Um dia pode deixar de ser uma história de Hollywood. Um dia, um astrónomo vai franzir as sobrancelhas, intrigado por um ponto brilhante que apareceu repentinamente nas imagens do telescópio. Vai passar o dedo no ecrã e não, não será apenas uma poeira no ecrã do computador, nem um inseto inconveniente nos radares. Um pouco por todo o mundo, outros astrónomos estarão a deparar-se com a mesma paisagem pré-apocalíptica: um asteróide com dezenas de quilómetros de diâmetro em rota de colisão com a Terra.
O cenário é tão realista que a agência espacial norte-americana investiu 324,5 milhões de dólares para colidir uma nave espacial (que custou 95% desse valor, 308 milhões de dólares) num corpo celeste que nem sequer representa uma ameaça para a Terra, só para testar se esta tecnologia de defesa espacial funciona mesmo. O alvo, Dimorfos, é uma lua com 160 metros de comprimento que orbita o asteróide 65803 Didymos — esse, sim, considerado um objeto potencialmente perigoso, porque pode vir a colidir com a Terra (a sua rota em torno do Sol cruza com a da Terra) e provocar danos consideráveis no planeta.
DART, acrónimo de “Double Asteroid Redirection Test”, partiu da Terra em novembro de 2021 e viaja pelo espaço a quase 24 mil quilómetros por hora. Não tem mais nada a bordo além de uma câmara de alta resolução, que também funciona como bússola, e um pequeno satélite da Agência Espacial Italiana que será libertado na quinta-feira — cinco dias antes do impacto — para observar a colisão. Na noite de segunda para terça-feira, quando se estiver a aproximar da pequena Dimorfos, nada a desacelerará: às 00h17 de 27 de setembro, vai embater contra contra o alvo a seis quilómetros por segundo e fica assim cumprida a missão desta milionária nave espacial. O momento será gravado por um pequeno satélite italiano, que transmitirá as imagens do impacto e da nuvem de poeiras para a Terra. Em 2024, uma missão da Agência Espacial Europeia seguirá novamente para Dimorfos para estudar o que aconteceu à lua depois da colisão.
“É uma missão suicida, uma missão kamikaze”, descreveu ao Observador o astrónomo e divulgador de ciência José Augusto Matos. DART é a primeira experiência científica concebida para perceber como é que, no dia em que um asteróide estiver em rota direta contra a Terra, se pode desviar a ameaça. Na verdade, o mal encontra-se à espreita: há centenas de objetos próximos da Terra que nos podem atingir nos próximos tempos; e o mais provável é que o inimigo seja algum corpo celeste na vizinhança do planeta — não um corpo interestelar vindo da infinitude do espaço que, com todo o azar do universo, se alinha com a Terra. “Se queremos saber se há algum asteróide perigoso a caminho, temos de conhecer aqueles que estão aqui perto”, resume José Augusto Matos.
Nuclear, sim, mas só como solução extrema
Sim, a opção mais destrutiva e bélica está em cima da mesa: uma das teorias para aniquilar um objeto em rota de colisão com a Terra é fazê-lo explodir com recurso ao nuclear ou a detonadores instalados por naves. Mas essa é uma opção que pode ser exagerada se o corpo celeste não for tão grande quanto isso — e potencialmente mais perigosa, uma vez que pode desintegrar-se em partes mais pequenas que viajam em direção à Terra e espalham o caos pelo planeta se sobreviverem ao escudo da atmosfera.
A outra possibilidade, pelo menos em tese, é empurrar a ameaça para fora do caminho. Se tudo correr como esperado, após o impacto da nave espacial DART, a órbita de Dimorfos em torno do asteróide principal, que tem apenas 780 metros de comprimento, vai mudar: a lua aproximar-se-á de Didymos e precisará de menos quatro minutos e 12 segundos para cumprir uma volta completa ao asteróide — cuja órbita, por sua vez, também será perturbada. Será uma prova de que esta técnica consegue mesmo desviar a órbita de um corpo celeste sem o destruir por completo, dispensando a utilização de tecnologia mais destrutiva no espaço, como a energia nuclear. E que um dia, quando a Terra estiver sob ameaça, se o corpo celeste em rota de colisão for detetado atempadamente, é possível que o desastre nos passe ao lado.
