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“Ir corajosamente aonde antes nenhum outro homem foi.” As palavras imortalizadas por William Shatner na abertura de Star Trek teriam de ser reescritas para descrever com precisão o lançamento marcado para breve da Boeing rumo à Estação Espacial Internacional, para onde as agências espaciais enviam com regularidade astronautas há anos. O fator novidade e que está a atrair tantos olhares é outro. É que este é o primeiro voo tripulado da Starliner, uma cápsula construída de raíz pela Boeing e que vai transportar dois astronautas da NASA numa estreia planeada à custa de quase uma década de trabalho e marcada por muitos contratempos, atrasos e uma ultrapassem inesperada da SpaceX, que faz estas viagens para a agência espacial norte-americana desde 2020.
É uma prova de fogo para a Boeing, mas, apesar dos contratempos que marcaram os últimos anos, espera-se um lançamento sem percalços na próxima terça-feira de manhã, a parir da estação de Cabo Canaveral, no estado da Florida. “A Boeing teve anos para aprender com os seus erros e espero um lançamento bem-sucedido, especialmente com dois astronautas da NASA a bordo”, antecipa em declarações ao Observador Namrata Goswami, professora de política espacial na Thunderbird School of Global Management, da Arizona State University.
O teste é aguardado com grande expectativa pela NASA, que não esconde o entusiasmo de estar mais próxima de ter uma alternativa à SpaceX para transportar os seus astronautas até à última fronteira. “Estamos a testemunhar história a ser feita”, destacou o administrador da agência, Bil Nelson, numa conferência de imprensa na semana passada. “É a era de ouro da exploração espacial (…) Agora temos um back up. Temos duas naves para nos levar para órbita”, antecipava.
A Boeing garante que tudo está a postos para o derradeiro teste e que pode significar o fim do monopólio da SpaceX de viagens espaciais para a NASA. “O design e desenvolvimento é difícil, particularmente com veículos de transporte espaciais para humanos. Tivemos muitas surpresas pelo caminho que tivemos de ultrapassar… Tornou-nos certamente muito mais fortes. Estou muito orgulhoso de como ultrapassámos cada problema que encontrámos e que nos trouxe a esta ponto”, sublinhou o vice presidente da Boeing, Mark Nappi.
Uma tentativa bem sucedida para a Boeing parece ainda mais importante tendo em conta os atrasos dos últimos anos, mas também as várias polémicas ao nível da sua linha comercial, que a empresa e a própria NASA vão lembrando repetidamente que funcionam de forma separada. Ainda assim, os dois acidentes mortais que envolveram os seus modelos de aviões há cinco anos, os denunciantes que têm relatado que a empresa mãe ignora preocupações de segurança e, mais recentemente, o episódio em que um avião perdeu uma das portas de emergência durante o voo deixaram uma marca na imagem pública da Boeing.
As falhas e atrasos até à primeira viagem tripulada na Starliner
Ninguém pensava que a SpaceX, com a sua cápsula Crew Dragon, ia vencer a Boeing na corrida para transportar em segurança astronautas da NASA — e até turistas — para o espaço. Certamente não a agência norte-americana, que, como parte de um contrato assinado em 2014, se comprometeu a investir 4,2 mil milhões de dólares na Boeing, um parceiro de longa data, contra os 2,6 prometidos à SpaceX, vista como uma empresa jovem e imprudente. “São cowboys, são perigosos, vão matar alguém”, era a perceção prevalecente, segundo chegou a revelar o astronauta Garrett Reisman, que em 2011 se juntou à SpaceX.
Também ninguém pensava que a Boeing levaria tanto tempo a alcançar a SpaceX no feito. Foram necessários mais quatro anos, apesar do primeiro teste, ainda sem tripulação a bordo, remontar a dezembro de 2019. O lançamento falhou em levar até à Estação Espacial Internacional Rosie the Rocketeer, um flight dummy com o nome da ícone das campanhas de recrutamento americanas da Segunda Guerra Mundial. Apesar de um arranque suave, depois de meia hora de voo não foi possível ativar os propulsores e a cápsula acabou na órbita errada.
Inicialmente avançou-se que na origem do insucesso estava um problema inesperado com o relógio interno da cápsula, que não estava sincronizada com o foguete do qual foi lançada — a diferença era de 11 horas. Uma análise posterior revelaria outros “problemas fundamentais”, assim descritos pela NASA, incluindo uma anomalia detetada ao nível do software que tinha o potencial de destruir a cápsula durante o processo de reentrada na atmosfera da Terra. Mais tarde, numa atitude que deixou muitos surpreendidos, a empresa reconheceu que não tinha testado adequadamente a Starliner antes do voo inaugural.
