Conhecem meio mundo. “Desse meio mundo, a única pessoa que realmente não conheço é o professor Cavaco Silva, que nunca veio cá”, conta Fernando. Natural do Barreiro, começou a trabalhar no Café de São Bento em 1988, há 34 anos. O histórico de Lisboa era ainda uma criança — abrira portas há apenas seis anos, em 1982. Estamos com os cinco funcionários mais antigos do café de São Bento — cujas restantes identidades revelamos mais à frente — a propósito de duas ocasiões: o 40.º aniversário e um novo dono.
As quatro décadas de existência que celebra este ano vieram com mudanças que prometem manter a essência deste clássico. Com a cidade, agora referência no roteiro europeu, a transformar-se a passo acelerado, nesta cápsula do tempo, que hoje ocupa o prédio inteiro no número 212, mantêm-se as luzes baixas, a alcatifa encarnada, a porta com campainha, os uniformes com colete em xadrez, o famoso bife à São Bento. As pessoas.
“O objetivo principal é não mudar nada. Não mudar a essência, o caráter, a forma de estar”, conta Miguel Garcia, atual proprietário, que em fevereiro tomou as rédeas do Café de São Bento. Há mais de 20 anos no ramo da restauração e hotelaria (por esta ordem), construiu a sua carreira com passagens pela Suíça, pelo Brasil e a administrar os hotéis cidade do grupo Tivoli, a partir de Lisboa. Era essa a função que ocupava até vir comprar o Café de São Bento, então gerido por três dos cinco sócios fundadores.
A mudança de rumo nasceu da consciência de que há vontades que têm de ser supridas antes que seja tarde demais. Ao entrar nos 40, fez um exercício de reflexão: “Há coisas na minha vida que vou ter de decidir agora se faço ou não, senão acho que nunca mais vou fazer”, conta. “Quero investir numa coisa que gosto e sei fazer e gosto: hotel ou restaurante.” Ativou “o radar” e hoje, ao invés de “assistir”, passou a “realizar” o filme que é o Café de São Bento. Está “muito feliz com a decisão”.
Decisão essa que, garante, passa por manter viva a tradição do espaço. “Quando investimos em algo que tem muitos anos, um dos ativos é a história. E essa história tem de ser preservada. E a missão é até perpetuá-la”, detalha.
Os protagonistas principais desta história são Manuel Fernandes, Manuel Lobo, Fernando, David e Agostinho, os elementos da equipa que acompanham o Café de São Bento há mais tempo, em conjunto com os restantes 11 que completam a fundamental equipa, hoje de 16. A história acontece num “lugar sereno, discreto, com bom servido, onde os clientes e quem está aqui a trabalhar se conhecem”, descreve Miguel. Uma relação rara e que põe a tónica nas pessoas que fizeram e ainda fazem o Café de São Bento, com quem o novo proprietário faz questão de se aconselhar na gestão do negócio.
Atendem o avô, o pai e o filho que, geração após geração, continuam a frequentar a steakhouse famosa, não só pelo Bife à São Bento, mas também pela arte do bem servir. Sabem quem quer o ovo à cavalo ou de lado; as batatas em palito ou às rodelas; a água fria ou natural. Ouviram a política portuguesa bater-lhes à porta, vinda da vizinha Assembleia da República, recebendo os principais atores desta novela nacional. “O Dr. Mário Soares sentava-se sempre naquela mesa, onde esteve sentada”, apontam. “Pedia sempre o ovo à parte, frito em azeite. E duas laranjas descascadas no final.”
O cheiro a cigarros, o autocarro com dois andares e a mesa dos segredos
Quem é o primeiro-ministro mais simpático? Todos pisaram aquele chão — com a exceção de Cavaco Silva. A questão gera debate. “Eles foram todos, mas o António Costa talvez seja dos mais simpáticos”, responde Fernando. Manuel Fernandes, 60 anos, natural de Ponte de Lima, há 37 a trabalhar no Café, reage de imediato: “O quê? É o Dr. Guterres! O engenheiro Guterres é das melhores pessoas que pode haver!”.
