Um legado imenso. Mais do que a morte aos 45 anos, mais do que o vazio que fica na música lusófona, graças ao seu percurso e identidade singulares, o que permanece são os frutos da obra de Sara Tavares, argumentam, em declarações ao Observador, vários músicos que colaboraram com a cantora e compositora ao longo dos anos. E não faltam provas disso.
Facto assumido pela própria: sem Sara Tavares dificilmente hoje haveria uma Aline Frazão compositora, produtora e cantora. “Foi por ver a Sara Tavares a fazer o que ela fazia em cima do palco que acreditei que poderia fazer o mesmo”, conta ao Observador a artista angolana de 35 anos. “Sempre foi uma inspiração muito grande, pela voz incrível que tinha e não só, por ser uma mulher negra com uma guitarra nos braços, em cima do palco, a liderar a sua banda, a cantar as suas músicas. Sempre com uma incrível elegância, doçura e certeza.”
Sara Tavares (1978-2023): o “balancê” inquieto e lutador de uma mulher de voz plena
Sara Tavares deu-se a conhecer ao país em 1993, no concurso televisivo de talentos “Chuva de Estrelas”, que era transmitido na SIC. Tinha apenas 15 anos, era uma miúda tímida de Almada, nascida em Portugal e com raízes cabo-verdianas. Apesar da juventude e da inibição, já mostrava uma maturidade e uma presença fora do vulgar. Acabaria por vencer o programa no ano seguinte. Quase de seguida, brilhou no Festival da Canção com Chamar a Música, tema com letra de Rosa de Lobato Faria e música de João Carlos Mota Oliveira, que a faria alcançar um nobre oitavo lugar na Eurovisão, numa das melhores prestações portuguesas no até à data no concurso europeu.
Embora se tenha tornado conhecida na televisão, e enquanto intérprete, dona de uma grande voz, cedo Sara Tavares demonstraria que aquele era só o princípio, que tinha muito mais para dar, que bastava olhar para dentro para encontrar a sua riqueza, que tão bem alimentou a música que escreveu, gravou e apresentou em palco ao longo da sua carreira.
Numa fase inicial, estava ligada à música negra americana, à soul e ao gospel, até porque também tinha uma forte ligação à música cristã. Lançou em 1996 o seu primeiro álbum, um disco com os Shout!, o grupo de gospel que a acompanhava na altura e que entretanto ganhou vida própria. “Mesmo dentro da música de igreja, ela rompe com a forma de fazer música cristã”, afirma Selma Uamusse, cantora de raízes moçambicanas, que cresceu em Portugal e que também começou por cantar no circuito do gospel, até se ligar às suas origens africanas na sua carreira a solo. “Ela traz o gospel dos EUA, mas canta-o em português, numa apropriação espetacular. Não sei se existe comparação no mundo inteiro, de alguém que tenha feito música gospel como ela fez.”
Uma compositora de coragem
Lançaria em 1999 Mi Ma Bô, um álbum mais maduro e com uma maior ligação às suas raízes. Foi um sucesso comercial, tanto que até foi disco de ouro em Portugal. Mas esse processo de autoconhecimento e de construção de uma identidade só se iria acentuar cada vez mais.
“Houve assim uma tentativa, por parte de produtores e editoras, de ela seguir um determinado caminho dentro da pop. Ela depois percebeu que não se identificava”, resume o baterista e produtor Ivo Costa, que tocou na banda de Sara Tavares nos últimos 14 anos. “Ela teve coragem neste percurso e foi às suas raízes, perceber a história dos pais, a música africana, aquilo que ela sentia. E rodeou-se de grandes mestres da música de Angola, Cabo Verde e Moçambique para construir o Balancê.”
Foi com este álbum, editado em 2005 pela World Connection, que se afirmou perante o mundo. Entrou no circuito da chamada world music e começou a tocar pela Europa e pelos EUA. “Era uma artista do mundo. A aceitação do trabalho dela foi muito grande lá fora, inclusive fora do circuito lusófono. Fez tournées mundiais numa altura em que ninguém fazia”, diz Selma Uamusse.
