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Depois de o Fisco ter pisado o risco em Valongo (e de os casamentos terem escapado por um triz), regressa o debate sobre o alcance e o poder da Autoridade Tributária. Em cinco especiais, o Observador ajuda-o a perceber a máquina fiscal.
A máquina que faz e sabe tudo, a caridade e os bolos penhorados, o chefe angustiado, o funcionário zeloso e o chefe obcecado, os 1.900 euros que valeram a venda de uma casa pobre — e as lutas com o contribuinte “aldrabão” e o desempregado injustiçado. Há quem lhe chame “o rolo compressor”, agressivo, brutal e cada vez mais refinado. Mas as reclamações dos contribuintes ao Fisco são poucas face ao universo de liquidações e até vão abrandando. Confusos? Bem-vindos ao maravilhoso mundo do relacionamento fiscal.
Até ao limite?
Se há tema que faz soar as campainhas entre funcionários do Fisco é o da pressão para obter resultados. Serão excessivos os objetivos definidos anualmente? Em causa está, sobretudo, o nível de cobranças coercivas (quando o contribuinte deixa passar todos os prazos para pagar os impostos).
Questionada em comissão parlamentar sobre a operação stop de Valongo, no final de junho, a diretora-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) lembrou que há uma meta nacional de 2% nesse tipo de cobrança, mas garantiu que, em si mesmo, não é um objetivo e que “não há razão nenhuma para pensar que tem de se tornar numa obsessão”. Apesar disso reconheceu que “há um sentido de missão, de vinculação, de dedicação a uma causa” entre os funcionários que “às vezes pode levar as pessoas a limites que elas próprias não puderam ponderar”.
Na sequência da operação stop de Valongo, um antigo diretor de finanças, Américo Lino Vinhais, escrevia que teve “toda uma vida ativa consumida por preocupações na área executiva”, recordando “a angústia de no dia seguinte ser confrontado pelo sistema informático que tinha mais uns milhares de processos” a cargo, que viriam “acrescer às dezenas de milhares já existentes”.
E perguntava, no Facebook: “Como é que se há-de tramitar um processo que, por natureza, é um processo de massas que não seja por acções massificadas? É certo que se formos tratar todos os processos executivos com pinças, os valores prescritos triplicam, quadruplicam e por aí fora, que é o que convém aos causídicos mais entrosados no direito fiscal”.
Luís Leon, consultor da Deloitte, tem poucas dúvidas de que essa pressão existe. “Não é contra o contribuinte, é a pressão de chegar a resultados e de chegar a números. E os incentivos provavelmente ajudam a isso”, diz o especialista em IRS.
“É por isso que quando se aproxima o final do ano — o prazo de caducidade dos impostos — assistimos a uma desenfreada liquidação, muitas vezes só para interromper o prazo de caducidade, sem saber se a AT tem razão ou não”, acusa Luís Leon. E depois “o contribuinte que venha cá discutir — o que deixa o contribuinte frágil, porque o contribuinte médio não tem capacidade para discutir a decisão, tem de ter apoio, pode haver execuções fiscais, contas penhoradas, ou tem de apresentar garantias bancárias”, sublinha o fiscalista. “Muitas vezes tudo isto nasceu de algo que não devia ter existido, porque há pressão para liquidar.”
Cobranças coercivas aumentam
Se um imposto não for pago nos prazos previstos, é instaurado um processo de execução fiscal. É na sequência desse processo que o Fisco avança para a cobrança coerciva e, se tudo correr mal, haverá penhora de bens (com eventual venda) ou de salários.
Ora, os valores de cobranças coercivas arrecadados em 2018 — apesar de não atingirem os números de 2016 — tiveram um aumento de 21% face ao ano anterior, para 1.290 milhões de euros, segundo os dados do Quadro de Avaliação e Responsabilização da AT para 2019.
[Para ver todos os dados, passe o cursor sobre os gráficos]
No entanto, apesar de a máquina fiscal arrecadar mais milhões através destas cobranças coercivas, as dívidas acumuladas ao Estado superam ainda os 20 mil milhões de euros, o equivalente a quase 40% de todos os impostos cobrados num ano.
Dessa dívida que está em carteira, um em cada quatro euros (25%) é dado como perdido. O valor das chamadas dívidas incobráveis surge agora na Conta Geral do Estado de 2018, depois de o Tribunal de Contas se ter queixado da falta de informação em vários pareceres nos últimos anos. Também aqui a tendência é de aumento.
