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A “manta de retalhos” legal que permitiu a saída de um Domingos Sequeira (e as mudanças que os especialistas desejam)

Uma “lamentável falha dos serviços”, como a classificou o ministro da Cultura, levou à saída para venda de “Descida da Cruz”, de Domingos Sequeira. Mas o que aconteceu poderá ser evitado no futuro.

Indignação foi a reação geral à saída do país da pintura de Domingos Sequeira (1768-1837) Descida da Cruz para ser colocada à venda em Espanha, na galeria Colnaghi, em Madrid. Perante a notícia avançada pelo Expresso há duas semanas, o Governo apressou-se a reconhecer o erro, que apontou a João Carlos Santos, o diretor-geral da Direção Geral do Património Cultural, extinta a 31 de dezembro último, e atual presidente do Património Cultural, IP, por não ter aberto um procedimento de classificação à peça, como, aliás, defendiam os pareceres que aquela instituição pedira.

O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, prometeu realizar todos os esforços para colmatar a falha, leia-se para comprar a obra-prima da pintura portuguesa. As reuniões com os proprietários do quadro, a família Palmela, descendentes do duque de Palmela que primeiro adquiriu a peça à filha de Domingos Sequeira, em 1845, já se iniciaram com vista às negociações de aquisição não só de Descida da Cruz, mas também de Ascensão e Juízo Final, as três pinturas que, com Adoração dos Magos, completam a série de trabalhos que o pintor realizou em Roma no final da vida e que se constituem como o melhor da sua obra.

A opinião pública foi clarificada sobre a importância daquela peça pelos esclarecimentos dos peritos na matéria, historiadores de arte e diretores de museus, que também se dirigiram, em carta aberta, ao Ministério da Cultura, apelando à compra da pintura. Agora, até um leigo já percebe que o Estado pagará muito mais caro pelo quadro, à venda por 1,2 milhões de euros, do que antes da polémica e caso tivesse ativado o procedimento de classificação da obra. O que ainda ninguém consegue perceber é porque é que tudo isto aconteceu.

A importância absoluta da obra final de Domingos Sequeira (aqui num auto-retrato) no panorama do património cultural nacional é, perante todos os agentes e especialistas, "evidente"

Cortesia do Museu Nacional de Arte Antiga

A transparência dos serviços, ou a falta dela, ainda não explicou, nem explicam os próprios, que razões levaram João Carlos Santos a decidir que o procedimento de classificação não era “oportuno”, como se lê no processo, nem o que pretendia Isabel Cordeiro sugerir ao diretor-geral da DGPC quando lhe fez saber por email que “a prioridade deveria ser contactar de imediato o proprietário para conhecer as condições de venda à DGPC” da obra em causa “antes de ser iniciado o procedimento de classificação”. Será que João Carlos Santos quis fazer precisamente o que a secretária de Estado lhe dizia para fazer?

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A realidade, conhecida de ambos, do ex-diretor da DGPC e de Isabel Cordeiro, era que faltavam cinco dias para, se nada fosse feito, Descida da Cruz poder sair de Portugal e ser colocada à venda e foi precisamente o que aconteceu. A questão decisiva não foi tanto a não existência de uma autorização, o fundamental no decorrer dos acontecimentos foi não ter existido um impedimento. Foi a tácita aceitação da comunicação prévia da exportação, que a lei obriga que seja feita pelos proprietários com 15 dias de antecedência em relação à sua saída. Porque a única forma de impedir a saída de um bem privado em Portugal é determinar a abertura de um procedimento de classificação, como explica a Museus e Monumentos de Portugal ao Observador.

O diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, Joaquim Caetano, sugere que se criem outras figuras jurídicas passíveis de serem usadas, tais como a listagem ou o arrolamento, para evitar a saída temporária de obras que se entendam ser verdadeiramente importantes para que o país as perca.

O processo de que falamos decorreu entre 6 e 16 de novembro de 2023, altura em que a DGPC, que detinha a exclusiva competência na matéria, estava a encerrar funções a todos os níveis, faltando pouco mais de um mês para desaparecer enquanto organismo do Estado, e a Museus e Monumentos de Portugal, atual órgão competente na matéria, ainda não estava no ativo, o que viria a acontecer a 1 de janeiro. Isso mesmo relembra, em declarações ao Observador, o serviço de comunicação deste novo organismo do Ministério da Cultura. Mas poderá o Estado português escusar-se nesta circunstância? Ou será melhor precaver-se para que situações como esta não voltem a acontecer?