Tudo isso foi corrigido e 18 meses depois estava tudo a postos para um novo lançamento. Eis que, a cerca de 24 horas da nova tentativa, a Boeing anunciava que fora detetado um problema “inesperado” ao nível das válvulas e no mesmo dia via-se obrigada a cancelar os planos, evitando apontar imediatamente uma nova data. Desta vez, as 13 válvulas do sistema de propulsão tinham falhado em abrir durante a preparação para o voo. O porquê foi um quebra-cabeças que obrigou a devolver a cápsula à base original para ser observada por uma equipa de engenheiros.
À terceira tentativa foi mesmo de vez e um sinal de esperança para a Boeing, depois dos fracassos que custaram quase 600 milhões de dólares. Em maio de 2022, a Starliner aterrou com sucesso no deserto de Novo México depois de viajar até à EEI. Apesar de algumas falhas nos propulsores e no sistema de resfriamento, o lançamento recebia nota positiva. “Numa escala de um a dez, acho que dava um 15”, avaliava Mark Nappi.
A Boeing parecia finalmente pronta para o primeiro teste com tripulantes. Inicialmente previsto para julho de 2023, teve de ser adiado com a descoberta de novos problemas, incluindo a nível dos pára-quedas, e que, segundo a empresa, deviam ter sido detetados há anos. O teste derradeiro foi, finalmente, marcado para 6 de maio deste ano [em Portugal, 7 de maio devido à diferença horária], com as entidades envolvidas a alertar que esta “não é uma data mágica”. “Vamos lançar quando estivermos prontos”, sublinhou Ken Bowersox, da equipa de missões espaciais da NASA.
“Estamos prontos”. O derradeiro teste da Boeing
Para a Boeing, tudo isto é passado e foi com agrado que esta quinta-feira a empresa viu a operação para mover a cápsula Dragon, da SpaceX, na EEI para arranjar espaço para a chegada da Starliner. Se o lançamento de terça-feira for bem sucedido, a empresa fica mais perto de garantir uma certificação da NASA para a Starliner e assegurar missões rotativas à EEI. No entanto, com a programada reforma da estação espacial até 2030, a Boeing só deverá protagonizar, no máximo, mais seis missões para a agência espacial, como lembrava esta semana a Bloomberg. A SpaceX, por seu turno, já realizou nove voos com astronautas da NASA, além de mais quatro viagens privadas que levaram turistas para o espaço.
“[Há cerca de dez anos] a Boeing era uma empresa com um legado histórico. A SpaceX era uma empresa novata que acabava de testar o seu Falcon 9. Hoje, é a Starliner da Boeing que tem que provar o seu valor“, sublinha Namrata Goswami, acrescentando que mesmo num teste bem-sucedido a empresa fica em desvantagem perante a Space X. Isso é especialmente notório se olharmos para os custos. É que o Starliner vai ser lançado num foguete Altas V, da United Launch Alliance, que custa 220 milhões de dólares, enquanto a Falcon 9 que lança o Dragon custa 67 milhões. “Não há concorrência da Boeing no que diz respeito a custos”, remata.
Apesar do otimismo da Boeing e da NASA, há sempre os habituais riscos e problemas inesperados que podem marcar este tipo de missões, como têm mostrado as mais recentes explorações com sondas lançadas para a Lua — uma sonda japonesa perdeu energia durante a alunagem, outra norte-americana teve uma anomalia no sistema de propulsão e falhou em alcançar o satélite natural da Terra. Desde problemas durante o lançamento a erros de orientação, falhas térmicas que podem levar ao superaquecimento ou congelamento de componentes críticos, a falhas no sistema de energia ou ao nível do software, há muito que pode não correr como previsto.
Nada disso parece demover os tripulantes que vão estrear a Starliner. “Queremos que o público geral pense que é fácil, mas não é — é muito mais difícil (…). Não estaríamos aqui se não estivéssemos prontos. Estamos prontos. A nave está pronta e a equipa está pronta”, garantiu Bill Wilmore, um dos astronautas da NASA e comandante da Starliner, depois de chegar à base de lançamento. “Fizemos todas as formações e temos as nossas impressões digitais em cada procedimento que existe para esta nave”, acrescentou Wilmore numa antevisão, em que garantia que tanto ele como a parceira, Sunita Williams, se sentiam “totalmente seguros e confortáveis” quanto a voar na Starliner.
Um pastor evangélico e uma maratonista. Quem são os primeiros astronautas da NASA a embarcar na Starliner?
Algures numa sala cinzenta no complexo da NASA na Florida, Sunni Williams e Bill Wilmore fazem os últimos preparativos antes de seguirem na viagem inaugural na Starliner. Sentada numa cadeira de secretária, de calções e chinelos de praia, óculos de Realidade Virtual postos, Williams assume a posição de piloto. Numa cadeira um pouco à frente, de comando a postos na mão, Wilmore simula as responsabilidades de comandante num dos últimos testes antes do lançamento.
