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Seis filhos de quatro companheiros, várias casas em diferentes bairros de Setúbal e uma paixão por fado. Estes pontos têm uma pessoa em comum: Inês, a mãe da criança de três anos que morreu esta segunda-feira. E são também o resumo de uma teia familiar difícil de decifrar, com as crianças entregues aos avós ao pai e a uma instituição, com várias saídas das diferentes casas onde viveu e com vários episódios de violência doméstica.
Jéssica acabou por ser vítima de uma retaliação por causa do pagamento de uma dívida de bruxaria da mãe, mas a história desta família está marcada por muitas curvas e contra curvas ao longo dos últimos anos. E mesmo antes de Jéssica nascer, a sua família já vivia num contexto de instabilidade.
Há mais ou menos seis anos, Ivone e Vítor sentaram-se nos bancos do Tribunal de Família e Menores de Setúbal para assumirem legalmente a guarda do neto — um dos cinco irmãos de Jéssica. Nesse dia, contam ao Observador, a mãe foi questionada sobre a sua vontade de ficar com o filho e de poder ainda cuidar dele. “Mas disse que não, que preferia que o miúdo ficasse connosco.” A justiça decidiu então entregar o filho de Inês, agora com 10 anos, aos avós paternos, que cuidavam da criança desde que tinha um ano e meio.
Quase a completar 11 anos e a um passo do quinto ano de escolaridade, o rapaz tem agora uma vida bem diferente daquela que conheceu quando nasceu. A avó vai sempre buscá-lo à escola, percorrem uma das ruas da entrada do Bairro da Bela Vista, chegam a casa, ele sai para jogar à bola com os amigos, volta para casa e depois arruma a mala para o treino de futebol. Esta rotina altera-se pouco, a não ser que seja dia de encontro com a mãe. Uma vez por semana, os avós levam o neto a um jardim que fica fora do bairro para que Inês possa estar com o filho.
Às vezes a mãe aparecia, outras vezes não, mesmo tendo confirmado o encontro. Nas semanas em que não acontecia nenhum imprevisto, Jéssica acompanhava a mãe para brincar com o irmão. “O meu telemóvel tem muitas fotos dela, porque o meu neto queria ter sempre fotos da irmã”, conta a avó Ivone.
Álcool, polícia e sal
Jéssica e o neto de Ivone e de Vítor não são filhos do mesmo pai, mas o miúdo de dez anos convivia mais com a irmã que morreu esta segunda-feira do que com os seus dois irmãos mais novos, com quem partilha ambos os pais. Existem então, neste núcleo familiar, três filhos — dois rapazes e uma rapariga —, que vivem agora separados por pouco mais de oito quilómetros mas que, ao que sabe, pouco ou nunca se vêem. Além da criança que vive no bairro da Bela Vista com os avós paternos, os outros dois irmãos estão com a avó materna no bairro de São Gabriel, onde nasceu a mãe, Inês.
O caminho que separou estas três crianças de dez, sete e nove anos é relativamente simples. Os pais viveram alguns anos juntos na zona da Bela Vista, mas a relação traduziu-se em várias entradas e saídas do bairro, e, contam Ivone e Vítor, muitas discussões. Os ex-sogros de Inês dizem também que chegaram a encontrar fotografias do filho cobertas de sal dentro do guarda-roupa. Quando se separaram, nenhum dos pais tinha estabilidade e as crianças foram distribuídas pelos avós de cada uma das partes, o que fez com que os três irmãos não tenham qualquer tipo de ligação neste momento.
Se a mãe tem um dia estipulado para visitar o filho que mora no bairro da Bela Vista, o pai tem semelhantes direitos também para os outros dois filhos. As visitas já ficaram, no entanto, marcadas pela presença da polícia, quando o pai decidiu levar a filha até à fonte luminosa de Setúbal, no centro da cidade. “Já estava com os copos, deu uma palmada na miúda e foi lá a polícia”, contou o avô. Esta foi, aliás, a última vez que os avós paternos viram a neta que não vive com eles, já que a polícia terá levado a criança e o pai para casa e, mais tarde, a avó materna foi buscá-la.