“O que seria de facto vantajoso para o país era rever isto tudo”

Depois de auscultados vários especialistas do meio, a resposta fixa-se na segunda opção: é preciso um debate público e político sério que defina novas formas processuais, é preciso um entendimento claro da matéria e é preciso um diálogo transparente entre tutelas e organismos tutelados, responsáveis e organismos competentes. “O que seria de facto vantajoso para o país era rever isto tudo”, desabafa com o Observador Joaquim Caetano, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e autor de um dos pareceres requeridos pela DGPC ignorado por João Carlos Santos.

“Em Portugal ainda vigora muito o quero, posso e mando”, continua, referindo-se à rasteira passada a uma evidência como a importância absoluta da obra final de Domingos Sequeira no panorama do património cultural nacional, e chega a lembrar que tanto Adoração dos Magos, única outra obra da mesma série a pertencer ao MNAA, adquirida em 2016 através de uma subscrição pública, está classificada como Tesouro Nacional, bem como os quatro desenhos preparatórios das pinturas dessa série, são pertença do museu das Janelas Verdes, comprados em leilão no século XIX pela Academia Real de Belas-Artes.

"Adoração dos Magos", de Domingos Sequeira, durante o processo de restauro no Museu Nacional de Arte Antiga, após a campanha "Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo"

PATRICIA AMARAL / OBSERVADOR

Joaquim Caetano sugere que se criem outras figuras jurídicas passíveis de serem usadas, tais como a listagem ou o arrolamento, para evitar a saída temporária de obras que se entendam ser verdadeiramente importantes para que o país as perca. Ao Observador, o diretor do MNAA lembra a existência de moratórias na lei britânica, por exemplo, que impedem a saída temporária de obras de arte de interesse nacional e que podem servir efetivamente como tempo necessário à reunião de condições para que essas peças sejam adquiridas. “Foi com essa figura jurídica da moratória que o Reino Unido impediu a saída de As Três Graças, de Antonio Canova (1757-1822). Durante o ano que durava a moratória, uma mobilização pública permitiu ao país comprar a escultura, razão pela qual a peça ainda hoje circula pelas galerias nacionais”, conta para exemplificar as vantagens da lei inglesa.

“O modelo de classificação português”, reconhece, apesar de o ter defendido por ser o único possível atualmente, “é uma manta de retalhos sobreposta”, que tem vindo a crescer “para colmatar falhas”, é “ambíguo”, além de se utilizar “só quando há risco de saída para exportação”. “Cabe aos responsáveis políticos levar por diante um debate sério sobre a matéria. O que é que os responsáveis políticos pensam? O Estado tem direito a impedir a saída de obras, não tem?”, avança, defendendo também um sem número de outras possibilidades: “O Estado, se calhar, deveria dar contrapartidas aos proprietários dos bens classificados, dar subsídios de restauro e manutenção, por exemplo, apoio técnico para a salvaguarda e acondicionamento, também”. Por outro lado, pergunta ainda: “E como é que sabemos o que as pessoas têm em casa? Onde está o quê?”.

“A disponibilidade do Estado para adquirir obras de arte tem que ser mais evidente”

Raquel Henriques da Silva já viu essas perguntas não respondidas muitas vezes. A última das quais foi em 2021, quando propôs a classificação da obra Os Cães de Barcelona, de Paula Rego, agora procurada pela Casa das Histórias, em Cascais, para uma exposição, para que a pintura não se perdesse, pois estava na posse do banqueiro João Rendeiro e este não a emprestava para ser exposta. A não localização da obra pela Polícia Judiciária veio a impedir a sua classificação e o paradeiro ainda hoje é desconhecido. “Este processo é muito delicado”, afiança a historiadora de arte.

Diretor do Museu Gulbenkian: “Os museus têm que adquirir obras para que a arte e o património cultural português sejam conhecidos lá fora. A circulação tem que passar pelos museus, senão continuaremos a ver uma usura na saída das peças dos nossos grandes. Se o Estado não se adiantar aos processos, não chegamos lá.”