“Temos de tirar o chapéu”
“Há uma coisa que tenho de dizer: de facto, o sistema tecnológico excecional da Autoridade Tributária, para mim tem sido magnífico. Consigo cumprir todas as minhas obrigações e fazer tudo sentado aqui na minha secretária e, portanto, houve uma evolução notável”, diz o antigo ministro Bagão Felix, em conversa com o Observador — apesar de ser crítico feroz de vários aspetos da máquina fiscal (já lá vamos). “Aí temos de tirar o chapéu”, reconhece.
Outro crítico da forma como a administração fiscal vai funcionando, Luís Leon também valoriza o salto tecnológico e as vantagens que trouxe. O consultor entende que “em Portugal tem havido um percurso muito grande no combate à fraude e à evasão fiscal, com base na informação contabilística e na informação fiscal, na obrigação de comunicar todas as faturas e todas as guias de transporte”.
“Tudo está digitalizado, tudo está controlado centralmente, a AT consegue fazer investigações e fiscalizações à contabilidade das empresas sem sair do sítio, porque tem acesso informático a toda essa informação: o fenómeno do e-fatura, que inundou a AT de despesas dos contribuintes; as ferramentas de gestão de ‘big data’, que dão à AT muito mais informação; os fenómenos internacionais do ‘Common Reporting Standards’ — que permite a troca de informação de bancos fora de Portugal e as autoridades fiscais do país de residência”, enumera o fiscalista.
Para Carlos Lobo, “o grande salto quântico” foi dado há uma década, “com a criação desta nova visão de rede”. O antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Teixeira dos Santos explica que, “em vez de se analisar caso a caso, há uma análise integral das relações, o que permitirá a curto prazo, e com grande facilidade, ter um total controlo de todas as transações”. E a máquina está ficar cada vez mais afinada: “A única coisa que falta é a ligação das transações financeiras entre os pagamentos e a emissão do documento fiscal”.
“Atualmente, a administração fiscal tem a capacidade de conhecer melhor o contribuinte do que ele próprio”, nota o consultor da EY. O braço do Fisco é longo e, para o fiscalista, essa abrangência está longe de ser um problema: “Conhece-o [ao contribuinte], à sua concorrência e à sua teia de relações, em termos económicos — essa é que é a vantagem atual da administração tributária”.
E não pode gerar receios de um Big Brother fiscal? “Temos de garantir que a administração tributária seja efetivamente competente na angariação de recursos e com o menor custo para o próprio sujeito passivo”, responde Carlos Lobo, que lembra “o papel crítico da AT” para “garantir determinado tipo de serviços e de prestações”.
A máquina está a ser equipada
O investimento nos últimos anos em sistemas de informação tem sido evidente, com os equipamentos informáticos e o software a representarem quase metade dos bens e serviços adquiridos, tanto este ano como no ano passado. Em ambos os casos, um investimento na ordem dos 50 milhões de euros.
Os dois equipamentos mais caros desde 2012 (quando a Autoridade Tributária foi constituída, juntando três direções gerais distintas), foram comprados no último semestre. Em fevereiro deste ano, a maior compra dos últimos anos — um modelo de licenciamento empresarial para todo o software ‘Mainframe’ da AT e serviços de suporte da infraestrutura de hardware — foi feita à IBM por mais de 11 milhões de euros.
E a segunda compra mais cara foi feita em dezembro de 2018 — a aquisição de licenciamento e manutenção do software Microsoft por cerca de 7 milhões de euros à ITEN Solutions.
Os dois contratos juntos valem mais do que os seis que se seguem no top 10 das compras mais caras desde 2012. Aliás, 70% dos contratos nesse ranking foram celebrados em 2018 e 2019. As exceções são apenas três contratos — de 2013, 2014 e 2017.
“O mínimo de intervenção humana”
A audição da diretora geral da AT no Parlamento sobre a operação Stop de Valongo trouxe aquela que é provavelmente a mais sincera descrição da máquina fiscal por parte de um responsável do Estado.
“Nós temos os sistemas montados para garantir que a cobrança — mesmo quando é coerciva — exige o mínimo de intervenção humana e é o mais eficiente possível”, disse Helena Borges aos deputados no final de junho. “Parametrizamos os sistemas para que tenham o mínimo de intervenção humana, porque os nossos recursos também são limitados”. O número de funcionários no Fisco tem-se mantido estável em torno dos 11 mil funcionários nos últimos anos.
