A história ficou famosa. Em 1990, farta de ser conhecida apenas por um pequeno grupo de académicos, Hilda Hilst despediu-se da chamada “literatura séria” e passou a dedicar-se a “adoráveis bandalheiras”. “Quero ser famosa, cansei dessa história de prestígio”, afirmou em reação ao escândalo com que foi recebida a publicação de O caderno rosa de Lori Lamby, considerado uma viragem drástica na sua produção literária, iniciada quatro décadas antes com a coleção de poemas Presságio. O caderno rosa de Lori Lamby inaugurou a chamada “trilogia obscena”, um conjunto de livros pornográficos inspirados por Georges Bataille. Lori Lamby narra as escandalosas memórias sexuais de uma menina de oito anos, Lori, que se decide prostituir com o consentimento dos pais e registar as suas experiências num diário. Chocados, os leitores da altura não foram capazes de entender a nova “fase” de Hilst, que surgiu em resposta ao desejo da autora de explorar outras formas e fórmulas literárias e “de se arriscar em projetos textuais ainda mais ousados”, como referiu a académica Eliane Robert Moraes, especialista na obra hilstiana, no ensaio “Figurações de Eros em Hilda Hilst”, no qual defendeu que a “trilogia obscena” tem mais afinidades com os livros anteriores da autora, uma das mais importantes e sem dúvida uma das mais originais e transgressoras escritoras do século XX brasileiro, do que se costuma admitir.
Apesar da perplexidade que a publicação destes livros gerou no público brasileiro, é por eles que Hilst é mais recordada. O seu site oficial ostenta as palavras “obscena lucidez”, que lembram o peso que a produção pornográfica de Hilst tem na sua restante obra. Uma parte significativa da sua produção literária está, finalmente, disponível em Portugal, graças à publicação do volume de prosa A obscena senhora D e outras histórias pela Companhia das Letras. Este reúne seis histórias publicadas entre os anos de 1982 e 1993, incluindo a “trilogia obscena” — O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio — Textos grotescos e Cartas de um sedutor — e Rútilo nada, galardoado com o Prémio Jabuti. Nas palavras da editora, esses textos iniciam o leitor nos temas de eleição de Hilst, “uma escritora inquietada e inquietante: o sexo, a insanidade, a relação com o pai, as escolhas da mulher numa sociedade castradora, o lugar da escritora num panorama impreparado para a receber”. A propósito da publicação, falámos com Eliane Robert Moraes, autora do prefácio que acompanha a edição brasileira de A obscena senhora D, que se tem debruçado sobre a obra de Hilst e sobre o imaginário erótico nas artes e literatura brasileiras.
Exploração, engenho e pornografia
Poeta, prosadora, dramaturga e cronista, Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu a 21 de abril de 1930 na localidade de Jaú, em São Paulo, filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro, jornalista e poeta, e de Bedecilda Vaz Cardoso. Quando tinha dois anos, os seus pais separaram-se devido a conflitos familiares e Hilst mudou-se com a mãe, uma mulher curiosa e leitora dedicada que se interessava por tudo, e o meio-irmão, Ruy, filho do primeiro casamento de Bedecilda Cardoso, para Santos. O pai, um homem que a autora descrevia como “brilhante” e “cultíssimo”, que publicou textos em jornais, por vezes sob pseudónimo, permaneceu em Jaú. Em 1935, Apolônio Hilst foi diagnosticado com paranoia esquizoide, doença-tema que percorre toda a obra hilstiana. Em 1999, em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salle, Hilst admitiu que toda a sua obra estava ligada ao pai e que construiu todo o seu trabalho literário “através dele”: “Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim. (…) Me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele”, afirmou.
Quando tinha sete anos, Hilst entrou para o Colégio Interno Santa Marcelina, em São Paulo. Mais tarde, estudou no Instituto Presbiteriano Mackenzie e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde conheceu a escritora Lygia Fagundes Telles, amiga de toda a vida. Hilda Hilst iniciou a sua produção literária em 1950, com a publicação do livro de poemas Presságio, que, “claro, não foi uma unanimidade”. Na mesma entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, lembrou que houve quem dissesse que “menores de 25 anos” não devem publicar poemas e que ela própria demorou a considerar-se uma poeta a sério. No ano seguinte, publicou um novo livro de poemas, Balada de Alzira. Em 1963, deixou São Paulo e mudou-se para a fazenda da mãe, perto de Campinas, no interior do estado de São Paulo. Foi num lote desse terreno que construiu a casa onde viveu a partir da morte do pai, no ano de 1966, até ao final da sua vida — a Casa do Sol. Concebida como um espaço de criação artística, foi na Casa do Sol que Hilst, que morreu em 2004, produziu quase 90% da sua obra, e é aí, na Sala de Memória, que hoje se encontra guardado parte do seu espólio.