Mas este é só um dos núcleos familiares de Inês, aquele que lhe deu mais filhos, e cuja relação terá durado mais tempo, cerca de quatro anos. Dos primeiros dois, nasceriam os primeiros filhos, de diferentes relações. A mais velha, agora com 16 anos, também não estava com a mãe: viveu primeiro igualmente com a avó materna, mas foi entretanto encaminhada para uma instituição no Porto. Logo depois dessa relação, Inês teve outro relacionamento, do qual nasceu o seu o segundo filho há 14 anos, que vive com o pai em Setúbal e de quem pouco se sabe.
Música e violência doméstica
A mãe de Jéssica já viveu nos bairros de São Gabriel, na Bela Vista, na Fonte Nova e, mais recentemente, na zona junto ao cemitério de Setúbal, mas não há memória que tenha alguma vez trabalhado. Quando a questão se foca na profissão, os vizinhos destes bairros apontam sempre a mesma ocupação: “Cantava fado em cafés e restaurantes de vez em quando”.
Não cantava sempre, fá-lo-ia cada vez menos aliás, mas começou a fazê-lo desde muito nova, conta quem se lembra de a ouvir cantar há tantos anos, que já lhes perdeu a conta: “A mãe levava-a para os restaurantes e ela cantava. Canta muito bem”, contam.
E foi a música que a levou até ao atual companheiro, aquele que quis ‘amarrar’ encomendando a tal bruxaria que custaria a vida à filha mais nova. Os dois conheceram-se num café e pouco tempo depois estavam a viver juntos. Aliás, foi esta mudança de casa que levou o Ministério Público a arquivar o processo que acompanhava a situação de Jéssica, no mês passado, e a considerar que existiam condições para a criança estar com a mãe.
Com pouco mais de um mês de vida, Jéssica já estava sinalizada. Aos três anos, morreu. O que falhou?
A relação anterior de Inês, com o pai de Jéssica, tinha ficado também marcada pelas discussões, pelas saídas de casa e por episódios de violência, à semelhança daquilo que é relatado sobre os seus anteriores relacionamentos. Quando Jéssica tinha apenas um mês e meio, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) sinalizou o seu caso, que acabou por ir parar às mãos do Ministério Público, uma vez que os pais não deram consentimento para que a CPCJ pudesse ajudar. Há dois anos, a justiça entendeu estar perante um caso “de violência entre os progenitores ocorrida na presença da criança”.
Ao contrário daquilo que aconteceu com os seus cinco irmãos, Jéssica ficou sempre com a mãe. E enquanto viveu com os pais, a violência fez parte do seu quotidiano. Em entrevista à CNN, Alexandre, o pai de Jéssica, que estava atualmente na Holanda (veio para o funeral da criança) confirmou que bateu na companheira à frente da filha. Quando o processo no MP começou, em 2020, ficou decidido que a avó materna iria supervisionar as condições em que a menina se encontrava — avó materna que tem já, neste momento, dois netos consigo (a terceira, e mais velha, foi entretanto para a tal instituição no Porto).
Inês, que tem agora 35 anos, ficou então responsável, durante um ano, por garantir que a criança não sofreria. Quando a equipa da Segurança Social fez uma nova avaliação, admitiu, revela o despacho do MP, “as fragilidades associadas ao agregado familiar, designadamente a existência de períodos de rutura e de reconciliação dos pais”. A avó disse contudo que “a situação de violência doméstica entre o casal acalmou”, sublinhando contudo que os desentendimentos aconteciam “devido ao facto de nenhum dos dois trabalhar e consequentemente não haver dinheiro para fazer face às despesas da família”.
O cenário de violência em que esta família vivia terá acabado quando o pai de Jéssica foi trabalhar para fora de Portugal e quando a mãe começou uma nova relação e mudou de casa. No mês passado, o MP considerou que a criança de três anos vivia num apartamento “composto por dois quartos, duas salas, cozinha e duas casas de banho, apresentando-se a habitação organizada e limpa, com boas condições de conforto e de habitabilidade, beneficiando dos serviços básicos essenciais”. Era a casa onde vivia o atual padrasto.
E foi dela que Jéssica foi levada pela mãe para ficar sequestrada cinco dias pela mulher a quem Inês devia dinheiro. E para onde regressou na segunda-feira para sair, cinco horas depois, em estado crítico, para o hospital, onde acabou por morrer.