“Para mim, foi especialmente marcante ver a transição dela”, explica o músico, produtor e DJ Luís Clara Gomes, mais conhecido como Moullinex, que colaborou com Sara Tavares no tema Minina di Céu (2021). “Rejeitou um bocadinho esta lógica de ‘vencedora de concursos’, a cantar música mais genérica, e conseguiu criar o seu caminho, com a sua identidade, incorporando muita da tradição musical cabo-verdiana e olhando para o futuro, cruzando-se com sonoridades mais ou menos eletrónicas, mais ou menos tradicionais… A Sara fez um caminho único, que não existia antes.”
[“Minina di Céu”, ao vivo no “Eléctrico”, da Antena 3″:]
Para Aline Frazão, que chegou a Lisboa para estudar na faculdade no início dos anos 2000, a música de Sara Tavares era como a “banda sonora da cidade” de então. Apesar da ligação à capital portuguesa, a angolana viu o primeiro espetáculo de Sara Tavares em Portalegre, a cidade de umas colegas universitárias. “Lembro-me de estar fascinada e mergulhada em lágrimas ao ver pela primeira vez um espetáculo dela. Foi muito decisivo para eu perceber como aquela música me mexia por dentro e de como eu gostaria de fazer algo assim parecido, que falasse com aquela ancestralidade, com aquelas raízes, mas que ao mesmo tempo tivesse uma leveza e aquela modernidade.”
“Totalmente livre e inteira, convicta”
Ivo Costa tocou bateria nos Shout! e conheceu Sara Tavares quando atuava com muita regularidade num bar em Lisboa, muito frequentado pela comunidade cabo-verdiana. Quando a artista refez a sua banda em 2009 para a tour de Xinti, o álbum do célebre single Ponto de Luz, convidou Ivo Costa para integrar a sua formação ao vivo. “Foi o concretizar de um sonho”, recorda o músico. “Porque já a admirava, era um ídolo e alguém com quem eu me identificava muito. Naquela altura não havia muitas pessoas a fazer aquele estilo de música e depois vim a perceber que as influências e os heróis dela também eram os meus.”
O baterista sublinha que Sara Tavares era “uma pessoa muito informada” depois do trabalho que tinha feito de se aproximar das suas raízes e de as transportar, com todo o “cuidado” e “propriedade”, para a sua música. “Quando privei com ela, era uma pessoa que já tinha essa bagagem e esse universo muito cimentados. Ela passava-nos esse legado da tradição mas nós, na nossa geração, já a misturávamos com outras coisas, com os nossos heróis da música afro-americana, o Stevie Wonder ou o Michael Jackson. A Sara era a fusão disso tudo.”
Houve uma longa pausa entre Xinti e Fitxadu, o álbum que se seguiria, que só seria editado em 2017. A descoberta do diagnóstico de um tumor benigno no cérebro terá sido o principal motivo. Sem poder embarcar em digressões de grande dimensão, apostou em projetos mais pequenos, de âmbito local, e fez inúmeras colaborações, dos Buraka Som Sistema a Nelly Furtado, passando por Richie Campbell.
“O Fitxadu já foi uma transição de uma carreira muito acústica para uma coisa mais eletrónica e contemporânea”, explica Ivo Costa, que produziu o aclamado disco. Para Capicua, rapper que colaborou com Sara Tavares no projeto luso-brasileiro Língua Franca e numa série de concertos, esse álbum, o último do seu trajeto, foi o “ex-libris” da sua “auto-determinação” artística, de estar “totalmente livre e inteira, convicta”.
[“Afrodite” do projeto Língua Franca, com Sara Tavares:]
“Ouvi muito esse disco, é mesmo um marco da música portuguesa. É um álbum de uma grande maturidade, de uma artista que sabia mesmo o que queria fazer e que conseguiu ir às raízes mas com uma perspetiva muito contemporânea, muito atualizada, muito voltada… Não para um revivalismo saudoso ou nostálgico das suas raízes africanas, mas, pelo contrário, uma coisa muito mais voltada para a música que se faz hoje e que se vai fazer no futuro.”