Alguns acusaram Hilst de “fugir”, mas para a escritora a mudança para Campinas não se tratou de uma fuga, mas de um regresso à sua realidade e verdade interior. Com espaço e tempo para trabalhar como queria, Hilst começou a experimentar com outras formas literárias. O teatro foi o primeiro género para que se virou. Um ano após a mudança, estreou-se como dramaturga, com a peça A empresa (a possessa). Em entrevista ao jornal brasileiro Correio Popular, em 1969, a escritora, que até então era apenas conhecida como poeta, justificou a mudança com a vontade de explorar outras formas de comunicar — a poesia já não lhe “bastava”. “A poesia sofre um desgaste terrível. gente diz as coisas, mas as edições, além de serem pequenas, vendem pouco. Então procurei o teatro”, confessou, explicando que procurou conservar nas suas peças “certas dignidades da linguagem”. “Considero o teatro uma arte de elite, mas não no sentido snobe da palavra. O que eu quero dizer é que o homem quando entra no teatro deve sentir uma atmosfera diferente daquela que sente no cinema. Uma sala de teatro deve ser quase como um templo. Todo aquele que se pergunta em profundidade é um ser religioso. Tentei fazer isso em todas as minhas peças.”
Hilst continuou a experimentar e, apenas um ano depois da conversa com o Correio Popular, deu-se a conhecer como ficcionista. Publicada em 1970, a coleção de histórias Fluxo-Floema foi “um novo divisor de águas”. “Durante quase 20 anos, isto é, desde a publicação de Presságio em 1950, a literatura de Hilda Hilst se voltou para as formas puras, sublimadas e até mesmo aparentemente castas. Valendo-se de uma dicção elevada, marcada pela celebração do poder encantatório da poesia, a autora cultivou uma lírica que se alimentava de modelos idealizados, com forte ênfase no amor divino”, disse Eliane Robert Moraes ao Observador. “Uma reviravolta na orientação da sua obra veio a ocorrer com Fluxo-Floema”, porque, nesse livro, a autora se dispôs “a realizar uma primeira incursão pelos domínios mais baixos da experiência humana”, que se tornar na marca distintiva da suas obras posteriores.
A história que abre o volume agora publicado em Portugal, A obscena senhora D, foi publicada em 1982, uma década antes do aparecimento da “trilogia obscena”, mas ostentando já a palavra que seria usada para definir toda a obra da escritora: “Obscena”. A narrativa conta a história de Hillé, “a senhora D”, que, após a morte do marido, decide viver no vão de escadas de sua casa no mais profundo isolamento. Enquanto recorda o passado, Hillé interroga-se sobre o sentido da própria vida. Este questionamento é típico das personagens de Hilst, que procuram como podem ou sabem uma lógica para a sua existência. A obscena senhora D foi considerada por Alcir Pécora, crítico e especialista em Hilda Hilst, um “momento de perfeito equilíbrio do desempenho literário” da autora. Eliane Robert Moraes concorda “plenamente” com Pécora. Na opinião da investigadora, A obscena senhora D marca “um ponto particular e extraordinário na carreira” de Hilst, porque “as grandes linhas de força do seu génio criativo se fazem presentes e se combinam em notável harmonia”.
Deus é porco, a porca é Deus
A obra de Hilda Hilst é um quinta. Cães, vacas, galinhas, cavalos e burros — os animais estão por todo o lado —, mas nenhum está mais presente do que o porco, que surge também em A obscena senhora D. Recorrentemente associado ao divino, o porco torna-se Deus e Deus o porco na obra de Hilst. Essa constatação — de que “Deus é porco” –, “sintética e contundente, aparece em quase toda a obra hilstiana, ganhando particular evidência depois do primeiro livro de prosa”, Fluxo-Floema, explicou Eliane Robert Moraes. Por vezes, a constatação manifesta-se no feminino “a porca é Deus”, “como propõe a protagonista de Com os meus olhos de cão, que inverte os polos da proposição para acentuar a equivalência de termos. Atenuada pela voz poética, em Amavisse [1989] ela assume a forma de uma prece dirigida ao ‘Senhor de porcos e de homens’, que introduz um terceiro elemento a habitar o mesmo charco imundo, identificado como ‘Porco-poeta’”.
