Era setembro de 2021. Estávamos meio estacionados no “novo normal”, expressão que recordo com o natural amargo de boca, apenas adoçado pelo inspirado (como sempre) tema de Sérgio Godinho: “No novo normal / Nunca são contas feitas / Acordaste informado / E ignorante te deitas”. Curiosamente, este tema foi editado pouco menos de um mês antes da estreia da primeira temporada de Squid Game. Primeira temporada que parecia ser filha única, até à cena final, em que o jogador 456 muda de ideias, depois ter mudado de cor de cabelo, e não apanha o avião para os States. Contestei de imediato ambas as decisões. Por um lado, preferia rever a primeira temporada a ser presenteada como uma segunda que trouxesse mácula à história. Por outro, aquela cor de cabelo de facto não favorecia nada o nosso distópico herói.
A pandemia foi, sejamos francos, uma excelsa carga de fezes que fertilizou o terreno das plataformas de streaming, normalizando o alambazamento de séries num só dia. Para mim, praticante federada de binge watching, pouco ou nada mudou. Senti-me menos esquisita, devo confessar. Um ganho que aceito de bom grado, até pela reduzida frequência com que se regista. Squid Game aterrou na Netflix de forma discreta, mas varreu a concorrência de forma vigorosa. É até hoje a série mais vista de sempre da Netflix. Cá em casa fez o pleno e agradou a todo o agregado familiar. Fazendo uma analogia à gastronomia sul-coreana, com a qual tenho vindo a criar uma relação fraterna ao longo do últimos anos, a minha reação inicial a Squid Game foi semelhante à que tive quando experimentei kimchi, o tradicional prato de couve fermentada. O primeiro impacto foi “olha que isto é bom!”, para logo a seguir sentir no meu âmago “Porra, que agressivo!”. E por fim “Sim, quero mais, muito obrigada!”. De tal forma que vi a série num dia e repeti a dose na mesma semana, depois de ter arregimentado os meus co-habitantes. Os meus filhos já eram maiores de idade, escusam de chamar a CPCJ.
[o trailer da segunda temporada de “Squid Game”:]
Então e a segunda temporada? Como referido anteriormente, as minhas expectativas eram assim para o fraquinho, tendo colocado em cima da mesa a hipótese de não ver sequer a continuação. Obviamente, como tenho a força de vontade de um balão largado à sua mercê em dia de temporal, levantei-me às nove e picos no dia 26 de dezembro, ratei a mesa de doces ainda por levantar, sentei-me no sofá e ainda não era hora do chá e já tinha lambido os 7 episódios. Devo acrescentar que iniciar esta missão pela manhã, com pouco mais que um galão e meio sonho no bucho, não foi a opção mais sensata, uma vez que aos 2 minutos e 15 do primeiro episódio já estava a ver alguém a enfiar um x-ato na sua própria orelha. E sim, revi previamente a season finale da primeira temporada para relembrar a matéria dada, porque sou uma pessoa com problemas. Este novo capítulo inicia no exato ponto em que o anterior acaba: Seong Gi-hun, o vencedor, tem um flashback ao vislumbrar o “Recrutador” do jogo a mandar lambadas num desgraçado, na plataforma do Metro.
Gi-hun percebe que o jogo não acabou, apesar de Oh Il-nam ter esticado o pernil: lembram-se do velhinho fofinho que tanto nos fez chorar no mítico sexto episódio (9.2 no IMDB) e que afinal era o crápula sanguinário que estava por trás de tudo isto? Posto isto, Gi-hun com sangue nos olhos (metafórica e literalmente, tendo em conta o que viveu ao longo dos seis jogos) monta uma caça ao “Recrutador” no Metropolitano de Seul, com o objetivo de acabar com o jogo de uma vez por todas. Mesmo que isso implique uma decisão com uma probabilidade de sucesso quase tão diminuta como a tomada pelo João Pereira quando aceitou substituir o Amorim: jogar o Squid Game outra vez, passe o pleonasmo. Por seu lado, Jun-ho, o polícia que na temporada anterior levou um balázio do “Líder” de máscara preta, que por acaso era irmão dele, afinal está vivo e é polícia de trânsito. Eu sei, uma desgraça nunca vem só. Largou o ofício de detetive, porque ninguém acreditava na história da ilha onde matavam gente às pazadas, mas semanalmente mete-se dentro de um barco de pesca em busca do local do crime. Fun fact: a Coreia do Sul tem mais de três mil ilhas. E os dois primeiros episódios são muito isto, intercalando com a apresentação de novas personagens, todas elas absolutamente desgraçadas como não podia deixar de ser.
Não querendo fazer spoiler, é claro que o jogador 456 vai voltar a vestir o fatinho de treino verde e branco. Toda a gente percebeu isso. Não sei se todos terão detetado novamente um paralelismo com os recentes eventos protagonizados por João Pereira, a quem desejo toda a sorte do Mundo. Talvez seja o meu sportinguismo a falar mais alto. Mas voltando ao jogo, acho que o camisola 456 considera, a dada altura, que só se consegue combater o sistema quando se está lá dentro e é por isso que se sujeita a voltar a um lugar onde só poderia ter sido mais infeliz se tivesse morrido. Resta saber se o nosso herói é ou não forte o suficiente para não se deixar contaminar pelo sistema, sendo que a vida dele está em jogo. E digamos que se levar um balázio logo na primeira etapa, dificilmente conseguirá mudar grande coisa. Posso também confirmar que continuamos a ter jogadores bonzinhos, jogadores que não prestam para nada e jogadores que parecem ser do melhor que há, mas vai-se a ver e é olho por olho. Muitas das vezes, literalmente. Porque é claro que a cabidela audiovisual continua. O valor que esta gente deve ter gasto em sangue falso é mais alto que muitos subsídios do ICA (mando destas e depois e queixo-me que nem copos de água me oferecem).
