É de histórias como a de Iris Santana de Souza que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é feita. Num vídeo em direto no Facebook, a jovem de 19 anos contava a sua história de pecado e redenção enquanto, no canto superior direito da imagem, se via o bispo Edir Macedo, fundador daquele que é o maior culto evangélico do Brasil. Filha de um pai alcoólico e de uma mãe desatenta, começou a consumir pornografia aos 11 anos. “Foi aí que eu conheci os vícios”, diz. O que se seguiu foi bem pior, como conta. Namorou com um traficante, começou a consumir drogas e a prostituir-se para pagá-las. A queda em espiral era vertiginosa. Até que a mãe, que entretanto se juntara à IURD, a obrigou a acompanhá-la a um culto. Falou com Deus, dizendo-lhe: “Eu sou uma prostituta, eu sou uma drogada, estou cheia de doença. Não sirvo para nada, meu Deus. Mas eu quero Te conhecer”.
Não era só o bispo Edir Macedo que acompanhava a história de Iris. Além do fundador do império da IURD, estavam vários milhares de internautas a assistir àquele momento. Entre estes, estava Antonio Matos, que no Facebook diz ser comercial numa agência imobiliária. No entanto, mais do que estar importado com o percurso Iris, aquele fiel parecia investido em falar do elefante na sala: as eleições presidenciais brasileiras.
“Queremos saber, bispo, do seu posicionamento sobre a eleição para Presidente”, escreveu nos comentários. De forma simples e lacónica, o bispo Edir Macedo respondeu: “Bolsonaro”. Dificilmente alguma vez uma resposta de uma palavra só aproximou tanto um candidato presidencial do Palácio do Planalto.
Não há grupo demográfico que tenha crescido tanto nas últimas décadas no Brasil como os evangélicos. Segundo os censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos representavam 6,6% da população em 1980. 30 anos depois, no censo de 2010, a percentagem já era de 22,2%. Em 2018, estima-se que a percentagem seja ainda maior.
Por isso, não é de somenos o facto de as sondagens apontarem que, entre todos os grupos demográficos e todas as categorias que os distinguem — género, idade, escolaridade, rendimento, região, etnia e religião — sejam precisamente os evangélicos quem mais apoia Jair Bolsonaro, candidato do Partido Social Liberal (PSL). Na sondagem da Datafolha publicada a 25 de outubro, 59% de evangélicos declararam o seu voto em Bolsonaro e apenas 26% escolhem Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores.
Edir Macedo, da IURD, não foi o único líder de uma igreja evangélica a declarar o apoio a Bolsonaro. Também a Assembleia de Deus, que congrega várias igrejas evangélicas de todo o Brasil, já declarou o seu apoio oficial depois de vários dos seus pastores já o terem feito em nome individual.
Entre estes, destacou-se o pastor Silas Malafaia, da Vitória em Cristo, que chegou a visitar Bolsonaro no hospital Albert Einstein, em São Paulo, quando este recuperava do atentado à faca que o atingiu a 6 de setembro. Sentado ao lado de Bolsonaro no seu quarto de hospital, Malafaia exaltou-se contra a imprensa e acusou o ex-Presidente Lula de ter comandado o atentado ao candidato. Depois, com a mão pousada sobre as costas de Bolsonaro, baixou a cabeça e fez uma oração em seu nome: “Senhor, eu quero pedir uma bênção em favor do Bolsonaro. Dê a ele graça para suportar esses ataques tão hediondos, parciais, vergonhosos que não esperam nem uma pessoa que está em convalescença se recupere. Dê a ele saúde, graça e estrutura psicológica para suportar isso. Peço senhor que lhe dê a direção para que ele possa ser um instrumento de bênção para a nossa nação”.
Para lá do pragmatismo, Bolsonaro e os evangélicos são unha com carne
No Brasil de 2018, a Igreja Evangélica e Bolsonaro são unha com carne. As preocupações de uns são as preocupações do outro: o avanço de maiores direitos para a comunidade LGBT (o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é permitido no Brasil, mas os casais gays já podem adotar crianças desde 2010), o ensino de educação sexual nas salas de aula ou a possibilidade de o aborto vir a ser despenalizado são apenas algumas dos temas em jogo.
Estes temas são tão falados nos cultos das várias igrejas evangélicas como têm sido em Brasília, onde o número de deputados e senadores que se associam a estes grupos religiosos crescem em número e influência. A base de apoio de congressistas evangélicos, oriundos de vários partidos e congregados na Frente Parlamentar Evangélica, cresceu com os resultados da primeira volta de 150 para 180 entre os 513 deputados. Entre estes, nem todos são necessariamente frequentadores de igrejas evangélicas — mas é certo que 82 frequentam as cerimónias evangélicas realizadas nas manhãs de quarta-feira num dos plenários da Câmara dos Deputados, como escreve a Folha de S. Paulo.