“As famílias não gostam de ter os seus bens classificados”, diz saber, defendendo ao Observador a necessidade muitas vezes “de manter um bom relacionamento com os proprietários” em lugar de partir para “a classificação”. Raquel Henriques da Silva, que tal como Joaquim Caetano também assinou a carta aberta ao MC, advoga que a comunicação entre os técnicos das instituições e os diretores de museus e historiadores de arte a comunicação tem que ser mais eficaz: “Temos que deixar de ser uns chatos sempre a fazerem projetos para gastar dinheiro”.

Já para o diretor do Museu Gulbenkian e ex-diretor do Museu de Arte Antiga, António Filipe Pimentel, a questão é menos redundante: “A disponibilidade do Estado para adquirir obras de arte tem que ser mais evidente”. “Os museus têm que adquirir obras para que a arte e o património cultural português sejam conhecidos lá fora. A circulação tem que passar pelos museus, senão continuaremos a ver uma usura na saída das peças dos nossos grandes, veja-se os casos tanto dos primitivos portugueses, como do Amadeo de Souza-Cardoso. Se o Estado não se adiantar aos processos, não chegamos lá.”

António Filipe Pimentel fala de uma “Comissão de Aquisição de Bens Culturais para os Museus e Palácios Nacionais dotada de efetiva capacidade aquisitiva”. Recorda também, como autor da campanha de 2016, “Vamos pôr o Sequeira no Lugar Certo”, que levou à compra de Adoração dos Magos para o MNAA por 600 mil euros através de um inédito movimento de cidadania, que “o Estado não deu um cêntimo e só dificultou o processo”, frisando “o absurdo” de agora “deixar sair outra pintura” da mesma série. “Quando a Cultura tem problemas, temos que prestar mais atenção”, avisa o país.

“Aprendemos com os erros e temos que tirar proveito deles”

Também ouvido pelo Observador, o historiador Vítor Serrão aponta o caminho do diálogo e do debate franco e aberto. “Isto emperra tudo por falta de contacto. Tem que haver maior frontalidade, senão vamos passar o tempo, como acontece agora, a remediar o mal que está feito. É necessária uma atitude mais transparente entre os técnicos e as tutelas. Não nos podemos esquecer que estamos num tempo em que as políticas especulativas não olham a meios, vale tudo. Não podemos abrir mão de outros instrumentos legais, ter critérios claros para o que é relevante e porquê, para aquilo que tem um valor patrimonial único.” Vítor Serrão acredita que “aprendemos com os erros e temos que tirar proveito deles”, por isso aconselha a Comissão de Aquisição de Bens Culturais, por exemplo, a exigir mais poder político.

"Ascensão" e "Juízo Final", as duas obras que que se juntam a "Adoração dos Magos" e "Descida da Cruz" para formar o quarteto de referência de Domingos Sequeira

Da ambiguidade da relação do Estado com os proprietários de arte privados sabe bem falar José Luís Porfírio, antigo diretor do MNAA, e dos interesses dos comerciantes de arte também. Mas, ao mesmo tempo, sabe que todos os proprietários “querem tirar proveito dos seus bens, pode ser prestígio, poder ou a mera valorização da sua obra”. Sempre se fizeram “manobras” nesse sentido. E é precisamente por saber tudo isso que considera que a Comissão de Aquisição de Bens Culturais se deve escudar “na definição de objetivos, prioridades e conhecimento do mercado”. José Luís Porfírio adverte ainda para a necessidade de se clarificarem posições nesta obscura negociação no mercado da arte a começar pelo “fim da complacência do Estado para com os privados”, uma tarefa “muito difícil de cumprir”.

Enquanto ouvia as propostas dos conhecedores da matéria para novos caminhos no que respeita à salvaguarda do património cultural móvel do país, o Observador contactou o Ministério da Cultura, a direção da Museus e Monumentos de Portugal, o Património Cultural, IP, para obter mais esclarecimentos sobre o sucedido e pedir a indicação de medidas para que no futuro estas situações se pudessem evitar. As respostas foram unânimes. “Não podemos acrescentar mais nada” e “ainda não é o momento para discutir isso”. Resta saber se os procedimentos de classificação — proposta que, segundo a lei, qualquer cidadão pode fazer e que o parecer de Joaquim Caetano fazia —, já foram abertos para as duas outras pinturas de Domingos Sequeira, Ascensão e Juízo Final.

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