A estrada que liga as vilas de Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra, no nordeste do distrito de Leiria, é talvez o cenário mais desolador do incêndio que matou pelo menos 57 pessoas na noite deste sábado. De um lado e de outro, o preto e branco das árvores carbonizadas, do fumo e da cinza. No tapete de alcatrão, um amontoado de cabos elétricos derretidos caídos dos postes de eletricidade incinerados que estão tombados ao longo do caminho. No centro da estrada, aqui e ali, carros e camiões totalmente carbonizados. Foi nesta estrada que morreram 47 pessoas (30 encontradas dentro de viaturas, 17 na estrada ou nas margens) que, cercadas pelas chamas, não conseguiram fugir.
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A zona mais crítica — onde estão as dezenas de veículos carbonizados em que morreram as vítimas — está vedada pela polícia. Para lá das fitas, os inspetores da PJ vão analisando ao detalhe e fotografando cada carro queimado: a força das chamas foi tal que deixou os veículos num estado de destruição completo, levando à morte imediata dos seus ocupantes.
O incêndio começou em Pedrógão Grande no fim da tarde de sábado, mas rapidamente se alastrou aos concelhos vizinhos de Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra, onde arderam dezenas de casas e terrenos. Foi em Figueiró dos Vinhos que o Observador testemunhou uma noite de desespero em que escasseavam os bombeiros, restando apenas os baldes de água, as mangueiras domésticas e os ramos verdes nas mãos dos residentes para tentar, muitas vezes em vão, afastar as chamas das suas próprias casas.
“Preferia que ardessem os meus terrenos do que ver esta gente a morrer”
Numa das aldeias junto à vila de Figueiró dos Vinhos, meia dúzia de homens usavam dois extintores e alguns baldes de água para tentar impedir uma frente do incêndio de atingir os campos de cultivo e as habitações do outro lado da estrada. “Já não há mais água, pá”, ouve-se a dada altura. “É correr, temos que fugir daqui!”, grita outro.
A menos de cinco metros, uma pequena oficina repleta de materiais inflamáveis já estava cercada pelas chamas. Só faltava mesmo entrar, algo que há muito os donos e os vizinhos tinham considerado inevitável. Aconteceu pouco antes das cinco da manhã, perante o desespero do dono e da sua família.
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Ali perto, junto ao café “Figueiras” — que se manteve aberto durante toda a noite, apesar de cercado por chamas, para oferecer água e comida a quem ficou sem nada — o sentimento era de impotência, diante da ausência de qualquer bombeiro naquele lugar. Fernando Moreira, 61 anos, reformado da GNR, passou toda a tarde e toda a noite na rua. É da Sertã, que fica a cerca de 30 quilómetros dali, mas assim que soube da tragédia veio para ajudar um amigo a tirar as máquinas agrícolas do centro do incêndio.
“Acabei agora de ligar pela décima vez para o 112 para chamar bombeiros para aqui”, conta ao Observador, ainda com o telemóvel na mão. “Há muita falta de organização dos bombeiros. Há 22 anos que aqui ando e sempre que vejo incêndios é sempre assim, têm de ser as pessoas a apagar o fogo”, lamenta. É ele quem conta às cerca de quinze pessoas que ali se aglomeram que “provavelmente estava lá gente dentro”. “O dono da oficina tem a casa lá junto da oficina, e a família vive mais para cá”, vai detalhando, enquanto aponta para as chamas que já envolvem por completo o negócio.
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▲ Fernando depois de ligar "pela décima vez" para o 117
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Dono de vários hectares de terrenos naquela zona, o homem garante que “ainda não ardeu nada” seu. “Mas amanhã é capaz de arder. É a vida”, desabafa. “Ainda assim, preferia que ardessem para ali os meus terrenos, do outro lado do rio, do que ver esta gente a morrer aqui”. Residente desde sempre na região, Fernando diz não se lembrar de um incêndio como este. “Só nos anos 80, em Vila de Rei, é que vi alguma coisa parecida a isto, mas mesmo assim este é muito maior. Muito maior”, recorda.