Os astronautas, ambos com um passado na marinha norte-americana, esperaram há oito anos por este momento e todos os detalhes contam numa missão em que nunca esperaram participar. “Acho que nenhum de nós alguma vez sonhou que estaria associado ao primeiro voo de uma nova nave“, reconheceu recentemente Wilmore numa conferência de imprensa.
????The launch pad is buzzing! Our rocket and spacecraft are in final prep stages for the upcoming #Starliner mission. Meanwhile, the crew is using VR for last-minute training—ensuring every detail is mastered. Join us as we count down to a groundbreaking journey. Go Starliner! ????… pic.twitter.com/2xmkSLde6u
— Col. Mike Fincke (@AstroIronMike) May 1, 2024
Com 61 anos, Bill “Butch” Wilmore está prestes a embarcar na sua terceira incursão espacial. No entanto, o agora astronauta começou a sua carreira como piloto e chegou a voar em missões em apoio às operações Tempestade no Deserto e Escudo do Deserto, durante a Guerra do Golfo, e também sobre os céus da Bósnia em apoio aos interesses dos Estados Unidos e da NATO. Da Força Aérea passou a piloto da Marinha, onde chegou ao ranking de capitão, antes de ser selecionado como astronauta pela NASA em 2000.
Enquanto astronauta, passou um total de 178 dias no espaço, entre duas missões em 2009 e 2014 — a primeira como piloto e a segunda como comandante — e durante as quais teve a oportunidade de fazer quatro passeios espaciais.”Eu adorei as outras missões e fui um elo importante nelas. Mas comandar o lançamento de uma nave é verdadeiramente o motivo para ter vindo da Marinha para a NASA”, chegou a revelar numa entrevista à Universidade de Tecnologia do Tennessee, onde se licenciou e liderou a equipa de futebol americano.
Num lado mais desconhecido, Wilmore é também pastor evangélico na Providence Baptist Church, na cidade de Pasadena (Texas). Ocasionalmente, é possível vê-lo a pregar aos paroquianos, a ensinar às crianças e jovens na catequese ou à frente de um grupo de estudo da bíblia que organiza numa prisão perto da igreja. Também já participou em várias viagens pela América Central e do Sul para colaborar com médicos e dentistas no apoio às populações locais. Nas horas vagas, o pastor Wilmore dedica-se à arte da carpintaria e a ouvir música. No telemóvel, são mais de 300 as músicas de bandas sonoras de filmes, como “Remember the Titan” (em português, “Duelo de Titãs”), e que planeia pôr a tocar durante a subida até à Estação Espacial Internacional.
À semelhança de Wilmore, Sunita Williams, de 58 anos, é também uma piloto e capitã reformada da Marinha norte-americana. Foi selecionada pela NASA como astronauta em 1998 e já passou 322 dias na Estação Espacial Internacional, tendo colaborado em alguns retoques na sua construção. A sua primeira missão foi em 2006 e nela quebrou o recorde de uma mulher com o maior número de horas em passeio espacial, com um total de 29 horas e 17 minutos — acabaria por ser superada pela astronauta Peggy Whitson dois anos depois. No total, acumulou 50 horas e 40 minutos depois de uma nova missão à EEI em 2012, sendo atualmente a segunda recordista e com possibilidade de subir novamente a primeira.
Estes não são os únicos recordes que Williams alcançou durante as missões com a NASA. Foi também a primeira a participar numa maratona a partir do espaço. Depois de em 2006 se ter qualificado para a maratona de Boston, parecia que seria impossível participar, já que a data coincidia com o período de missão na EEI, mas a organização abriu uma exceção. A mais de 300 quilómetros acima da Terra, a astronauta lançou-se numa passadeira de corrida, iniciando a prova ao mesmo tempo que os corredores em terra. Não acabou em primeiro lugar, mas terminou a prova em 4 horas e 24 minutos, enquanto os colegas a incentivavam.
Não satisfeita com a conquista, ainda viria a superar-se e a participar numa prova de triatlo também no espaço, durante a sua segunda viagem até à EEI. Desta vez foi preciso mais imaginação, já que era impossível ter acesso a uma piscina, acabando por recorrer a um dispositivo para simular o esforço da natação, antes de passar à fase de ciclismo e corrida. Depois da missão de 2021, Williams não pensou que voltaria a regressar ao espaço. “Pensei que já bastava de voar, porque é a vez da próxima geração de pessoas e é assim que deve ser, mas surgiu uma oportunidade única”, afirmou em entrevista ao India Today.