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A votação para esta consulta popular (que não é legalmente um referendo) começou a 25 de junho e termina esta quarta-feira, 1 de julho
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A votação para esta consulta popular (que não é legalmente um referendo) começou a 25 de junho e termina esta quarta-feira, 1 de julho

AFP via Getty Images

A votação para esta consulta popular (que não é legalmente um referendo) começou a 25 de junho e termina esta quarta-feira, 1 de julho

AFP via Getty Images

A nova Constituição levará Putin ao que ele mais quer: ser sinónimo de Rússia

Em plena pandemia, a Rússia aprovou em referendo que Putin governe um total de 37 anos — mais do que Estaline. Não é certo que o faça, mas a possibilidade agrada-lhe: "É clássico de Putin".

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As palavras são de Vladimir Putin: “Se cada novo chefe de Estado chegar e mudar a Constituição à sua medida, então não sobrará nada do Estado”. A questão em causa era a sua continuidade enquanto chefe de Estado e as limitações que a Constituição da Rússia impõe: a de que se pode ser Presidente apenas durante dois mandatos consecutivos. Uma regra que, para ex-agente do KGB que deu em Presidente da Rússia, era para respeitar — em nome da estabilidade do Estado, ali recorrentemente sinónimo de país.

Resta, porém, dizer que essas são palavras de 2005. Em 2020, a conversa já é outra — e esta quarta-feira, 1 de julho, o fecho das urnas e a contagem dos votos confirma o que se esperava: que a votação em referendo, apesar das várias acusações de fraude, aprovasse mais de 200 emendas à Constituição. Uma delas destaca-se sobre todas as restantes, a que permitirá a possibilidade de Vladimir Putin se candidatar à presidência mais duas vezes (2024 e 2030) e assim ser Presidente até 2036 — um total de 36 anos, um recorde para qualquer Presidente da Rússia, incluindo Estaline.

Russos aprovam revisão à Constituição que permitirá a Putin governar até 2036

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Segundo ele próprio, Vladimir Putin entrega-se a esta missão como alguém que se prepara desempenhá-la não porque quer, mas porque é esse o seu dever.

Moscow amid self-isolation regime

Se for Presidente até 2036, Vladimir Putin será aos 83 anos o homem que durante mais tempo governou a Rússia desde Estaline(Sergei Bobylev/TASS)

Sergei Bobylev/TASS

O início desta história surge em janeiro de 2020, altura em que Vladimir Putin propôs a abertura de um processo de reforma da Constituição russa garantindo um conjunto de medidas que, nas suas palavras, iriam “aumentar significativamente o papel do parlamento”. Apesar dessa garantia, a questão de uma possível eternização do próprio Putin no Kremlin voltou ao topo do debate — e, ciente disso, a 19 de janeiro o Presidente deixou claro numa resposta a um veterano da Segunda Guerra Mundial que não ia haver “um regresso aos tempos dos anos 80, em que cada líder ficava no poder até ao final dos seus dias”. “Obrigado, mas acho que é melhor não voltarmos a essa situação”, atalhou o Presidente.

Mas, depois, chegou a tal “chamada do dever” que fez Vladimir Putin mudar de discurso. Numa encenação própria do estilo das da Duma, o parlamento russo, a primeira mulher a ir ao espaço, a cosmonauta Valentina Tereshkova, hoje uma deputada com 83 anos, apresentou a 10 de março a proposta que abre o caminho a que Putin continue no Kremlin até 2036. A proposta teve apoio da Duma, foi aceite pelo Presidente e aprovada pelo Tribunal Constitucional — e, agora, aprovada nas urnas.

Vladimir Putin não é homem de muitas palavras — e, por isso, quando as gasta não é por acaso. E foi novamente em perante um conjunto de veteranos da Segunda Guerra Mundial que escolheu falar da votação desta semana.

“Não se trata apenas de votar em emendas que foram claramente formuladas como normas legais. Vamos votar pelo país em que queremos viver, com educação e saúde de ponta, um sistema de proteção social fiável e um governo que se responsabiliza perante o povo”, disse. “Vamos votar por um país a favor de tudo aquilo pelo qual temos trabalhado e queremos deixar aos nossos filhos e netos.”