“Os do PSD também! O Passos Coelho era muito simpático”, acrescenta Fernando, lembrando que o antigo líder dos sociais democratas já frequentava a casa nos tempos em que presidia a Juventude Social Democrata. “Não tenho queixa de nenhum deles”, conclui, por fim. Assunto encerrado.
O trato entre Fernando e Manuel é próximo, quase de irmãos. Ainda viram o camping gás na cozinha, na década de 80, quando só três pessoas trabalhavam nesta casa. O sentimento de irmandade é partilhado com a restantes equipa. “Os meus colegas são a minha família praticamente. Passamos cá quase todas as horas“, conta Manuel Lobo, 59 anos, no Café de São Bento há 16.
A filosofia é a mesma, mas há mudanças que dão conta do passar do tempo A casa, recorda Manuel Fernandes, era antes mais de bebida do que de comida. Bem regada, estava também constantemente coberta pela neblina formada pelo fumo. Cheirava a cigarros. Lá fora, ainda passava o elétrico e o 39, um dos autocarros de dois andares que circulavam por uma Lisboa antiga, que nos vem à memória na forma de uma fotografia analógica.
Nem o dia de anos lhes escapava. Existia antes um arquivo com uma ficha para cada cliente, que garantia o envio de uma oferta no dia de anos. “O ficheiro tinha entre 10 a 15 mil pessoas. Todos os dias, mandávamos por correio um monte de cartas de parabéns para todo o país”, lembram. Era David quem, quase sempre, ia. “Houve um ano em que enviámos um postal com uma fotografia nossa, em que, quando se abria, cantávamos os parabéns. Lembra-se? Daqueles postais que tinham uma pilha?”. Esta ficha permitia também aos clientes participar num sorteio de viagens. “Houve um que ganhou duas vezes, e ficou conhecido como o Índia, porque ganhou a viagem à Índia.”
Marcelo Rebelo de Sousa, recorda Agostinho, 59 anos, natural de Lamego, outro dos empregados mais antigos da casa, era também um cliente frequente. “Houve uma vez em que ele estava à espera — não tinha mesa!”, nota. Sentado no bar, o agora conhecido presidente dos afetos ia assistindo ao sair dos pratos quentes da cozinha, que repousavam no balcão até serem distribuídos. “Ele ia tirando uma batata [frita] de cada prato que vinha”, recorda. “Toda a gente o adorava”, acrescenta, notando que, por iniciativa do próprio Chefe de Estado, houve selfies com a equipa do Café de São Bento.
Não importa a profissão ou estatuto. A esta cápsula chega-se com as necessidades básicas do ser humano: com fome, com sede, com vontade de descomprimir depois de um dia longo de trabalho. David Pinto, 64 anos, natural da Guarda — o tal que corria aos correios com molhes de cartas — é uma espécie de filho pródigo do Café de São Bento: a partir da década de 80, já saiu e regressou por duas vezes. Desta veio para ficar. “Daqui só para o cemitério”, brinca, do outro lado da sala, Manuel.
Começou como barman, com curso tirado em 81 e com os icónicos Foxtrot e Pavilhão Chinês no currículo. “O bar é uma escola que você nem imagina… Aprendemos coisas sobre as pessoas que não se aprendem de outra forma. Em termos de Psicologia, evoluímos muito com isto”, exclama.
De regresso às necessidades básicas, os clientes também chegam para desabafar: “Durante muitos anos, costumava dizer que o barman era o confessionário de muita gente. Houve gente que nos dizia coisas a nós, que nem à própria família. A vida da noite ensina-nos coisas que durante o dia não aprendemos. As pessoas do dia para a noite transformam-se. São completamente diferentes.”
Ri-se e, com o olhar de quem vai ao passado, faz uma pausa. “Vou-lhe contar uma coisa que eles não se lembram”, começa. “Tínhamos uma cliente que normalmente bebia Jameson numa chávena de chá para ninguém saber. Uma senhora ilustre da nossa sociedade, cujo nome não posso revelar”, acrescenta. Fernando surge, de repente. Recorda-se da cliente e ri-se. Conta que foi ele quem, na altura, explicou a David como é que deveria proceder: enchia o bule com a bebida secreta e a cliente ia-se servindo.