Durante este último ano, Sara Tavares lançou quatro singles, sendo o mais recente Kurtidu. São claramente mais experimentais e eletrónicos, não tão próximos do formato convencional de canção. Por um lado, “assumiu ainda mais essa linguagem” contemporânea que já vinha de Fitxadu, como descreve Ivo Costa, mas por outro tinha a ver com as limitações que a doença lhe impunha, por não poder tocar guitarra nem usar a sua voz como dantes.
“Mas tinha esta necessidade e esta fome de continuar a fazer música. Não sei se iria resultar num álbum, mas pelo menos estava a escoar esta vontade em forma de singles, que também é uma prática cada vez mais comum, e depois no fim logo se via. Nós tínhamos muitas ideias, sobre fazer um disco com suporte de vídeo em que se poderia contar um pouco a história ou que fosse algo muito gráfico, mas aquilo que ela dizia sempre era que olhava para aquelas músicas como um filme, que aquilo poderia ser a banda sonora de um filme. No fundo, ter uma visão mais cinematográfica sobre as músicas, que eram mais sensações, mais quadros.”
Uma artista doce, rigorosa e transparente
Ivo Costa conta como Sara Tavares era “transparente”, realçando que não existia qualquer tipo de persona pública. “Tinha esta aura, de ser uma pessoa muito meiga, muito doce. Estava sempre com uma tranquilidade imensa. Muitas vezes conhecemos alguns ídolos, trabalhamos com eles, e temos algumas desilusões, percebemos que a pessoa não é exatamente assim. Mas a Sara era uma líder que dava espaço a todos, que nos respeitava imenso em cima do palco, que queria que fôssemos artistas como ela e não um artifício atrás dela… Ela proporcionava um crescimento muito grande à sua volta. Continua a ser algo raro”, argumenta.
Quando Sara Tavares estava prestes a ser operada pela segunda vez ao tumor, durante a produção do álbum Fitxadu, teve de gravar as vozes todas do disco. “Ninguém sabia como é que ela iria sair daquela segunda operação. Poderia deixar de falar, de andar… E a forma como ela sempre tratou toda a gente no estúdio, e a maneira como ela gravou aqueles takes de forma irrepreensível, a preocupação que ela tinha com os outros, quando estávamos tão preocupados com ela, isso são coisas que vivi com aquela pessoa que mostram a grandeza de espírito e a humanidade que ela sempre teve e a lutadora que ela foi sempre no meio desta doença.”
Capicua realça a “presença muito particular” da artista. “Era aquela pessoa que te olhava nos olhos, que fazia questão de te fazer sentir que estava ali contigo, e mesmo no palco, com aquela adrenalina toda, com aquela confusão e intensidade, ela fazia questão que aquela troca genuína acontecesse, como se estivéssemos só nós ali no palco. Tinha uma presença muito ancorada no momento, um sexto sentido, com a sua perspicácia e franqueza, mas sempre com a sua doçura.”
Ainda assim, “não deixava de haver uma exigência”. Sara Tavares é descrita por com quem com ela trabalhou e privou como uma pessoa que levava muito a sério o trabalho nos ensaios e em estúdio. “Ela sabia o que queria, comunicava com os músicos — com quem tinha uma grande cumplicidade — e notava-se que tinha rigor, no balanço, na melodia, em várias dimensões”, acrescenta Capicua. “Ela tinha mesmo um compromisso com a música. Com ela não havia atalhos, tínhamos mesmo que trabalhar para o resultado. E mesmo sendo muito rigorosa e preocupada com a qualidade, no palco ela conseguia divertir-se. Dançava com a alegria das crianças.”
[“Fitxadu” ao vivo no “Eléctrico” da Antena 3, com Ivo Costa na bateria:]
Da experiência em estúdio, Moullinex recorda uma cantora que foi co-produtora do tema, que não estava à espera do “instrumental prontíssimo para começar a trabalhar”. “Fomos muito detalhistas, a música teve muitas formas e muitos arranjos diferentes, experimentámos para trás e para a frente com a melodia, com a harmonia, com a instrumentação e a letra, e ela estava tão envolvida no processo quanto eu. Foi muito bom sentir essa dedicação artesanal que a Sara tinha pela música.”