Complexa e variada, a associação entre Deus e o porco sintetiza o mais óbvio “veio blasfematório que marca a dicção de grande parte” das personagens de Hilda Hilst. “Como não há limites quando se trata de ultrajar a figura divina, no capítulo da blasfémia encontram-se as modalidades mais diversas”, afirmou a especialista. “Rebaixada ao nível dos atos mais abjetos, o Deus-porco de Hilst nada, ou quase nada, guarda da entidade intangível que repousa no horizonte da humanidade. O confronto entre o alto e o baixo, além de subverter a hierarquia entre os dois planos, tem como consequência uma desalentada consciência do desamparo humano”. Na maioria dos casos, contudo, esta identificação serve “de mote para uma interrogação do vazio, como ocorre com a viúva de A obscena senhora D que, abandonada na Casa da Porca, apresenta-se como mulher do ‘Porco-Menino Construtor do Mundo’”.
Tal como o porco, o homem é um bicho, que partilha com os restantes animais “a condição de ter um corpo”. É no corpo que “habita o bicho: o bicho humano”, o que faz com que aquilo que separa homens de porcos e cães seja apenas “uma subtil inversão” de papéis. “como diz o protagonista dos Contos d’escárnio: ‘Porque cada um de nós, Clódia, tem que achar o seu próprio porco. (Atenção, não confundir com corpo). Porco, gente, porco, corpo às avessas’. Todo o corpo, portanto, encerra um porco — o que reitera a aproximação entre homem e animal tão frequente na literatura hilstiana”, concluiu Eliane Robert Moraes.
Esta aproximação não é uma simples constatação — tem um propósito. “A consciência da animalidade na autora provém do desejo de indagara a identidade entre o homem e o bicho na sua dimensão mais prosaica, ponto, à afinidade bestial, a ‘vida besta’ que aproxima um do outro”, explicou a professora e investigadora brasileira, acrescentando que é, por isso, que a “imaginação zoológica” de Hilst prefere as espécies domesticáveis — estas “compartilham a miséria humana de cada dia”. “Lori Lamby, por exemplo, narra a história da moça e do jumento que se deleitavam com suas estripulias sexuais num curral de roça; nos Contos d’escárnio lemos um conto sobre a paixão de um homem pela macaca Lisa, que vivia com ele numa pensão e ‘acariciava-lhe o sexo com as mãozinhas escuras delicadas’. Essa intimidade torna-se ainda mais intensa na recorrente figura da porca hilde”, destacou. Os atributos humanos de hilde (ela é “branda, paciente, silenciosa, afável e boníssima”), tornam-na “próxima da porca Hillé, espécie de alter ego da autora, também presente em diversos livros”.
Para Hilda Hilst, o animal é, assim, “antes de tudo, um semelhante”, “na medida em que a sua existência coincide por completo com a vida orgânica”. O animal “enuncia um plano impessoal, puramente biológico, diante do qual as identidades ficam reduzidas às particularidades da matéria. No silêncio da sua insignificância, o bicho lembra que os humanos também dependem de um corpo que é provisório e perecível. Daí esse pensamento atrelado ao provisório ‘tempo do corpo’, que é típico da escrita convulsiva de Hilda Hilst e, no meu entender, a particularidade da sua prosa, marcada pela justaposição vertiginosa do alto e do baixo que mostra, no corpo da língua, o porco da língua”, considerou a especialista.
Uma revolução na paisagem literária brasileira do século XX
Com o passar dos anos, as fronteiras entre géneros tornaram-se cada vez mais ténues. A prosa de Hilst tornou-se num baú, que tudo podia abarcar. O rumo que a sua literatura estava a tomar tornou-se mais evidente nos anos 80 e, sobretudo, a partir de 1990, quando publicou O caderno rosa de Lori Lamby, que propõe “um contacto inesperado entre opostos, associando o exercício do conhecimento à atividade sexual”. Ao mesmo tempo, a “alta voltagem poética inaugurada nos anos 80” continuou a fazer-se sentir, “como se comprova em Com os meus olhos de cão, mas ainda consegue nos surpreender imenso com títulos notáveis como Lori Lamby e os outros volumes pornográficos”, considerou Eliane Robert Moraes. Publicado em 1986, Com os meus olhos de cão, o segundo texto de A obscena senhora D e outras histórias, foi o último livro de prosa de Hilst antes de a autora mergulhar no mundo da escrita pornográfica. A narrativa tem como personagem principal o professor universitário Amós Kéres que, aos 48 anos, passa por uma experiência de iluminação no topo de uma colina, descobrindo que o universo foi criado pelo Mal e que o Homem é seu discípulo. Na busca pelo auto-conhecimento, Kéres dedica-se a imaginar uma vivência alternativa e obscena, e é tomado por louco porque, desde a sua epifania, passou a ostentar sempre um sorriso perturbador na cara.