O problema, nota Manuel Faustino, diretor do IRS do Fisco na década de 90, é que a máquina hoje em dia interpreta os casos antes de se verificarem. “A administração fiscal tem de definir as regras de liquidação antes que as declarações sejam apresentadas. E ela quando define as regras de liquidação está a correr todo o código fiscal e a interpretá-lo e a arranjar soluções para as milhentas situações que possam aparecer numa declaração de IRS. Está a tentar imaginar todos os casos que possam acontecer”, explica o fiscalista.
Manuel Faustino dá o exemplo de uma sociedade chamada a assumir responsabilidade solidária por uma dívida da empresa-mãe, “que foi introduzida no sistema como tendo responsabilidade conjugal”. Isto porque “o sistema de execução não estava preparado para receber uma responsabilidade solidária de uma empresa que nasceu de outra”, como prevê o código das sociedades. Quando foi necessário inserir o caso no sistema, “a única via que encontraram foi metê-la através da responsabilidade solidária que existe entre os cônjuges”.
O problemático legado de Paulo Macedo
As opiniões divergem sobre se foi Paulo Macedo, como diretor-geral dos impostos, quem revolucionou digitalmente a administração fiscal, mas todos concordam que teve um papel decisivo para transformá-la numa verdadeira máquina, com tudo o que comporta.
“Ele teve a visão e sentido de oportunidade de introduzir mecanismos de automação e de desenvolvimento comunicacional informático na altura certa”, considera Bagão Felix, que elogia “o grande sentido de eficácia” do atual presidente da Caixa Geral de Depósitos. Paulo Macedo tinha sido nomeado por Manuela Ferreira Leite, em 2004, e quando Bagão Félix assumiu a pasta das Finanças, durante o governo de Santana Lopes, ainda tiveram oportunidade de trabalhar juntos.
A Paulo Macedo, que esteve três anos à frente da máquina fiscal, é atribuída ainda a implementação de “uma cultura — que parece ser de hoje, mas não é — de regularização voluntária”, diz ao Observador uma fonte que trabalhou no Fisco nesse período. A oportunidade de regularização voluntária surge quando o contribuinte é inspecionado. Se forem detetadas omissões ou irregularidades, os funcionários da Autoridade Tributária conversam com o contribuinte e convidam-no a regularizar a situação, uma solução que acelera a arrecadação da receita e evita o contencioso.
E, sobretudo, na opinião de Bagão Félix, Paulo Macedo gerou uma alteração de fundo na lógica de funcionamento da AT, “uma redistribuição entre aqueles que não pagavam — num sistema mais caduco, menos exigente, menos objetivado —, e aqueles que sempre pagaram, independentemente do sistema ser melhor ou pior”. O antigo ministro das Finanças aponta a Paulo Macedo “a mudança qualitativa e de visão, ligada a objetivos”.
Só que esse é também um legado problemático. “O doutor Paulo Macedo introduz na administração tributária uma cultura de eficiência e eficácia que rapidamente sobreleva quaisquer outros valores” — atira João Espanha, advogado fiscal: “A partir daí tem sido o descalabro”.
O advogado reconhece que a estratégia de Paulo Macedo era na altura “justificada pela enorme necessidade de o Estado cobrar receita” e que atingiu “um tal sucesso que houve visitas de estudo de administrações tributárias de países nórdicos para virem aprender com os portugueses como é que se cobrava impostos”. Reconhecendo “mérito a quem tem mérito”, João Espanha lamenta, no entanto, aquilo em que a administração fiscal se tornou. “Estava lançada a corrida — a partir daí, temos assistido a fenómenos completamente absurdos”, acusa.
Uma casa à venda por causa de 1.900 euros
Ana Dias (nome fictício) mandou abater dois carros, sem adivinhar o sarilho em que se metia. Cinco anos depois recebia uma multa de 1.900 euros referente ao Imposto Único de Circulação, porque se tinha esquecido de dar baixa às Finanças. Como só recebia o salário mínimo, não conseguiu pagar — e a casa onde vivia, aos 52 anos, com três filhos e duas netas, foi colocada à venda pelo Fisco. O salário também foi penhorado.
O caso passou-se em 2014, na altura noticiado pelo Diário Económico, e em conjunto com muitos outros casos acabaria por motivar uma alteração à lei, em 2016, para acabar com o leilão de casas de famílias carenciadas que não conseguiam pagar dívidas fiscais. Um diploma aprovado à esquerda pelos partidos que sustentam o governo, com abstenção do CDS e voto contra do PSD, que falava em “perdão fiscal encapotado”.