"Através destas reformas, Putin demonstrou o quão precária e transitória é a natureza da lei fundamental do país. A Rússia precisará de outra constituição se alguma vez quiser reclamar o seu estatuto de democracia emergente."
William E. Pomeranz, vice-diretor do Kennan Institute, do think-tank Wilson Center

Já William E. Pomeranz, vice-diretor do Kennan Institute, o centro de estudos para a Rússia do think-tank norte-americano Wilson Center, pega na afirmação de Vladimir Putin e vira-a de pernas para o ar, substituindo o otimismo do inquilino do Kremlin pelo seu próprio pessimismo. “[Putin] espera otimisticamente que esta nova edição da lei fundadora da Rússia sirva as gerações de russos que se seguem não só nos próximos 20 como nos próximos 50 anos”, escreveu no blogue daquele centro de estudos. “Isto faria desta a Constituição mais tempo em vigor na História da Rússia [a última reforma foi em 1993]. Porém, através destas reformas, Putin demonstrou o quão precária e transitória é a natureza da lei fundamental do país. A Rússia precisará de outra constituição se alguma vez quiser reclamar o seu estatuto de democracia emergente.”

Para não ter uma Rússia “assim”, só Putin servirá

Em bom rigor, a votação que termina esta quarta-feira não diz apenas respeito à possibilidade de Vladimir Putin poder ou não candidatar-se a mais mandatos. As medidas que vão a votos, e que serão decididas entre um simples “sim” ou “não”, são várias e para vários gostos. Para os mais pobres há a regulação do salário mínimo nunca poder ser abaixo do mínimo de subsistência; para os reformados e outros a proposta de indexação das pensões à inflação; para os mais conservadores a consagração na constituição do casamento como uma união entre um homem e uma mulher ou a menção à Rússia ser um país crente em Deus; para os mais nacionalistas a designação do russo como língua “formadora do Estado” ou a garantia de que a lei russa não pode ser suplantada por tratados internacionais.

De resto, a mensagem de Vladimir Putin e dos seus apoiantes, nos quais se incluem os media estatais e muitos privados, tem sido a de evitar quase por completo a menção ao reset do número de mandatos do Presidente. Em vez disso, fazem antes por mencionar questões como a segurança social ou a saúde ou agitar bandeiras do agrado dos mais conservadores ou nacionalistas. Mas há um subtexto, como indica ao Observador Mark Galeotti, autor de vários livros sobre a Rússia de Vladimir Putin e diretor da consultora Mayak Intelligence: “Eles estão a dourar a pílula com as outras medidas dirigidas a pensionistas, conservadores e nacionalistas, mas o que fica claro sem que seja necessário dizê-lo é que para que todas essas medidas possam ir para frente é necessário que Putin continue como Presidente”.

"Muita da atenção tem ido para todas as reformas constitucionais que não mencionam Putin diretamente, mas o engraçado é que toda a gente sabe de qualquer modo o que é que está em causa. É uma espécie de doublethink."
Anna Aruntunyan, jornalista e autora do livro "A Mística de Putin"

Também Anna Aruntunyan, jornalista e autora do livro “A Mística de Putin” (2014, Quetzal), aponta para esse subtexto, evocando um termo próprio de outro livro: a distopia “1984”, de George Orwell. “Muita da atenção tem ido para todas as reformas constitucionais que não mencionam Putin diretamente, mas o engraçado é que toda a gente sabe de qualquer modo o que é que está em causa. É uma espécie de doublethink [duplopensar, em português]”, diz, numa entrevista por telefone ao Observador.

Esse mesmo exercício esteve presente num vídeo de campanha que catapulta a Rússia para 2035. Nele, é possível ver como a diretora de um orfanato irradia felicidade ao anunciar, num vídeo filmado em modo selfie, que o pequeno Petya encontrou finalmente uma família adotiva — “uma nova mamã e um novo papá”. De seguida o vídeo corta para a imagem de um homem, que leva o seu filho recém-adotado pela mão até à porta do orfanato. Ali, a criança pergunta-lhe: “Onde está a minha mamã?”. O pai acena em frente, em direção à “mamã” de Petya: outro homem, maquilhado e com joias, cujo primeiro contacto com aquele rapaz é oferecer-lhe um vestido. Depois disto tudo, o vídeo conta com uma voz-off onde é dito: “Quer uma Rússia assim?”.

Uma corrida contra a Covid-19 (e uma luta contra a abstenção em tempos de pandemia)

Quando, em janeiro, Vladimir Putin anunciou o processo de revisão constitucional, a Covid-19 era tida como apenas um surto na China. Quando, em março, aceitou a proposta que o poderá levar a ser Presidente até 2036, a Covid-19 já era uma pandemia mas na Rússia o chefe de Estado deu a certeza de que estava tudo “sob controlo”. E, agora, a Rússia é o terceiro país com mais casos no mundo (mais de 650 mil registados) e o 12º em mortes (9.536). Se numa fase inicial o regime do Kremlin tentou ignorar a seriedade da crise no seu território (sobrando acusações de os casos de Covid-19 serem, logo desde início, camuflados com diagnósticos de outras doenças), cedo a evolução da pandemia em sítios críticos como a megalópole Moscovo obrigou à tomada de decisões de outra maneira inéditas, entre elas o adiamento da votação (inicialmente prevista para 22 de abril) e também da habitual cerimónia do Dia da Vitória, celebrado a cada 9 de maio.