O caderno rosa de Lori Lamby, sobre as experiências sexuais de Lori, foi publicado em 1990. Apesar de ter sido considerado uma reviravolta na produção literária da escritora, Eliane Robert Moraes acredita que a diferença em relação aos livros anteriores não é assim tão óbvia, porque sempre existiu uma certa continuidade na escrita da autora. Apontando que a “reviravolta” marcada por Lori Lamby, em que a autora propôs “uma nova incursão pelos domínios ainda mais baixos da experiência humana”, foi semelhante à que aconteceu com Fluxo-Floema, a professora e investigadora considerou que “fica difícil” demarcar “uma virada entre a suposta ‘literatura séria’ e as ‘bandalheiras — para usar um termo da própria Hilda —, quando se percebe essas continuidade de base, tanto mais quando nos damos conta de que entre uma virada e outra lançou um livro intitulado A obscena senhora D. Tudo leva a crer que a obscenidade é constitutiva da sua literatura desde o início, mesmo quando se apresentava de forma casta”.
Contos d’escárnio — Textos grotescos, o segundo volume da “trilogia obscena” e o quarto livro de prosa de Hilst, também de 1990, explora de maneira mais evidente a falta de linearidade do enredo e a hibridização de género que se tornaram característicos de Hilst. O livro vai alternando entre momentos de puro confessionalismo e de dura crítica, dirigida sobretudo ao mercado livreiro, que a autora considerava ser de fraca qualidade. Hilst voltou ao tema na obra seguinte, Cartas de um sedutor, que segue o modelo do romance epistolar libertino do século XVIII, mas sem histórias definidas. Neste livro, “a pornografia está pensada dialeticamente, como uma injeção do mercado livreiro na liberdade do artista e também como um lugar de resistência da imaginação autocriadora contra a pudica e o moralismo das sociedades conservadores”, afirmou o crítico Alcir Pécora na introdução que acompanha a edição brasileira da Campo de Letras, descrevendo Cartas de um sedutor como “um romance de questões vivas”.
Rútilo nada, último texto de A obscena senhora D e outras histórias, foi publicado em 1993. O livro narra a história de Lucius Kod, um jornalista político de 35 anos que se apaixona pelo namorado da filha, Lucas, bem mais novo do que ele. A obra venceu, em 1994, o Jabuti, o mais importante prémio literário brasileiro, na categoria de “Contos”. A escritora tinha recebido o mesmo galardão dez anos antes, pelo livro de poesia Cantares de Perda e Predileção. Ao longo de quase 50 anos de carreira, Hilst recebeu muitos outros prémios literários, como o PEN Clube de São Paulo e o Grande Prémio da Crítica pelo conjunto da sua obra. O escândalo causado por algumas dos seus livros não a impediu de ser reconhecida como uma das vozes mais importantes e originais do século XX brasileiro. Para Eliane Robert Moraes, Hilda Hilst constituiu “uma fenda na paisagem literária do país”, porque a sua ousadia em relação à “experimentação de vários tipos e estilos de escrita não encontra paralelo na literatura brasileira”.
“Trata-se de uma autora cuja produção passa pela poesia, pela prosa, pela dramaturgia e pela crónica, até chegar a formas e géneros literários que são absolutamente inclassificáveis. Além disso, ela transita pelas mais diversas formas e tons literários, indo do mais elevado lirismo até à mais deslavada pornografia. E consegue fazer tudo isso com singular mestria, valendo-se de uma voz própria, absolutamente particular”, destacou a especialista. Tudo isto faz de Hilst uma voz absolutamente única, mas talvez o que a distinga mais de outros autores brasileiros do mesmo período, “e até de outros períodos”, seja algo totalmente diferente: a força e “violência poética” da sua literatura.