Apesar de continuarem penhorados, os imóveis abaixo de 574 mil euros não podem agora ser vendidos por dívidas ao Fisco. Esta proteção não se aplica aos contribuintes que tenham uma hipoteca, caso em que o banco pode avançar para a execução.
A lei não chegaria a tempo de Ana Dias, mas a casa acabou por ser salva por um grupo de técnicos oficiais de contas, que pagou os 1.900 euros.
Depois de sucessivos alertas aos contribuintes, os bens penhorados podem ser colocados à venda em leilão. Ora, com essa lei de 2016 houve logo nesse ano uma redução acentuada (-75%) nas marcações de vendas por parte do Estado e, apesar de ter disparado no ano seguinte (91%), em 2018 voltou a cair (-54%), atingindo o valor mais baixo dos últimos 12 anos, segundo o relatório de combate à fraude referente a 2018.
O número de vendas subiu de forma considerável entre 2006 e 2008 por causa de melhorias tecnológicas, que permitiram integrar numa mesma plataforma todo o processo de venda.
Depois de marcadas as vendas, nem todos os bens penhorados acabam vendidos. Já este ano, segundo o portal das Finanças, estão em causa 1.786 vendas consumadas até o início de julho, sobretudo imóveis (693) e carros (566). Em dois anos e meio foram alienados mais de 8 mil bens, dos quais 45% são imóveis.
Penhoras bem acima dos valores pré-Troika
O número de vendas marcadas (e mais ainda de vendas consumadas) representa uma pequena parte do universo de penhoras. Em 2016, atingiu-se um valor recorde (quase 4 milhões de penhoras marcadas), depois de implementado o sistema de penhoras eletrónicas. Em 2018, houve perto de 2 milhões de bens penhorados, uma redução de 23% face ao ano anterior.
Estes números ficam, em todo o caso, muito acima dos que eram registados antes do resgate financeiro, em 2011, quando não chegava a um milhão de penhoras marcadas.
A penhora de créditos (19% do total) e vencimentos (16%) são por estes dias as mais realizadas. Os imóveis só representam 3% de todas as penhoras.
Situações “desumanas” e o “rolo compressor”
A Autoridade Tributária baseia a atuação na tecnologia e no cruzamento de dados, o que Bagão Félix aplaude, mas o antigo ministro lamenta que, hoje, “o sistema esteja completamente robotizado”, sendo por isso “insensível a qualquer contexto”.
“Às vezes entra-se em situações ridículas e com algumas características desumanas — pequenas dívidas para as quais se faz uma penhora completamente desproporcionada”, critica o antigo ministro. Bagão Félix defende uma relação mais próxima “entre o Estado credor e os seus devedores fiscais” porque “cada caso é um caso”.
Na última década não faltaram casos mais caricatos ou absurdos de bens penhorados. Em 2015, na sequência de uma inspeção a um restaurante, a AT penhorou quatro bolos de 30 cêntimos, em conjunto com uma conta bancária, por uma dívida fiscal de quase 92 mil euros. Os donos do restaurante — contava na altura o Diário Económico —, contestaram a decisão em tribunal e prestaram uma garantia, mas as penhoras ficaram.
No mesmo ano foram penhorados alimentos que tinham sido doados por hipermercados — e que já tinham sido distribuídos por famílias carenciadas do Porto. O Jornal de Notícias noticiou então que estava em causa a dívida de cerca de quatro mil euros por não terem sido pagas portagens nas antigas SCUT, com as coimas e custas processuais daí decorrentes. A penhora acabaria por ser levantada depois de o Fisco confirmar que os alimentos se destinavam a caridade. Casos como estes acabariam por motivar alterações à lei, com a criação de limites à penhora de bens alimentares.
Com o sistema de guias de transportes, as Finanças cruzam com grande facilidade os dados dos bens transportados com a informação relativa às execuções fiscais. “Saem bens de Lisboa e quando chegam ao Porto estão penhorados, porque [as autoridades fiscais] sabem que a empresa tem dívidas e sabem que os bens saíram”, diz um antigo quadro do Fisco, que sublinha as diferenças face ao final do século passado: “Entre o final da década de 80 e início da década de 90, havia um mapa e davam-se instruções aos distritos para fazerem cinco penhoras por mês e marcarem cinco vendas por mês (hoje em dia são leilões eletrónicos, na altura eram vendas em proposta em carta fechada)” — recorda a mesma fonte —, “veja a diferença”.