Com o piorar da situação epidemiológica na Rússia, outra dinâmica foi instalada: Vladimir Putin reduziu a sua presença mediática. Ao mesmo tempo, abriu espaço para outras personagens (como o presidente da câmara de Moscovo, Sergey Sobyanin) assumirem as rédeas da gestão de uma situação desconhecida e imprevisível. Apesar dessa ausência aparentemente programada, a sua imagem pública não foi poupada e, de acordo com o Levada, instituto de sondagens independente, a taxa de aprovação de Vladimir Putin atingiu um mínimo histórico, embora ainda positivo: 59%, contra 33% deram nota negativa ao Presidente.

"Putin geriu mal esta crise, porque este não é o tipo de crise à qual ele está habituado. Ele gosta de calcular os resultados, até porque é uma pessoa muito avessa ao risco. Mas a crise da Covid-19 leva a desafios que não se vencem da maneira habitual: não é possível excluir, espancar ou prender o coronavírus."
Mark Galeotti, diretor da consultora Mayak Intelligence

A votação iniciada a 25 de junho e que termina esta quarta-feira surge numa altura em que a pandemia está longe de estar controlada. Na véspera do fecho das urnas, esta terça-feira, 30 de junho, a Rússia registou 6.693 novos casos e 154 mortes. Aqui, ao contrário da prudência demonstrada ao adiar a votação de abril, Mark Galeotti aponta para algum nervosismo da parte do regime para garantir que a votação fosse feita quanto antes. “O Kremlin sabe que as coisas não vão melhorar tão cedo, por isso anteciparam a votação”, diz aquele analista britânico, alertando para o risco de maior erosão da figura de Vladimir Putin.

A missão de Putin de conseguir uma maioria de votos a favor da proposta de reforma constitucional, já de si fácil perante o domínio dos media pró-regime e a perseguição política e judicial à oposição, tornou-se ainda mais fácil com o apelo ao boicote por parte do opositor Alexei Navalny (que tem sido nos últimos anos a maior voz de crítica interna ao Presidente) à votação que terminou esta quarta-feira.

Alexei Navalni, principal rosto da oposição a Vladimir Putin, apelou ao boicote à votação, referindo o risco pela pandemia e que é "um evento cujo resultado já é conhecido"

AFP/Getty Images

“Em 99% dos casos, sou a favor da participação em eleições, mas isto não são umas eleições. Há uma pandemia a atravessar o país, a votação não é segura e por isso é imoral pedir [aos meus] apoiantes que vão às urnas. A nossa tarefa é explicar às pessoas que a votação foi planeada apenas para meter a zeros o número de mandatos de Vladimir Putin”, disse o opositor, num debate online a 15 de junho. “Não quero ser cínico ao mesmo ponto de Putin e instar os meus apoiantes a arriscarem as suas vidas para irem a um evento cujo resultado já é conhecido.”

Ainda assim, como é hábito registado nos mais atos eleitorais ou semelhantes na Rússia, também nesta votação se têm registado algumas irregularidades. Embora a votação não necessite de um mínimo de participação (Putin e Duma evitaram precisamente a figura legal do referendo, onde é exigido um mínimo de 50%), há quem faça os possíveis para conseguir trazer votos favoráveis às pretensões constitucionais do regime.

Numa entrevista ao The Moscow Times, o diretor da ONG de monitorização editorial Golos, Grigory Melkonyants, disse que esta votação é “a mais manipulada” e a “menos transparente” das mais de duas décadas de Vladimir Putin no poder. “Nunca tínhamos recebido tantas queixas de pessoas que nos dizem que estão a ser vítimas de pressão para votarem.”

Nalgumas empresas, foi distribuída propaganda aos trabalhadores, como uma lista lista de "respostas a perguntas com rasteira". À pergunta "é verdade que Putin está a mudar a Constituição para que ele próprio se mantenha no poder" é sugerida a resposta "Putin está a fazer isto por nós para que quem vier a seguir a ele não destrua o país como Gorbatchov ou Ieltsin fizeram".