Impedido de regressar a casa devido ao corte do IC8 — a via rápida que liga muitas das vilas e cidades desta zona — Fernando vai ajudando como pode, nomeadamente continuando a telefonar para os bombeiros. Aparentemente, com efeito. Vinte minutos depois do momento em que as chamas destruíram a oficina, chegou o primeiro carro de bombeiros ao local.
Amélia fugiu de autocaravana e não sabe se a sua casa ardeu ou não
Amélia Rocha, de 60 anos, chora junto à autocaravana com que fugiu, com o seu marido, da casa em chamas. “Eu estava em casa com o meu neto e de repente o miúdo sai cá para fora e começa a dizer ‘Ó avó, estão ali chamas'”, lembra, no meio de lágrimas. “Quando vamos a ver já estavam quase as chamas em casa. Foi pegar no carro e viemos para aqui”, afirma a mulher, explicando que o neto “é diabético e como nunca tinha visto nada disto, começou a ficar assustado”. “Se não fosse o meu neto estávamos mortos”, garante.
Naquele momento, não sabia nada sobre a sua casa. “Não sabemos de nada, não faço ideia”, lamenta, acrescentando que não foi autorizada a aproximar-se da habitação. “Não me deixam passar, dizem que se passar a responsabilidade é minha”, sublinha. “Não sei se ardeu ou não”, diz a mulher. Ao mesmo tempo, Amélia está também preocupada com os seus animais — três cabras, quatro cabritos pequenos e ainda 15 vacas noutra quinta separada, que teve de soltar. “O gado nós soltámo-lo, mas agora onde é que está não sei.”
Amélia esteve sem comer desde as 19h00 — falou ao Observador já às cinco da manhã — e não tinha vontade de comer. “Quem é que quer comer com esta tragédia?”, questiona. Também os medicamentos que tem de tomar todas as noites ficaram por tomar desta vez, porque ficaram em casa. “Primeiro a doença e agora o fogo em casa, já só me faltava mais esta”, lamenta a mulher — Amélia foi operada recentemente a dois tumores no nariz e está à espera de uma segunda operação.
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▲ Amélia fugiu com a sua autocaravana. Não sabe se a casa ardeu ou não
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
“Tínhamos morrido lá. Estávamos mortos”, repete Amélia. “O meu filho tinha ido a Cabeças [outra aldeia ali perto], quando veio isto já estava tudo a arder. Só gritou ‘fujam, fujam, fujam'”, recorda. O filho levou o neto e Amélia e o marido pegaram na autocaravana e fugiram para o topo da rua. Mas não vão abandonar a terra enquanto não conseguirem regressar a casa, garante a mulher.
O candidato à câmara que andou a apagar o fogo
Ali, mesmo no meio do pânico e da tristeza que assola os moradores da vila, já chamam a Carlos Lopes “o próximo presidente da câmara”. Carlos é candidato independente à autarquia de Figueiró dos Vinhos nas próximas eleições autárquicas, mas hoje é apenas um morador preocupado com as chamas a 400 metros da sua casa. “Felizmente, o fogo não chegou ali acima, mas houve muita gente da nossa terra que perdeu muita coisa”, conta ao Observador.
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▲ Carlos é candidato à câmara, mas esta noite foi apenas um morador preocupado com as chamas a 400 metros de casa
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
“É uma tragédia no nosso concelho, uma tragédia de que não tenho memória, mesmo recuando a 2005 quando tivemos aqui fogos que acabaram por destruir uma parte significativa do nosso território”, lembra Carlos Lopes, sublinhando que as populações de todas as aldeias e lugares estão “sem dúvida num sobressalto enorme”.
Sobre a atuação dos bombeiros, Carlos Lopes prefere não alinhar nas críticas: “Isto costuma-se dizer que em casa em que não há pão todos ralham e ninguém tem razão. Acho que os bombeiros têm feito o seu trabalho na medida do que é possível e têm feito um esforço sobre-humano para acudir àquilo que foi de facto uma tragédia e que está a pôr em causa uma mancha verde muito importante do nosso concelho.”