O problema, no entanto, não é apenas da tecnologia. Num episódio de há dois anos, contado ao Observador por esta fonte, uma florista na casa dos 70 anos foi alvo de fiscalização: “Disse que recebeu uma flor do fornecedor para levar para casa, mas acabou por pô-la à venda. Então, [os fiscais da AT] foram logo pedir a fatura desse ramo de flores. A senhora podia ter contado uma história, mas preferiu contar a verdade e acabou multada, porque não tinha a fatura de um bem que estava a vender”, diz ao Observador este antigo funcionário do Fisco.
Mas não ficou por aqui. “Qual foi a outra infração? Continuou a fazer o que sempre fez ao longo da vida: faturava “um ramo de flores” sempre que fazia uma venda de flores, mas não tinha as flores discriminadas. Teve de pagar por isso uma coima de quase 500 euros”.
A mesma fonte lamenta ainda já ter visto serem levantados autos de notícia “por haver uma diferença na caixa de 13 euros, o que indiciaria que não estava a emitir fatura”.
A que se devem todos estes casos? Um trabalhador da Autoridade Tributária, que também não quis ser identificado, nota no dia-a-dia uma cultura de resultados, “que não quer saber de consequências”, numa “lógica de rolo compressor”. O funcionário do Fisco afirma ao Observador que há “abusos provocados por automatismos”, mas também “excesso de zelo” de funcionários e de “chefias que só querem saber de números”.
Reclamações tendem a favorecer contribuintes
Sim, há uma miríade de casos mediáticos que condicionam a perceção da opinião pública sobre a atuação do Fisco. Mas até que ponto é que esses casos estão refletidos nos números?
A primeira fase da reclamação dos contribuintes — reclamações graciosas, em que a AT tem quatro meses para tomar uma decisão — tem tido, na verdade, uma descida no volume de queixas nos últimos anos, com uma quebra de 20% desde 2016 (menos cerca de 11 mil), embora tenha subido 2% no ano passado (mais 861 queixas).
Estão em causa cerca de 44 mil reclamações, num total de 25 milhões de liquidações (nos diferentes impostos) que foram comunicadas aos contribuintes ao longo do ano passado. Ou seja, o nível de contencioso é, apesar de tudo, reduzido: 0,2% do total.
Nesta fase do procedimento, o Estado tem dado cada vez mais razão aos contribuintes, com seis em cada dez (57%) a verem aceites os argumentos que apresentaram em 2018, o que compara com os 55% de 2017 e 46% de 2016.
Mais: descontando os casos em que houve arquivamento (8%), decisão “parcialmente favorável” (4%), desistências (1%) e outro tipo de situações (13%), a decisão do Estado só foi desfavorável ao contribuinte em 15% dos casos (valor muito semelhante ao de anos anteriores).
“Um secretário de Estado vê estes números da revisão administrativa, sejam reclamações graciosas ou pedido de revisão oficiosa, e bate palmas, só pode estar satisfeito”, diz o antigo quadro do Fisco que apontava os tais casos ao Observador.
Mas — explica a mesma fonte — há potencialmente um problema com estes números: “O que é que a administração decide a favor do contribuinte? Matéria factual”. Isto é, “há um conjunto de matérias que são coisas pequenas, IRS, IUC, algum património e, como o contribuinte prova com documento, é decidido a favor do contribuinte”.
Diferente é a fase seguinte. Se os argumentos não forem atendidos, os contribuintes têm então um mês para apresentarem um recurso hierárquico ao Fisco — e esse foi o caso de cerca de 3.345 contribuintes em 2018, um aumento de 10% (303 casos) face ao ano anterior.
Só que, ao contrário das reclamações graciosas, nesta fase do processo, o Estado tende a não dar razão — apenas um em cada quatro casos (26%) tiveram decisão favorável. Em 50% dos recursos houve decisão desfavorável e os restantes 24% incluem-se noutras situações, como arquivamento (11%).
“Cabe na cabeça de alguém?”
O problema — explica o antigo quadro da Autoridade Tributária — está nas situações em que há dúvida. Se, por um lado, há matérias em que há instruções administrativas, em que “os funcionários estão vinculados às instruções”, há também muitos casos em que “é uma questão de interpretação da lei”. E então? “Alguém já corrigiu, o inspetor [tributário] já corrigiu naquele sentido, mais ninguém decide em contrário — tudo o que é interpretação, [o funcionário] não sai dali. O inspetor corrigiu, mais ninguém decide em sentido contrário”, garante a mesma fonte.