Aline Frazão salienta a “espiritualidade” de Sara Tavares e a “busca interna” que sempre a caracterizou. “Não foi uma estratégia qualquer. Foi tudo feito de um lugar de muita verdade e transparência.” Moullinex recorda uma mulher que, face a um “diagnóstico assustador”, “conseguiu encarar a vida e a música com um sorriso”.
Um ícone consensual que abriu caminho para a representatividade
Sara Tavares foi uma das primeiras artistas negras a conquistar palco e a alcançar inúmeros patamares em Portugal. “Foi um farol gigante para muitos de nós”, defende Selma Uamusse. “Começou, desde muito cedo, em tenra idade, a afirmar-se enquanto artista, que era uma coisa meio inédita alguém com uma carreira sólida tão cedo. Depois, era periférica. Uma pessoa da periferia, de um background social menos privilegiado, mulher, negra, evangélica…”
Aline Frazão acrescenta que, na altura, “era a única mulher negra a ocupar este espaço no panorama musical português e no panorama das músicas do mundo em toda a Europa”. “Não é fácil pertencer à população negra em Portugal. Não é fácil lidar com o racismo estrutural que existe e há 20 ou 30 anos nem se falava tanto disto. E acho que a música dela ecoa tanto junto dos afrodescendentes em Portugal e noutros países porque há ali um reconhecimento mútuo, é uma música que te ajuda a andar para a frente, é uma música que te acompanha de uma maneira muito intensa.”
Por isso mesmo, terá sido fundamental para inspirar músicos de todas as origens, estratos sociais e géneros musicais a trilharem o seu próprio caminho. Na hora da sua morte, o seu impacto na sociedade também se tem manifestado um pouco por todo o lado.
“É muito raro haver pessoas consensuais. E quando o são, normalmente é porque não houve rasgo. E a Sara é das raras pessoas em que encontro uma admiração muito consensual — não só no meio artístico, mas no público também — e não porque se manteve num lugar de conforto onde não chateava ninguém. Pelo contrário, foi sempre um espírito livre. Isso é algo mesmo raro. Hoje vês que está um país de luto, as pessoas estão mesmo muito emocionadas, e são pessoas de todos os meios sociais, de todas as tribos urbanas, é uma coisa mesmo muito rara, há muitos poucos exemplos, de uma artista que foi tão livre e ao mesmo tempo tão consensual”, diz Capicua.
Aline Frazão fala do “nome incontornável da diáspora africana e desta Lisboa que se transformou tanto através da música africana”. “Ela foi uma pioneira. Muito do que aconteceu depois é o resultado do caminho que ela fez de forma tão intuitiva e segura, firme e bela.”
Selma Uamusse atesta esta opinião. “Foi uma inspiração para pessoas como eu, o Dino D’Santiago, o Toty Sa’med e tantos outros.” No fundo, há um antes e um depois de Sara Tavares. “Não gosto muito deste termo, mas se hoje podemos falar de uma ‘Nova Lisboa’, se existe uma banda como os Bateu Matou, se existe o Dino D’Santiago, a Mayra Andrade e muitos outros, acho que todos devemos isso, em grande parte, à Sara Tavares, que abriu caminho a essa sonoridade e a essa cultura, que hoje se tornou mainstream. Chamamos-lhe a Rainha por tudo isto que ela nos deixou”, explica Ivo Costa.
“Esse é o maior legado da Sara Tavares, ter aberto um caminho onde não existia necessariamente um antes. Foi muito forte nessa decisão de cada vez mais incorporar a sua identidade no seu output musical e não obedeceu à lógica fácil de se aproveitar da fama que tinha ganho depois da televisão. Preferiu pôr na frente a sua identidade, a sua música, os originais”, acrescenta Moullinex.
Selma Uamusse frisa ainda como, antes de Sara Tavares, não eram muitas as mulheres a ocupar um espaço desta forma em Portugal, a serem as suas próprias compositoras, a terem estar lugar de protagonismo. “A carreira dela é um ato super político e social. Sem ela erguer bandeiras do que quer que fosse, mas a ser a própria bandeira. Nunca foi uma pessoa de holofotes, porque se calhar o holofote era ela. Mais do que parecer, ela era.”