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Na política, mas fora do parlamento, o panorama também é de crescimento para os evangélicos. O sobrinho de Edir Macedo, o também bispo da IURD Marcelo Crivella, tornou-se presidente da câmara do Rio de Janeiro após uma campanha fortemente alicerçada em valores evangélicos — tudo isto depois de ter sido senador e também ministro de Dilma Rousseff. E, nestas eleições, o apoio forte da Igreja Evangélica a candidatos a governador até há pouco tempo desconhecidos — Wilson Witzel (Rio de Janeiro) e Romeu Zema (Minas Gerais) são exemplo disso — pode levá-los a chegarem onde querem.
Mas não é só na política que os evangélicos crescem: é também na televisão na sala de estar de cada brasileiro. A Record, a terceira maior cadeia televisiva brasileira, que o bispo Edir Macedo comprou em 1990, é um eficaz veículo para a mensagem da IURD e dos valores que esta defende. No dia 4 de outubro, enquanto a maioria dos candidatos às eleições participavam no último debate antes da ida às urnas para a primeira volta, Bolsonaro preferiu dar uma entrevista à Record a partir de casa.
Desta forma, o crescimento das igrejas evangélicas faz-se em várias frentes: na sociedade, onde pelo menos 22,2% da população é evangélica; no parlamento, onde 35% de congressistas respaldam a Frente Parlamentar Evangélica; nos media, onde a Record ganha cada vez mais relevância; na presidência, onde uma das maiores referências dos evangélicos na política, Bolsonaro, se prepara para envergar a faixa de Presidente.
“Hoje no Brasil existe uma hegemonia de uma direita evangélica”, assegura ao Observador a socióloga Maria das Dores Campos Machado, especialista no estudo das igrejas evangélicas brasileiras e da sua relação com o poder político. O avanço destas igrejas no espectro político, garante a socióloga, faz-se sobretudo através o mesmo setor demográfico que mais frequenta aquelas igrejas: a classe média-baixa, no Brasil conhecida como Classe C.
“É um grupo de tem um nível de escolaridade baixo, recursos muito pequenos, tanto económicos como culturais. Isso fica demonstrado principalmente nas questões de desrespeito da moralidade. Basta passar uma informação a dizer que Haddad é a favor do incesto que se gera logo um pânico moral nesse setor da população”, diz a socióloga.
O apoio das lideranças evangélicas a Bolsonaro não foi automático. Para perceber isso, basta perceber o trajeto do bispo Edir Macedo no que a estas eleições diz respeito. Embora tenha mantido o silêncio até ter respondido ao fiel Antonio Machado naquele vídeo em direto no Facebook, o apoio da IURD nestas eleições parecia estar com Geraldo Alckmin, candidato centrista, do PSDB — afinal, o PRB fazia parte da sua coligação de governo. Só que, com o candidato tucano a não descolar nas sondagens, raramente passando para lá dos 10% e do quarto lugar, Edir Macedo saltou fora e deu o seu apoio a Bolsonaro quando as sondagens já o colocavam como inquestionável vencedor da primeira volta e possível conquistador da vitória na segunda.
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Acresce que, com Bolsonaro, os evangélicos têm um candidato que, mais do que um político num palanque, parece um pastor no altar. Primeiro, porque fala como os mais exuberantes dos pastores. “O Bolsonaro tem um elemento muito forte na liderança pentecostal, que tem uma estética muito dura, agressiva. Fala gesticulando, não titubeia, dá murro na mesa. A postura é a ética dos pastores”, diz Maria das Dores Campos Machado. Depois, porque nunca aborda um problema sem depois enunciar a sua solução — que, por mais simples ou vaga que seja, é ainda assim uma solução. “Tem solução para tudo!”, ironiza a socióloga. “O assustador é quando a solução passa pela violência”, acrescenta. “Tudo é apresentado como se fosse uma guerra, mas sempre numa linguagem bem religiosa, como se se tratasse de uma cruzada contra o mal. Isso faz parte do imaginário religioso.”
Ainda assim, Maria das Dores Campos Machado nega a ideia de que o altar seja uma fonte de doutrinação política só por si. Esta é, apenas, parte de um conjunto de esferas onde a IURD e outras igrejas evangélicas se movem. “Dá a ideia de que o evangélico faz tudo o que o pastor diz, mas não se trata de uma questão de obediência”, sublinha. “O que acontece é que a opinião é formada a partir de uma série de informações que chegam ao eleitor. E as informações que eles recebem são dos media evangélicos. São turbinados a toda a hora, muitas vezes com fake news, e isso tem feito com que se posicionem contra a candidatura do PT.”
Mas nem sempre foi assim. Para esta socióloga, aquilo a que hoje chama da “hegemonia de uma direita evangélica” só foi conseguido através de um “pragmatismo enorme” das lideranças evangélicas, que nos momentos certos souberam unir-se aos parceiros certos. E, durante vários anos, esses parceiros estratégicos tinham as cores que hoje tanto parecem abominar: o vermelho do PT.