Luís Leon, consultor da Deloitte, concorda que “na dúvida, é sempre em favor do Fisco” e dá um exemplo dos recibos verdes, verificado durante o período de ajustamento. Para incentivar desempregados a criarem o seu próprio negócio, o rendimento sujeito a imposto foi reduzido no primeiro e segundo anos de atividade. Mas, para evitar abusos, se houvesse acumulação com salários ou pensões essa redução não tinha efeito.
A AT considerou então que “basta a circunstância de essa pessoa ter no mesmo ano uns rendimentos e outros para já não poder ter o benefício”, conta o fiscalista. Logo, “alguém que possa ter sido despedido em janeiro de 2019, só pode abrir atividade em janeiro de 2020 para ter o benefício” — exemplifica Luís Leon — “Isto não estava em lado nenhum no espírito de quem criou a regra”.
“Cria-se esta coisa disparatada: se alguém for despedido no início de 2019 e criar o seu negócio no resto do ano, não tem direito ao benefício fiscal”, mas “alguém que é despedido em dezembro de 2019, abre atividade no dia 2 de janeiro de 2020 e já tem direito ao benefício”, explica o consultor. “Cabe na cabeça de alguém? Não, mas cabe na da Autoridade Tributária portuguesa”.
A litigância em tribunal está a diminuir
Quando a reclamação graciosa (primeira fase) é indeferida, o contribuinte pode preferir avançar para tribunal, tendo neste caso três meses para pedir a impugnação. E, apesar de serem poucos os casos que vão parar à Justiça (8.367 em 2018, com queda de 20,3% nos últimos três anos) ou à arbitragem (709 processos, uma queda de 7,8% no mesmo período), a litigância por estas vias tem em conjunto três vezes mais casos do que os recursos hierárquicos.
Neste caso, em tribunal as decisões foram mais favoráveis para o Estado (39%) do que para o contribuinte (31%). Houve ainda 18% de arquivamentos, de acordo com os dados fornecidos pelo Ministério das Finanças. Nos processos arbitrais o caso é diferente, com decisão favorável em 57% dos casos.
Mas também aqui os números podem não contar tudo. “Tem uma coima de 300, 500 ou 1000 euros — vai litigar? Não vai… há imenso dinheiro que entra no Estado assim. Há demasiada agressividade nesse aspeto”, nota um antigo funcionário do Fisco.
E dá outro exemplo: uma empresa que tem 5 mil euros para pagar de imposto — e ainda uma coima —, que resultou de uma ação inspetiva. Mas essa empresa, apesar de não concordar, vai pagar na mesma. Porquê? “Porque precisa de certidão de situação tributária regularizada” e “porque mesmo litigando, para ter a suspensão do processo de execução fiscal, precisa de garantia”. Balanceando ainda os custos, se por um lado são 5 mil euros, por outro, “para litigar, tem de pagar ao advogado”, lembra esta fonte.
E ele — o advogado — concorda. João Espanha também entende que “uma empresa, se calhar, não vai litigar” por alguns milhares de euros. “Pode demorar cinco anos — quem é que vai para [um processo] judicial litigar e ficar à espera 5 anos?” —questiona. “Coimas então nem se justifica, vai falar com o advogado e paga [o equivalente a] três coimas. Neste caso, se for uma empresa até pode ter avença com o advogado, agora as pessoas singulares não justifica, porque — as coisas são como são — os advogados têm de ganhar a vida, quem se senta aqui, lamento, mas tem de pagar”, diz João Espanha.
“A administração tributária tem o péssimo hábito de cobrar em massa pequenas quantias de forma descaradamente ilegal”, aponta o advogado. “E quando o faz sabe muito bem que 90% dos contribuintes ou não têm informação ou não têm dinheiro para se informar e muito menos para se defender. E, portanto, quando falamos de liquidação de pequenas quantias — falo de IUC, taxas e taxinhas — há uma enorme camada da população portuguesa que está completamente a descoberto, não tem ninguém que os defenda”, acusa.
“Neste momento temos aí essa cultura de ‘embora atirar o barro à parede’ porque de certeza que 90% não reclama… nada mal”, ironiza João Espanha, que vai mais longe: “Nos litígios com o contribuinte, o Estado não é pessoa de bem, arranja todos os estratagemas e artimanhas para evitar devolver o imposto mal cobrado”.
