Na segunda-feira à tarde, Lara chegou a casa pela mão do avô. Era assim quase todos os dias: depois de um dia de escola, a criança de sete anos brincava na rua enquanto o avô apanhava sol num banco de jardim mesmo em frente ao prédio onde moravam, no número 2 da antiga Barra 11 do bairro da Icesa — que agora dá pelo nome de Rua Primeiro de Dezembro — em Vialonga, Vila Franca de Xira.
Quem os viu naquela rotina não encontrou sinais do que viria a passar-se no 1.º andar do apartamento daí a algumas horas. Cerca de dez minutos depois das quatro da manhã, Joana, a mãe de Lara, encontrou o pai, um homem de 69 anos, desorientado depois de esfaquear a criança na zona do pescoço. E também o viu com cortes profundos nos pulsos e no próprio pescoço.
Os gritos desesperados de Joana ecoaram por todo o prédio, e até sobressaltaram quem dormia nos apartamentos vizinhos — ainda que alguns garantam não os ter ouvido e outros admitam ter tido medo de abrir a porta. Joana saiu de casa com a filha ensanguentada nos seus braços, em direção à rua e em busca de quem a acudisse. Não encontrou ninguém.
Voltou então para dentro e chamou o número de emergência. Eram 4h16 de terça-feira. O percurso de Joana, 24 anos, com a filha de sete anos ao colo ainda está evidente nos lanços de escadas no prédio: há gotas de sangue seco nos corredores do prédio, na campainha de um vizinho e junto ao tapete da entrada do 1ºA, cujo acesso está agora vedado por uma fita da Guarda Nacional Republicana (GNR).
Lá fora, o banco onde horas antes um avô cuidava da neta esteve esta terça-feira ocupado por jornalistas e por vizinhos — todos com a mesma interrogação em mente: porquê? Porque é que um homem que cuidava da neta desde pequenina — e que já tinha criado a filha sozinho, desde os oito anos desta, quando a mulher morreu —, numa relação aparentemente saudável, a mataria?
O “paizinho” que tinha uma horta e aproveitava as promoções nos supermercados
Depois de levar a neta à escola, o avô, reformado, ocupava o tempo a cuidar de uma horta logo atrás das “Torres” — os prédios entre a Avenida 24 de setembro e a Estrada do Olival de Fora, onde fica a Associação dos Africanos do Concelho de Vila Franca De Xira. São pequenos terrenos que estão agora lavrados, rodeados de cercas de arame e capim, e com barracas improvisadas de chapa e madeira.
Quando não estava entre enxadas e sementes de couve, onde Lara também passava os dias ao fim de semana, o homem distraía-se em busca das melhores promoções nos supermercados nas redondezas. De vez em quando, depois de apanhar a neta na escola primária, levava-a a um parque infantil ali perto. Ao domingo, depois da catequese da menor, ambos assistiam à missa. E ouviam música em casa.
Havia planos para o futuro no seio da família, dizem os amigos, que se reuniram junto à porta. Joana planeava com alguns deles uma viagem a Cabo Verde no início do próximo ano, à ilha de Santiago, para cumprir finalmente o sonho de explorar as suas raízes paternas e conhecer a família do pai. Contava levar Lara nessa aventura para lhe mostrar a vila do Tarrafal, berço do seu avô, a quem chamava de “paizinho”.
“Imaginem como devem estar todos lá no Tarrafal”, desabafa um vizinho atrás do outro, à medida que se aproximam dos amigos da família. Uma dessas amigas, visita de casa da mãe de Lara, diz mesmo: “Nada vai confortar o coração da Joana”.
É que aquele avô, cujo nome parece escapar à memória de todos os vizinhos com quem o Observador conversou ao longo do dia, era a figura mais parecida a um pai que Lara conheceu, porque o pai biológico não estava presente na vida da criança. E por isso é que, ao combinar um jantar com o namorado e um convívio com amigos, nada terá feito Joana crer que a filha estava em risco, contam os vizinhos ao Observador. Na verdade, já era habitual que Lara ficasse com o avô quando a mãe ia trabalhar ou tinha planos com os amigos.