O cenário não é muito iminente graças à nossa própria pequenez: a Terra é um alvo demasiado pequeno para que, na imensidão do espaço, seja comum ser atingido por corpos celestes ameaçadores. Além disso, por ser um planeta pequeno, o campo gravitacional não é muito atraente de outros corpos celestes: Júpiter, um gigante gasoso, funciona como um íman para esses impactos, e livra os pequenos planetas rochosos de serem mais massacrados.
A verdade é que, mesmo assim, o desastre está sempre à espreita. Neste momento, e segundo a Agência Espacial Europeia, há 1.416 asteróides próximos da Terra em risco de colidir com o planeta no futuro. “Tem havido um esforço muito grande para fazer uma catalogação dos asteróides que podem ser perigosos para a Terra. Esse esforço vai continuar, o catálogo ainda não está completo, ainda precisamos de mais recenseamento”, descreveu José Augusto Matos. E de um olhar de lince: basta uma perturbação na rota causada pela passagem de outro corpo celeste para, de um momento para outro, um asteróide que estava longe do percurso terrestre entrar num caminho de colisão.
As agências espaciais organizam todas estas ameaças numa escala em função do risco de impacto — a Escala Técnica de Ameaça de Impacto de Palermo. As contas são feitas com base no tempo que falta para o impacto, no tamanho do corpo celeste e na velocidade a que viajará no momento da colisão; e comparadas com o risco médio de impactos aleatórios na Terra — isto é, o risco médio representado por objetos do mesmo tamanho ou maiores ao longo dos anos até a data do impacto potencial. E demonstram, por exemplo, que a 1 de outubro deste ano, às 00h28, o asteróide 2009TB pode colidir com o planeta a 14,44 quilómetros por segundo. Alertas semelhantes repetem-se quase todos os meses.
24 de setembro de 2182 às 21h24: o momento de maior risco
Há duas boas notícias. Em primeiro lugar, o 2009TB é extremamente pequeno: tem apenas cinco metros de comprimento, por isso seria facilmente consumido pela atmosfera assim que entrasse em colisão e não causaria danos em terra. Em segundo, o asteróide recebeu uma classificação de -7.06. É um valor muitíssimo baixo: afinal, uma classificação de -2 indica que o impacto é apenas 1% tão provável de acontecer como o risco médio, o valor 0 significa que o risco é semelhante ao médio e uma classificação de +2 simboliza que o risco é 100 vezes maior do que a média. Trocado por miúdos, na próxima sexta-feira podemos estar descansados. E, pelo menos de acordo com as informações mais recentes dos cientistas, será assim por mais de 150 anos.
Mas a 24 de setembro de 2182 às 21h24 tudo pode mudar. Um asteróide com 484 metros de comprimento pode colidir com a Terra a uma velocidade de 12,68 quilómetros por segundo. É o maior risco de colisão, e o mais próximo no tempo, entre todos os corpos celestes já sondados pelos cientistas: na Escala de Palermo, Bennu ocupa a classificação de -1.59. Sim, o número continua a estar abaixo de zero, o que indica uma probabilidade de impacto que não é extraordinariamente elevada.
Mas é elevada o suficiente para, em dezembro de 2018, a NASA ter enviado para este mundo uma sonda — a OSIRIS-Rex — que recolheu 60 gramas de material rochoso com um braço metálico. A amostra está agora a caminho da Terra e deve chegar a casa em setembro de 2023 com informação útil para, daqui a longas décadas, nos sabermos defender deste corpo celeste em forma de diamante com 490 metros de diâmetro. O segundo maior risco de impacto é com 29075 1950DA, um asteróide com 1,3 quilómetros de diâmetro que viaja a 17,99 quilómetros por segundo e que pode colidir com a Terra a 17 de março de 2880 às 00h48. Tem uma classificação de -2,12 na Escala de Palermo.
Se for necessária uma estratégia de defesa espacial contra estes asteróides, o empurrão que a missão DART vai dar ao Dimorfos não bastaria para desviá-los da rota. Seria necessária muito mais energia. Quanta? Ainda não se sabe, mas as agências espaciais planeiam descobrir: “Um asteróide mais coeso, resistente a um choque, terá um comportamento. Um mais poroso, menos coeso, terá outro”, sintetizou José Augusto Matos. Sobre Dimorfos, as respostas só chegarão daqui a quatro anos, quando a missão europeia Hera observar a lua.