A “mentalidade dos portugueses” perante o “tiro de caçadeira”
Mas será apenas uma questão de dinheiro? Bagão Félix acredita que também tem que ver com a cultura portuguesa. “Há sempre aquela ideia de que litigar com o Estado tem um encargo elevadíssimo — em termos de tempo e dinheiro — e, portanto, o Estado também exagera em aproveitar essa circunstância que está encrostada na mentalidade dos portugueses de que não vale a pena litigar” com o Estado. “Estou a referir-me ao devedor médio”, ressalva o antigo ministro das Finanças.
Sublinhando que a mudança de atitude do Fisco “não é de agora — tem pelo menos uma década” —, João Espanha recorda com ironia o entusiasmo com que as mudanças foram celebradas. “Toda a gente batia palmas ao senhor Paulo Macedo e à eficácia da máquina tributária e eu na altura dizia: ‘É até lhes bater à porta’… É como dizem os ingleses: ‘shotgun approach’ em vez de ‘sniper approach’”. Ou seja, uma abordagem que é indiscriminada em vez de cirúrgica (como um franco atirador).
“Devia ser sempre direcionada a quem foge ao Fisco. Mas não — sai um tiro de caçadeira e vai o pombo, vai o pato… no fim do dia, temos lá o dinheiro, é o que conta. Entre a cobrança e a lei, entre os direitos e o dinheiro, a escolha está feita” — acusa o advogado —, “a cultura da administração tributária não é de uma pessoa de bem, lamentavelmente”.
João Espanha considera que “quando se junta a fome à vontade de comer — prémios à produtividade e instruções superiores ou uma cultura de cobrar a todo o preço — então temos a tempestade perfeita”. “Tudo é motivo para evitar dar razão ao contribuinte. Nós temos aqui [no escritório de advogados] casos completamente absurdos, em que se nota não necessariamente má fé, mas uma capacidade imaginativa que envergonharia um advogado”, afirma.
Diferente é se falarmos de grandes devedores, considera Bagão Felix: “Têm mecanismos de fazer contencioso bastante caros, mas também muito competentes, e aí o ‘robot’ já não funciona, não é? Estes sistemas robotizados acabam por apanhar mais na malha quem sabe que não tem outros meios de defesa. E, portanto, o Estado entra com força e com todos os meios ‘pela terra dentro’”, afirma o antigo ministro das Finanças.
“A evolução, em termos macro, foi de um aumento da justiça” [fiscal] — reconhece —, “mas, em termos micro, há situações de abuso e há tentações de uma administração demasiado totalizante face aos direitos que os contribuintes têm”.
Sem petróleo, sobra o Fisco
Ressalvando que “o Fisco não visa a angariação de receita a qualquer custo”, Carlos Lobo, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, discorda das análises mais críticas e prefere sublinhar que “a administração tributária é o sustentáculo do país”.
Nos últimos anos, “se Portugal está na situação financeira em que está, muito deve obviamente à Autoridade Tributária, à capacidade de arrecadação de receita” — nota o antigo governante socialista —, “nós não temos petróleo, não temos outras riquezas, a nossa sustentabilidade depende efetivamente da eficiência da nossa administração tributária” e “é isso que garante o cumprimento das metas orçamentais e o Estado social tal como ele existe”.
Ainda assim, o consultor da EY reconhece que é necessário melhorar o relacionamento com os contribuintes: “Por vezes, deixar de estar ali naquela perspetiva napoleónica, de império da lei puro, e passar mais para um império anglo-saxónico de relacionamento com o cliente — ver o contribuinte como um cliente — tratá-lo bem, distinguir os bons contribuintes dos maus contribuintes, um modelo mais relacional, com a criação de um ambiente mais amigável”.
E o ‘robot’ não têm de ser o mau da fita. “Já que o poder da autoridade — que antes era essencial para a imposição do imposto — já ficou diluído por esta rede de informação, por esta nuvem de informação, então a AT deve usar essa nuvem de informação para se relacionar de uma forma mais amigável e mais eficiente”, sugere Carlos Lobo, que acredita “que esteja a ser feito”.
O governo garante que sim, dando como exemplos a melhoria do serviço e-balcão (com o e-balcão inteligente), a criação do grupo de trabalho para prevenir litígios ou o Serviço de Apoio e Defesa do Contribuinte.