Apesar de ser proibido pela lei, esta prática é comum na Rússia em locais de trabalho e nas empresas em geral, sejam elas do domínio estatal ou privado. Os relatos são vários. O The Moscow Times deu conta de médicos de várias zonas do país terem recebido mensagens das suas chefias para votarem favoravelmente às emendas pró-Putin: “Colegas, na sexta-feira, 19 de junho, representantes do comité eleitoral vão estar presentes com uma urna para voto antecipado. Todos os funcionários têm de se apresentar com os seus passaportes”. Na cidade de Krasnoyarsk, na Sibéria, os eleitores que demonstrassem ter votado (bastando para isso ler um código QR com os seus telemóveis) estariam automaticamente inscritos num sorteio para dez apartamentos ou prémios em dinheiro. Além disso, segundo jornal Meduza, empresas de renome nacional de setores tão diferentes como a energia ou as telecomunicações, utilizaram uma ferramenta online para garantir que os seus funcionários votavam.

Putin presidente até 2036?

Nalguns casos, foi distribuída propaganda aos trabalhadores, como uma lista lista de “respostas a perguntas com rasteira”. À pergunta “é verdade que Putin está a mudar a Constituição para que ele próprio se mantenha no poder” é sugerida a resposta “Putin está a fazer isto por nós para que quem vier a seguir a ele não destrua o país como Gorbatchov ou Ieltsin fizeram”.

Sem pressa de sair do sítio onde se está bem

Ao apostar na mudança da Constituição, Vladimir Putin garante a continuidade — acima de tudo, a própria. E isso garante também que o líder do Kremlin se refugie na sua zona de conforto, onde o seu poder não tem imprevistos nem é desafiado por ninguém. Com a miragem das próximas eleições presidenciais em 2024, a chegada a esse porto era prioritária em janeiro deste ano. Com a pandemia, passou a sê-lo em dobro.

“Putin geriu mal esta crise, porque este não é o tipo de crise à qual ele está habituado. Ele gosta de calcular os resultados, até porque é uma pessoa muito avessa ao risco. Mas a crise da Covid-19 leva a desafios que não se vencem da maneira habitual: não é possível excluir, espancar ou prender o coronavírus”, diz ao Mark Galeotti. “E Putin não se quer associar a algo que é negativo.”

"Putin e os seus aliados são o resultado dos colapsos de Gorbatchov e de Ieltsin. Eles sabem que o mundo muda num instante, por isso que eles não são grandes xadrezistas, acima de tudo eles agem em cima do acontecimento, como um judoca. Isto é clássico de Putin: garante que tem todas as opções à mão para não ficar preso a apenas uma."
Mark Galeotti, diretor da consultora Mayak Intelligence

Mark Galeotti sublinha ainda assim que ao garantir uma Constituição à medida do seu projeto de poder ad eternum, Vladimir Putin age mais a quente do que com o perfil de mestre do xadrez que alguns observadores lhe atribuem. “Putin e os seus aliados são o resultado dos colapsos de Gorbatchov e de Ieltsin. Eles sabem que o mundo muda num instante, por isso que eles não são grandes xadrezistas, acima de tudo eles agem em cima do acontecimento, como um judoca”, diz, em alusão ao desporto de combate praticado pelo líder russo. Por isso, mesmo que a verdadeira intenção de Vladimir Putin não seja a de ser Presidente até 2036, altura em que terá 83 anos, o facto é que essa passará a ser uma possibilidade. “Isto é clássico de Putin: garante que tem todas as opções à mão para não ficar preso a apenas uma”, sublinha Mark Galleoti.

Também Anna Aruntunyan sublinha essa tese. “Isto serve para criar uma situação de segurança, que Putin tentou sem mudar a Constituição mas que agora só podia fazê-lo desta maneira”, diz. De todas as tentativas prévias, a mais importante foi a de 2011, ano em que ficou claro que apenas deixara Dimitri Medvedev ser Presidente e aceitou “baixar” a primeiro-ministro durante um mandato para logo subir novamente a Presidente. E assim foi: em 2012 foi eleito para um terceiro mandato com 63,6% e, mais tarde, em 2018, foi reeleito com 76,7%.

Aquando do anúncio de 2011, milhares de pessoas saíram às ruas de Moscovo e não só para protestar contra o acordo de poder entre Vladimir Putin e Dimitri Medvedev, prolongando durante meses um movimento de protesto inédito na Rússia do século XXI. “As pessoas sentiram-se traídas por aquela fachada”, diz Anna Aruntunyan. Porém, em 2020, e com tudo o que se passou desde então na Rússia, o que era causa de indignação é hoje quotidiano. “Depois de vários anos a dizer que ele não mudaria a Constituição, Putin vai agora fazê-lo”, diz. “Mas agora não há um sentimento de traição, porque ninguém tinha qualquer tipo de ilusão.”

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