Segundo o relato de uma vizinha, ao aproximar-se do prédio, na madrugada desta terça-feira, Joana foi alertada por outro vizinho de que alguém estaria a precisar de ajuda no seu apartamento, porque tinha ouvido gritos havia poucos instantes. O primeiro pensamento dos vizinhos, assumem, agora que se assomam às janelas para observar o aparato na rua habitualmente pacata, foi o de que o avô tinha morrido.
Joana correu em direção a casa e, quando voltou a sair com a filha ao colo, gritou: “Não cheguei a tempo de salvar a minha menina”, contaram os vizinhos ao Observador. Os Bombeiros Voluntários de Vialonga, que ficam a cerca de 200 metros da casa da família, chegaram ao local três minutos depois do primeiro alerta. Pouco depois, o Centro de Orientação de Doentes Urgentes declarou o óbito.
Surto psicótico, delírio de ruína ou puro crime? As teorias em cima da mesa
Até àquele momento, a família de Joana — o seu pai e a filha Lara — era “normal”, garante uma amiga da mãe da criança: “Poderia haver sinais de que alguma coisa não estava bem em casa, mas não era o caso. A Lara era muito doce e o avô era reservado, mas muito cuidadoso com a miúda”. A vizinhança só encontra uma explicação para o caso: um surto psicótico.
Esta será uma das linhas de investigação que as autoridades têm em cima da mesa, mas todas as outras estão em aberto — até mesmo a de um quadro de violência doméstica, embora não haja relatos de queixas anteriores da prática desse crime. Em declarações ao Observador, o psicólogo Carlos Poiares explica que só uma perícia clínica pode tirar conclusões sobre o quadro mental do avô no momento do crime. Mas explicou que um surto psicótico acontece quando uma pessoa fica mentalmente desestabilizada e deixa de compreender a realidade como ela é.
“Pode acontecer sem que nada aparentemente o faça supor”, esclarece em tese, “mas também pode estar relacionado com o consumo de drogas, até mesmo medicação de farmácia”. E pode também estar associado a outras condições mentais específicas do indivíduo, como a esquizofrenia. “Não justifica nenhum crime, mas ajuda a perceber porque é que ele aconteceu”, afirma Carlos Poiares.
A tese de um surto psicótico, porém, não parece ir ao encontro de uma informação entretanto avançada pelo Correio da Manhã: a de que o avô terá escrito dois bilhetes dirigidos à filha antes de cometer o crime. Segundo a notícia, num deles, o homem alegadamente dizia temer ficar sem a neta — e colocaria mesmo a hipótese de que Joana e uma tia materna planeavam retirar Lara da sua companhia.
O mesmo jornal dá conta de que noutro bilhete, o avô alegadamente confessava que tinha perdido um apoio económico da Segurança Social — e que sem essa fonte de rendimento não conseguiria suportar a família, nem contribuir para a educação da neta. Questionado sobre se a redação destes bilhetes pode ocorrer enquanto uma pessoa sofre um surto psicótico — informações que o Observador ainda não conseguiu confirmar, Carlos Poiares disse ser um cenário pouco provável.
Nesses casos, continua o psicólogo, a pessoa pode não estar a atravessar um surto psicótico, mas continuar inserido num estado de descompensação mental, “fora da realidade, num quadro em que fantasiou estas situações”. Em quadros precoces de demência, pode dar-se o caso de uma pessoa entrar numa situação próxima de um “síndrome de ruína”, em que a pessoa julga não ter condições para sobreviver e em que se autorretrata numa situação miserável que não é totalmente real.
Este tipo de quadros clínicos tem de ser comprovado através de entrevistas ao próprio indivíduo — neste caso, a Polícia Judiciária, que está a investigar o crime, ainda não falou com o principal suspeito, que continua em estado grave no Hospital de Santa Maria. Ou então em conversa com quem convive mais de perto, nomeadamente a própria filha, mãe da vítima.
Ao Observador, entre mais de 10 vizinhos do bairro da Icesa, apenas um afirmou que o homem “não parecia estar bem”. Junto ao portão para uma das hortas nas traseiras do bairro, um companheiro do avô de 69 anos agora suspeito de ter matado a própria neta admitiu que, nos últimos tempos, o homem estava a comportar-se de forma estranha. Mas “nada que fizesse imaginar” o que aconteceu na madrugada de terça-feira, rematou.