PT e IURD: quando Lula e Dilma eram amigos de Edir Macedo
Desde 1989 que a IURD está do lado de quem ganha eleições no Brasil. Nesse ano, em que a dimensão da IURD era consideravelmente menor do que é hoje, o bispo Edir Macedo opôs-se a Lula e ajudou à vitória de Fernando Collor de Mello. Depois, em 1994 alinhou com Fernando Henrique Cardoso — e repetiu a dose em 1998, ajudando a derrotar Lula pela terceira vez consecutiva. Porém, em 2002, o caso mudou de figura.
Até 2002, Lula era o metalúrgico que falava alto contra as elites, que poupava no vestuário aquilo que não poupava em palavras. Mas, em 2002, deu-se uma transformação: do Lula operário fez o “Lulinha Paz & Amor”. Passou a falar devagar, exaltando-se apenas nos momentos-chave, e tratou de estender a mão a todos os que entendeu serem essenciais para o levarem ao poder. Além de o fazer em direção ao empresariado — a chamada do multimilionário José Alencar para seu vice-Presidente foi a maior prova disso — fê-lo também em relação à IURD. “Lula tem de engolir Edir Macedo como parte do seu visual light”, escreveu à altura a Folha de S. Paulo em editorial. O bispo Edir Macedo, ciente de que aquelas seriam muito provavelmente as eleições de Lula, recebeu-o de braços abertos.
“O discurso de Lula em 2002 foi muito forte no que tocava ao combate à corrupção e o apoio da IURD foi com base nisso: na ideia de trazer ética para a política”, diz Maria das Dores Campos Machado. Mas não foi só isso, acrescenta. Foi também o tal “pragmatismo” de que fala: “Os evangélicos sempre tiveram pragmatismo e vontade de estar no poder. E o poder político abre possibilidades”.
A IURD e o Partido Republicano Brasileiro (PRB), o braço político da igreja do bispo Edir Macedo, estiveram ao lado do PT desde a eleição de Lula em 2002 até ao impeachment de Dilma Rousseff, iniciado em 2015 e consumado em 2016, sempre com os votos favoráveis dos evangélicos.
O envolvimento tornou-se maior à medida que a base natural de apoio ao PT se foi tornando menor. Por isso, coube a Dilma Rousseff dar a deputados evangélicos, a maioria do PRB, cargos no seu próprio governo. George Hilton, bispo evangélico e locutor de rádio, foi ministro do Desporto apesar de não ter experiência no ramo. Marcelo Crivella, o sobrinho do bispo Edir Macedo que atualmente é prefeito do Rio de Janeiro, também foi chamado para o segundo governo de Dilma para liderar o Ministério da Pesca e Aquicultura, área na qual também não tinha experiência.
“Isto permitiu-lhes empregar pessoas em vários estados do país e metê-las em postos-chave”, aponta Maria das Dores Campos Machado. A especialista cita também o exemplo de uma iniciativa de combate ao consumo do crack, implementada pelo governo de Dilma Rousseff, que funcionou com a transferência de dinheiros públicos para comunidades terapêuticas privadas. “A questão aqui é que 75% destas são religiosas”, diz. “Algumas são católicas, mas a maioria é evangélica, mesmo. Então foi transferido dinheiro público para ONGs evangélicas sem qualquer transparência sobre a forma como esses fundos são usados e sem controle sobre os procedimentos terapêuticos.”
No dia da queda de Dilma, Bolsonaro foi batizado nas mesmas águas de Jesus
O casamento de conveniência do PT com a IURD e as outros lideranças evangélicas de maior expressão no Brasil terminou no final de 2015, com a votação da aprovação de início do processo de impeachment. Nessa altura, os deputados da Frente Parlamentar Evangélica votaram em bloco a favor da saída de Dilma Rousseff do poder, cortando assim relações com o PT. Naquela votação, cuja sessão foi dinamizada pelo deputado Eduardo Cunha, também ele evangélico, destacou-se entre tantos o deputado Jair Bolsonaro. Depois de fazer várias referências aos militares e a figuras da ditadura militar, inclusive ao torturador de Dilma Rousseff, Bolsonaro concluiu o seu voto pelo “sim” com o mesmo slogan que em 2018 marca a sua campanha: “Por um Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.
Meses depois, quando a votação final do impeachment acontecia no Senado, Bolsonaro viajava até Israel. Católico de educação e casado na Assembleia de Deus com a sua terceira mulher, Bolsonaro foi até àquele país para ser batizado nas águas do Rio Jordão, o mesmo onde São João Batista batizou Jesus Cristo.
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“E aí, Bolsonaro, você acredita que Jesus é o filho de Deus?”, perguntou-lhe o pastor evangélico Everaldo Pereira, presidente do Partido Social Cristão, que à altura também era o partido de Bolsonaro. Com as mãos juntas em forma de prece, o candidato respondeu “sim” a esta e a todas as perguntas que se seguiram naquele rito. Por fim, no mesmo dia em que Dilma Rousseff era destituída, o pastor mergulhou Bolsonaro naquelas águas. Quando o levantou, disse em jeito de brincadeira: “Peso pesado”. Em 2016 era piada, em 2018 é realidade.