O acumular da experiência torna-os especialistas no difícil ofício de saber ler uma sala. “Hoje em dia tenho uma facilidade em olhar para as pessoas e saber com quem posso fazer uma graça, com quem não posso, sei ver quem é que vem para jantar e não quer ninguém de volta da mesa.”
O sigilo é um aspeto aqui nunca negligenciado. Puxamos pelos segredos, mas não se descaem. Sabemos só que existe uma mesa que os guarda. “Se aquela mesinha ali em cima falasse….”, aponta David. “É a mesa dos segredos. Às vezes, por graça, até pergunto aos clientes: ‘Quer sentar-se na mesinha do segredos? Se conseguir desvendar algum, depois conte-nos.’” À hora do almoço daquele dia, era ali que se sentava André Ventura, revela depois Agostinho.
As pessoas “são a base deste ambiente, carisma, história, do reconhecimento”
Foi, precisamente, Agostinho um dos protagonistas principais na reviravolta do Café de São Bento. “Numa das vezes que vim cá, já com o radar ligado, decidi fazer um abordagem ao Agostinho”, conta Miguel Garcia. Perguntou-lhe se, por acaso, os antigos sócios estariam interessados em vender. “Eu não digo que não”, respondeu-lhe. E assim começou.
As mudanças implementadas por Miguel foram muito subtis. O menu mantém os seus clássicos: há bife à São Bento, indiscutível bestseller da casa, considerado já um dos melhores de Lisboa (corresponde a mais de 90% dos pedidos), inspirado no à Marrare; o bife à Portuguesa; ou o bife grelhado. Já antes de mudar de mãos, houve a preocupação de criar opções para todos: há, por exemplo, a trouxa mediterrânica para vegetarianos ou o strudel de bacalhau para quem não quer carne.
No campo das novidades, há o steak tartare, “um clássicos das steakhouses”, bem como outras opções no campo dos doces, que mantém a clássica tarte Tatin. Neste capítulo, Miguel Garcia trouxe mais “regionalidade” às sobremesas ao introduzir o pudim Abade de Priscos. A ligação com a comunidade local também se faz sentir com a chegada dos gelados Nananrela no Café de São Bento. E porque tudo se quer em bom, ainda o Melhor Bolo de Chocolate do Mundo.
Para celebrar o 40.º aniversário do Café de São Bento, deu-se ainda o lançamento do vinho com o mesmo nome, um tinto reserva 2020, feito em parceria com a Ravasqueira, disponível para venda no restaurante.
Sobre a hipótese de expansão do Café de São Bento, que já esteve no Casino do Estoril e mantém presença no Time Out Market, no Cais do Sodré, Miguel Garcia não esconde a possibilidade de, desde o Porto ao Estoril, se dar a multiplicação da casa: “Existe um plano para haver à volta de quatro a cinco cafés de São Bento“, conta. Mas é um plano sem pressa: “A pressa pode ser um inimigo do que é o Café de São Bento” Tem de ser no local certo, sem “sentimentos de reserva”. Tem de ser assertivo: “É aqui”.
Num setor que vive uma crise de Recursos Humanos, conjugado com um projeto que põe a tónica nas pessoas que ali trabalham, não se correrá, assim, o risco de se desvirtuar o conceito? Miguel Garcia acredita que não. Até porque, garante, são as pessoas que fazem e fizeram o Café de São Bento que vão liderar a implementação do espaço irmão. “Vão explicar como é que se trata os clientes, como é que se fideliza.”
As pessoas “são a base deste ambiente, carisma, história, do reconhecimento”, frisa. “Vou até onde poder para garantir que há felicidade mutua. Um gestor que não acredita que o segredo são as pessoas. dificilmente vai ter sucesso a longo prazo. Não é um cliché. Trabalhei em três países diferentes e a base são sempre as pessoas.”