Mas Carlos Lobo quer mais: em causa está, como nos bancos, “a existência de gestores de conta para os contribuintes [singulares], o que na prática permite ao contribuinte saber que está a ser permanentemente acompanhado”, mas também “‘chatbots’ [software que usa a inteligência artificial para simular conversas].
A AT devia ainda “avisar previamente sobre determinado tipo de obrigações e, havendo uma questão qualquer, devia dar um entendimento prévio sobre essa questão”. Se os desentendimentos forem antecipados depressa, “o contribuinte não é apanhado de surpresa quatro anos depois, na data de caducidade”, considera Carlos Lobo.
“Qualquer papel que o contribuinte entregue é tudo mentira”
O relacionamento do Fisco com os contribuintes também depende de quem reclama, acredita João Espanha: “Há dois contribuintes que são ‘bonzinhos’ aos olhos da Autoridade Tributária — o funcionário público e o trabalhador por conta de outrem, por não conseguirem fugir ao Fisco, porque têm retenção na fonte. Mas quando falamos em empresários, empresas, funcionários liberais, etc., a atitude do Fisco é muito mais severa, quase como se houvesse uma presunção de ilicitude”. E vai mais longe: “Voltámos à cultura salazarista que pressupõe que o contribuinte é um aldrabão”.
Ainda houve uma fase (entre a reforma do IRS, na viragem para a década de 90, e o início do século XXI) em que foi “relativamente agradável” lidar com o Fisco — diz João Espanha —, porque “as pessoas eram bastante acessíveis, bem intencionadas, queriam aplicar a lei como deve ser, tinham vontade de aprender e aprendiam com os contribuintes”, porque “sabiam que tinham lacunas ao nível da formação contabilística e da formação jurídica”.
No entanto, os casos de corrupção na Administração Tributária no início do século, de “gente que recebia dinheiro para resolver problemas, para extrair certidões, para colocar processos por baixo da pilha, etc.”, trouxeram dificuldade em aceder à administração tributária, na opinião do advogado.
“Não se consegue marcar reuniões, as pessoas não respondem, evitam, não querem saber, contactos que antes eram muito fáceis de repente recebemos um email ‘chapa 4’ a dizer que todos os assuntos são tratados no balcão e, portanto, o diálogo começou a perder-se”, lamenta João Espanha.
O fiscalista recorda como, até ao final da década de 80, a administração tributária tinha com os cidadãos “uma relação de poder”. O advogado considera que vingava a “doutrina pardalista”, do diretor-geral dos Impostos, Rodrigues Pardal, que seria depois juiz do Supremo Tribunal Administrativo. “Ele dizia-nos, sem vergonha nenhuma: ‘Vocês não se enganem, qualquer papel que o contribuinte entregue é tudo mentira’”, recorda João Espanha, que assistiu a formações do antigo diretor-geral dos Impostos.
Bagão Felix também lamenta que o Estado olhe de soslaio. “Nos países do Norte [da Europa], o princípio base é o de que o Estado confia no cidadão. Aqui em Portugal, o princípio básico é que o Estado desconfia. Independentemente da melhor vontade de dirigentes ou governantes, está encrostado este princípio de que o Estado à partida desconfia do cidadão e, portanto, nós temos o ónus de provar que somos confiáveis”, aponta o antigo ministro das Finanças.
A imagem de uma Autoridade Tributária desconfiada, que depende de uma máquina automatizada, com o “mínimo de intervenção humana”, é naturalmente problemática. E, na última década, tem influenciado — para o bem e para o mal — a forma como a Autoridade Tributária é percecionada. Mas, mais ainda, essa imagem ganha novas camadas de significado cada vez que uma família pobre vê a casa à venda por causa de 1.900 euros, cada vez que se decida penhorar quatro bolos de 30 cêntimos, cada vez que há uma lista VIP, um escândalo com transferências offshore ou tantos outros casos que — depois de corrigidos —, são substituídos pelo próximo abuso, embaraço ou ação que pisa o risco.
A operação Stop de Valongo e os casamentos que escaparam por um triz, na mesma semana, são mais dois casos a juntar à extensa lista de polémicas em que a Autoridade Tributária se tem visto envolvida na última década.
Do mal o menos: à boleia de cada polémica, uma nova oportunidade de reflexão sobre o papel e o alcance do braço do Fisco — longo mas com limites, tecnológico mas envelhecido, e com várias peças soltas.
Ilustrações: Raquel Martins