiu depois que havia um interesse estratégico, que acabou por ser materializar: a denúncia do caso assustou Ricardo Salgado, que se apressou a fechar o acordo de venda das participações cruzadas com Queiroz Pereira. Em Novembro de 2013, chegou ao fim a sociedade histórica entre as duas famílias. Queiroz Pereira deixou a Espírito Santo Control e o Grupo Espirito Santo saiu da Cimigest e da Sodim, num acordo confidencial.

A Maude queria seguir em frente e com mais processos porque aquilo é uma espécie de vingança. Ela tem ódio ao irmão e o irmão tem ódio à Maude
Ricardo Salgado, numa reunião do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo

“Incomoda-me que a gente tire do nosso bolso 5 milhões de euros para ajudar a Maudezinha”

Não foram divulgados os montantes do negócio, mas soube-se que o Grupo Espírito Santo pagou 5 milhões de euros a Maude Queiroz Pereira, irmã do industrial, (com quem ele estava em guerra), depois de Maude ter vendido as suas participações na Semapa. Essa decisão foi muito contestada por Ricardo Abecassis Espírito Santo, numa reunião do Conselho Superior do GES, segundo as transcrições dos diálogos das reuniões divulgadas pelo jornal i: “Incomoda-me que a gente tire do nosso bolso 5 milhões de euros para ajudar a Maudezinha a vender a participação para o Pedro (…). Para convencer a Maudezinha a vender, a gente está a adoçá-la com mais 5. Mas são 5 que fazem falta”.

O primo Ricardo Salgado retorquiu que não havia alternativa: “Ninguém mais que eu aturou a Maude durante este mês ou o mês passado. E ela tanto lhe salta a tampa para dizer que o irmão é um escroto do pior como depois nos ataca a nós porque a deixámos cair (…). A Maude queria seguir em frente e com mais processos porque aquilo é uma espécie de vingança. Ela tem ódio ao irmão e o irmão tem ódio à Maude”.

Pedro Queiroz Pereira na comissão parlamentar de inquérito ao GES, em Dezembro de 2014

Segundo o que Ricardo Salgado contou no Conselho Superior umas semanas mais tarde, transcrito no livro As conversas secretas do clã Espírito Santo, de Sílvia Caneco, Pedro Queiroz Pereira não terá cumprido um acordo a que tinham chegado, de dividir o valor a pagar à irmã. “Para conseguir levar a Maude a um entendimento dissemos que daríamos 5 dos nossos. Nós dissemos que dávamos metade e o PQP outra metade. O que é que aconteceu? O PQP não deu”.

Numa das últimas reuniões do Conselho Superior gravadas, a 4 de Julho de 2014, depois de uma hora a discutir a falência iminente, José Manuel Espírito Santo avisou que já só tinham quatro dias para entregar às autoridades suíças a documentação contabilística do Banque Privée: “Se até terça-feira não fizermos o filing, tens o Júlio Castro Caldas e o Pedro Queiroz Pereira a fazer a liquidação do grupo. Já tive essa informação”. Outro dos presentes perguntou porquê, ao que José Manuel respondeu: “Para nos lixarem com os clientes todos (…) que não receberam a massa em Lausanne”. Estava certo: cerca de 50 clientes milionários do Banque Privée, a instituição financeira dos Espírito Santo na Suíça, viriam de facto a ser representados por Júlio Castro Caldas e por Francisco Mendes de Almeida, um dos advogados que acompanhou Pedro Queiroz Pereira à comissão parlamentar de inquérito ao caso BES, em Dezembro.

https://observador.pt/2014/12/10/comissao-de-inquerito-vez-de-pedro-queiroz-pereira/

Essa audição na Assembleia da República foi outro momento extraordinário e raro, pela forma direta e desabrida como Pedro Queiroz Pereira falou sobre a situação do GES (“Já percebia que as coisas não corriam bem há muitos anos, talvez desde o início deste século”) e onde admitiu o seu papel na denúncia do caso. Dois apartes memoráveis desse fim de tarde no Parlamento. Um, irónico, quando os deputados o confrontaram com o argumento de Ricardo Salgado, de que estaria a defender a irmã de Pedro Queiroz Pereira: “As irmãs de Salgado ficam em casa à noite a fazer bolos para vender e ele nunca se preocupou em defendê-las”. Outro aparte, fatal, depois de relatar as respostas dissimiladas que Ricardo Salgado lhe deu sobre offsores que, afinal, “eram ele”. Disse Pedro Queiroz Pereira nessa tarde no Parlamento: “O Dr. Ricardo Salgado tem um problema: não lida maravilhosamente com a verdade.” E todos os deputados se riram.

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