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A urna, as memórias e as discórdias. O último adeus de Eça de Queiroz a Baião

Depois de um fim de semana de homenagens, a terra que inspirou a obra "A Cidade e as Serras" despediu-se de Eça de Queiroz, entre guarda de honra, documentos históricos e um protesto.

Por estas escadas acima, vários rostos falam do escritor com um sentimento de familiaridade. Um desses casos é António Pinto Bernardo, que recorda a ligação com a filha do autor d’Os Maias — e as peças próprias de garotos. “Fui crescendo por aqui, pela casa de Tormes que à época se dizia a casa de Vila Nova. Quando saíamos das aulas, vínhamos brincar e privávamos muito com a dona Maria Eça de Queiroz. Uma vez pregámos uma partida. Assustámos as criadas — sem ofensa nenhuma que era assim que se chamava na altura — e elas deixaram cair os canecos e os cântaros. E a dona Maria Eça estava ao cimo da escadaria e chamava por nós e dizia: ‘os meninos venham cá’. E nós claro tínhamos de ir, tínhamos de obedecer”, lembra entre risos.

Cinquenta anos depois, Pinto Bernardo regressa ao mesmo espaço por onde passou anos a fio, o mesmo que serviu de cenário a “A Cidade e as Serras”. Desta vez com uma missão diferente. “Enquanto fazia a guarda de honra, muitas vezes senti as pernas a tremer. E tremiam pela emoção que é eu regressar a esta casa. Há meio século, estava bem longe de imaginar que mais tarde, onde brinquei na infância e na adolescência, viria fazer a guarda de  honra ao pai da dona Maria Eça de Queiroz por quem nutria, apesar das traquinices — muito carinho especial”, conta ao Observador.

O último adeus ao escritor decorreu na morada onde também funciona a Fundação Eça de Queiroz, na freguesia de Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião, no Porto. E aconteceu ao som da chuva forte que marcou a agenda de celebrações neste domingo, desde a manhã até ao final do dia — quando os restos mortais do escritor se prepararam para partir daquela localidade rumo a Lisboa, onde esta quarta-feira serão depositados no Panteão Nacional. Sem números oficiais por parte da organização, estima-se que por aqui terão passado mais de uma centena de pessoas.

António Pinto Bernardo

Em Tormes, o momento foi digno de uma passagem retirada da melhor prosa de Eça. No centro, a urna do homenageado, embrulhada na bandeira nacional e contemplada por dois candelabros. Do lado esquerdo, algumas das cartas trocadas entre o escritor e a mulher, Emília de Castro Pamplona Resende, desde o período do noivado até à derradeira correspondência, antes da morte do autor, em agosto de 1900. Do lado direito, alguns objetos com relevo. O livro de esboços do romancista português, menos conhecido por esta faceta, suscitou alguns sorrisos. Nele é possível ver uma auto-caricatura de Eça de Queiroz enquanto cegonha, com detalhes como o famoso binóculo, até ao bigode característico, sem faltar a pena atrás da orelha. Também a reunir vários olhares esteve a coleção de originais dos clássicos que lavrou, incluindo “Os Maias”,  “O Crime do Padre Amaro”, e ainda a obra que descreve e pinta a terra onde viveu — e de onde se despediu este domingo — “A Cidade e as Serras”.

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Eça, o escritor, e ainda, claro, Eça, o diplomata, carreira que esteve em evidência ao longo destes dois dias, como destacou Afonso Reis Cabral, presidente da Fundação Eça de Queiroz. “Temos, pela primeira vez, em Tormes, e eu acho que pela primeira vez assim mostrada a público desta maneira, relatórios diplomáticos originais de Eça de Queiroz sobre a situação dos chineses que chegavam a Havana, via Macau, para uma situação de escravatura. Eça de Queiroz como cônsul em Havana alegou para essa indignidade”, explica ao Observador.

Alguns detalhes dos documentos e objetos expostos para esta ocasião, e ainda um apontamento da confraria

Com diferentes idades, quase todos habitantes de Baião, os visitantes partilharam um sentimento geral de alegria pela lembrança de um escritor que colocou o nome da região nas bocas do mundo. Alberto Teixeira Guerra foi o primeiro a chegar. Confessou não ter durante muitos anos sabido quem era Eça de Queiroz, mas reconhece que o autor é digno desta última viagem, com um destino especial. “Era merecedor de ir para aquele lugar, para o Panteão. Foi o maior romancista português. É a última homenagem que posso prestar a este grande homem: a minha presença cá”, reitera.