Se gostei? Não quero dizer “I told you so!”, mas vou fazê-lo. Sendo que este diálogo metafórico é absolutamente ridículo, porque a única interlocutora sou eu mesma, mas é o que temos. Gostei menos desta segunda temporada e acho que padece de diversos problemas, que talvez tenham sido consequência do sucesso à escala mundial . As interpretações, no geral, continuam muito boas, com o herói Seong Gi-hun e o vilão “O Líder” à cabeça. Mas há uma ou outra nova personagem que vem cumprir o papel de comic relief e isto é introduzido com a delicadeza da boneca dos totós que fuzila gente no “Macaquinho do Chinês”. Enquanto que anteriormente íamos conhecendo as diversas camadas das personagens a pouco e pouco, através de pormenores, comportamentos e reações, agora enfiam-nos a backstory às colheres pela goela abaixo, para justificar o quão desgracadinhos ou pérfidos são os personagens, com falas tão pouco naturais que parecem geradas por IA, como por exemplo “O teu irmão… ele salvou-te a vida ao dar-te um dos rins dele. Mas quando a mulher dele adoeceu, não pude fazer nada por ela.” Ora se a interlocutora está a falar com o próprio do recetor do rim, a não ser que ele tenha desenvolvido algum tipo de amnésia pós-cirúrgica, esta conversa não faz qualquer tipo de sentido.
Há um momento dentro da Arena em que passam nos ecrãs uma espécie de apresentações dos concorrentes, à la Big Brother, para ficar tudo explicadinho e o espectador poder escolher quem é que deve apoiar. O realizador disse numa conferência de imprensa que “Desta vez, há mais personagens e mais jogos intrigantes, todos eles dignos do amor e do apoio dos telespectadores”. É tudo verdade. Mas não era preciso ele fazer claque de uma forma tão descarada. E o fim… O que é que eu posso dizer sem revelar demais? Faz todo o sentido que tenham anunciada a terceira temporada quando fizeram a ronda de promoção da segunda. Para a série ficar mais pendurada, tinham de lhe pôr um nó de forca ao pescoço.
Mas nem tudo é mau. Aliás, continua a ser uma boa série. Só não tão boa como antes. Os cenários continuam a ser de encher o olho, há momentos de tensão inacreditáveis e é interessantemente sádico ver a humanidade das pessoas a esvair-se à velocidade que o porquinho mealheiro enche. Squid Game é uma narrativa distópica onde muita gente morre e mata, sendo que essa competição é lucrativa para alguns e serve de entretenimento para uns poucos. 1 por cento, diria. Na minha opinião, esta série não é sobre como a ganância corrompe, mas sim sobre como o quanto a escassez é desumanizadora numa sociedade desenfreadamente capitalista. E lendo um pouco sobre o estado das coisas na Coreia da Sul, se calhar esta história é menos distópico do seria desejável.
Hwang Dong-hyuk, que não só realizou como escreveu esta história, conta que estava enterrado em dívidas quando terminou o guião, em 2008. E que a premissa lhe passou pela cabeça porque, tendo em conta o estado das suas finanças, era capaz de aceitar o cartão dourado e entrar no jogo. E de lá para cá, as coisas não melhoraram. A Coreia do Sul é uma oligarquia, controlada por meia dúzia de famílias que detêm multinacionais, e não só controlam a economia nacional, como o governo, independentemente de quem estiver a ocupar a cadeira. O percurso educativo tem uma carga horária absurda, porque se os jovens não entrarem numa universidade de topo, o elevador social fica fora de serviço. Os trabalhadores chegam a trabalhar 70 a 80 horas por semana e há um problema de misoginia gravíssimo em que a desigualdade salarial é apenas um dos aspetos: em 2019, 90 por cento das vítimas de crime violento eram mulheres. E é claro que estão a passar por uma crise de habitação e as taxas de natalidade são tão baixas que estão à beira de um colapso populacional. Vou só acrescentar que, em 2021, registaram-se cerca de 25 suicídios por cada 100.000 habitantes.
Toda a gente fez a ponte entre o excelente Parasite e o Squid Game. Eu também me questionei o que raio tinha aquele país para fazer nascer ficções tão brilhantes, povoadas por vidas tão miseráveis. A resposta está no parágrafo acima: é só a dura e triste realidade derramada no ecrã. Squid Game continua a valer a pena, mas talvez o prenúncio de uma audiência global, que não se adivinhava na primeira volta, posso ter deixada com a mão mais pesada do que seria desejável, não deixando espaço para dúvidas. Ainda assim, embora Squid Game tenha perdido a subtileza, não perdeu o propósito.