Para muitos, a notícia da trasladação foi recebida de braços abertos, mas também houve  discordância na matéria. Um desagrado que levou mesmo um grupo de cidadãos a reunir-se em protesto junto ao cemitério da região, tentando vincar o descontentamento com a decisão — ainda que já estivesse tomada. “Não fui consultado para o efeito, ninguém me perguntou. Só soubemos depois da proposta ter sido aprovada na Assembleia da República, ou seja, depois do facto consumado”, explica ao Observador António Fonseca, antigo presidente da União de Freguesias de Santa Cruz do Douro e São Tomé de Covelas, que garante que já no tempo em que exercia funções nunca foi questionado sobre a trasladação. “Os familiares que puseram a providência cautelar não foram consultados. Atendendo a essas duas referências — à Assembleia da Freguesia e aos familiares — achei que esta questão estava ferida de morte, porque era pouco democrática. Não se entende no regime democrático um comportamento destes”, sublinha.

Mesmo não tendo sido consultada, existiu por parte da freguesia uma votação “contra a trasladação”. Entre as principais razões apontadas pelo antigo presidente da Junta está o respeito a dona Maria da Graça, casada com um neto de Eça. “Nós aqui em Baião conhecemos bem a história. Eça estava em Lisboa já há 90 anos, e a dona Maria da Graça conseguiu juntamente com o apoio de todos os netos vivos por unanimidade que ele viesse para Santa Cruz do Douro, contra a vontade do presidente da Câmara de Lisboa, Dr.Cruz Abecassis — que mostrou interesse em que Eça de Queiroz permanecesse em Lisboa”, conta.

Uma luta que António Fonseca garante que caso ainda fosse viva “ninguém ousaria” travar frente e Maria da Graça. Mas o baionense vai mais longe e assegura que o próprio escritor d’Os Maias não quereria esta mudança. “Também me custa ler a pedra tumular que diz: ‘Aqui jaz José Maria de Eça de Queiroz entre os seus’. Quem lê o livro “A Cidade e as Serras” far-me-há justiça se eu disser que havia nitidamente uma vontade muito grande e uma identificação muito grande da parte do escritor de estar num local que ele entendia como paradisíaco como é Santa Cruz do Douro”, remata.

Para além da “perda cultural”, António Fonseca teme que a retirada dos restos mortais de Eça de Queiroz possam afetar o desenvolvimento na região e trazer alguns constrangimentos à fundação. “Não me parece uma boa atitude da Fundação Eça de Queiroz e da parte do deputado que tomou esta atitude. O interior, pobre como é, em vez de nos trazerem mais-valias, ainda nos levam o pouco que nós temos. É incompreensível”, lamenta.

Do lado da Fundação Eça de Queiroz, de onde partiu a ideia para a trasladação, a perceção é outra. “Este é um momento de festa. Trata-se de um momento que é fúnebre, mas isso não significa que seja triste. É um povo erguido em festa, representado pela Assembleia da República, a homenagear um escritor maior. E nós, como Fundação estamos muito contentes por finalmente ter acontecido”, ressalva Afonso Reis Cabral ao Observador.

Cerca de uma centena de visitantes terão passado por Santa Cruz do Douro e pela morada que serve de cenário à obra "A Cidade e as Serras"

Sobre a manifestação que decorreu este domingo, Afonso Reis Cabral destaca que “qualquer pessoa tem o direito a manifestar-se”, mas que “este é um momento do futuro e não do passado” e sublinha que “a região vê este momento como uma dádiva generosa ao país e não como algo que a prejudica”. Deixa, por isso, de lado as preocupações de que a trasladação possa afetar, de algum modo, a Fundação Eça de Queiroz. “Ninguém, nunca conseguiria retirar Eça de Queiroz de Baião. A sede da Fundação Eça de Queiroz é em Baião. Isso sim marca a presença de Eça de Queiroz. Nós somos uma instituição cultural de relevância nacional. Somos uma casa-museu que guarda todo o espólio de Eça, além das centenas de iniciativas ao longo da nossa história, portanto nada faria com que Tormes ficasse menor”, conclui.

O adeus de Eça de Queiroz a Tormes estendeu-se até ao final da tarde deste domingo. Os restos mortais do escritor partem agora para Lisboa, com cerimónia marcada para a próxima quarta-feira com a presença do Presidente da República, primeiro-ministro e presidente da Assembleia da República. No Panteão, Eça irá juntar-se a autores como Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro e Sophia de Mello Breyener Andresen.

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