Que ninguém duvide: a vista é mesmo “maravilhosa”. De saída do apartamento T2 para onde se mudaram há uns quinze dias, no sexto andar do último prédio da Rua do Miradouro de Alfazina, no extremo norte do Bairro Amarelo, no Monte da Caparica, Rafaela e João, ele carregado de sacos, ela com o mais pequeno de três filhos ao colo, acedem em voltar para trás para mostrar o que veem das janelas, tanto do quarto, como da marquise, que faz ligação entre a sala e a cozinha.
Acabados de chegar da Vidigueira, onde viviam com os pais dele, não têm trabalho nem escola para os miúdos, de 9 meses, 3 e 7 anos. Tirando o sofá preto com os estofos coçados que ocupa praticamente todo o espaço da sala e a mesa de vidro grande onde almoçam e jantam, na tal zona de passagem entre divisões, nem mobília conseguiram ainda comprar. Os rodapés já não estão presos às paredes, o cheiro a canos é intenso e o isolamento das janelas faz adivinhar um inverno tão frio lá dentro como fora de portas — mas que a vista para o Tejo é linda, isso ninguém pode negar.
“E de noite ainda é mais bonito, até no mar se veem aquelas iluminações”, explica Rafaela, 23 anos, enquanto o marido abre mais uma janela sobre o rio, à direita o Cristo-Rei e a Ponte 25 de Abril, à esquerda a zona ribeirinha de Belém, com o Padrão dos Descobrimentos em destaque. “Pagamos 200 euros por mês. Estamos aqui há pouco tempo, mas a vizinhança é boa”, concede a mulher. “Bem melhor do que na Vidigueira, lá é só chaparros”, acrescentará minutos depois o marido.
“Almada tem este privilégio de ter bairros sociais em espaços absolutamente maravilhosos, com uma vista invejável. Qualquer bairro social da margem norte tem inveja”, disse esta segunda-feira Inês de Medeiros, autarca de Almada, durante uma reunião pública de Câmara.
Tivesse a intervenção ficado por aqui e provavelmente não teria estalado a polémica, com uma série de vozes a levantarem-se contra a autarca, eleita pelo PS. O problema foi não ter ficado: “Eu própria iria amanhã viver para o Bairro Amarelo, com aquela vista maravilhosa”, continuou entre sorrisos e alguma falta de noção, acusam os moradores do bairro social, a atriz, realizadora e política.
“Essa história é tudo treta, essa senhora não percebe patavina disto, não é daqui, nunca cá veio. Não tem feito nada, mesmo para os jovens. Esse discurso não tem ponta por onde se lhe pegue”, insurge-se Ricardo Melo, no hall de entrada do mesmo prédio de sete andares, como os demais do bairro, quatro apartamentos por piso.
“Este elevador avariou há meses, as redes de Internet são péssimas, porque há puxadas, e as casas estão todas rebentadas, não têm intervenções há anos. Em março eram para ter vindo arranjar as janelas, que isto no inverno é um frio desgraçado, mas aconteceu isto do Covid e já não vieram”, vai enumerando.
“E olhe que está no melhor prédio do bairro, não é aqui que se vê o que isto é, é ali no meio, para lá da escola”, aponta, através da porta sempre aberta do edifício, onde cada patamar é um misto de quintal e arrecadação ocupado à vontade por cada vizinho — basta percorrer os andares a pé, pelas escadas onde se acumula cotão, pó e lixo, para encontrar plantas, muitas plantas, e vassouras, esfregonas, televisões, armários, tanques, fogareiros, frigoríficos, microondas e eletrodomésticos afins.
Tem 49 anos, mora no Bairro Amarelo há dez, com a mulher e os três filhos, de 22, 14 e 3. “Tinha um café na Cova da Piedade. Depois, em 2008, fali. Pedi insolvência e ajuda ao Estado — e o Estado ajudou-me. Pago 30 e poucos euros de renda, trabalho no Pingo Doce. As pessoas habituam-se a tudo e viver aqui acaba por não ser muito diferente de viver num prédio. Até acho que há mais respeito”, vai contando — tem tempo, ainda não são horas de pegar no carro para ir buscar o filho à escola.
Como sempre, explica logo a seguir, também aqui o respeito anda de mãos dadas com o medo: “Se você tiver um problema com um vizinho que faz barulho, chama a polícia. Aqui as coisas resolvem-se logo — até porque, se chamar alguém a GNR, aparece quatro horas depois e armada até aos dentes, como se isto fosse uma favela. Aqui os vizinhos respeitam-se, eu sei lá se a minha vizinha de baixo não tem uma shotgun em casa? Não vou fazer barulho”.
“Ali no meio do bairro é que há discussões, porrada, é melhor do que ir ao circo”
Depois de três anos fora, os mesmos que permaneceu casado, Pedro, 47 anos, voltou ao Amarelo em 2017, para o T3 onde cresceu com os pais e os dois irmãos, no mesmo prédio da Rua do Miradouro de Alfazina, na zona onde o bairro acaba, começam as hortas e as ruínas de um miradouro sobre o rio resistem, com dois degraus a menos e sem placa de interesse turístico.
Carregado de pão para o pequeno-almoço, em dia de folga do trabalho justamente como motorista de distribuição de uma panificadora, repete a tese do vizinho, enquanto de um dos apartamentos do rés do chão vai ecoando um dos hits de Seu Jorge: “Aqui é mais sossegadinho, ali no meio do bairro é que há discussões, porrada, é melhor do que ir ao circo”. De resto, garante, não encontra qualquer problema no bairro social, que tem escola básica, cafés, mercearias, talho, frutarias, cabeleireiros, um ringue onde os miúdos jogam à bola e autocarro para o centro de Almada — mas ri-se à menção da mudança da presidente da Câmara de Almada para o bairro, também conhecido como do Pica Pau Amarelo.
Ao todo, de acordo com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), que gere o bairro, há 1.058 apartamentos e 68 lojas no Amarelo, a maior parte delas na zona central, na Rua do Moinho. Apesar de ser difícil acreditar na versão dos moradores do prédio com vista — de que o cenário poderia ser ainda pior —, nem é preciso entrar nos prédios para perceber que aqui as condições são um pouco diferentes. Para além da vegetação indomável nos espaços comuns, a que Carlos Alberto Cruz, presidente da Associação de Moradores do bairro já tinha feito referência em entrevista à Rádio Observador — “Ela não é nenhuma pobrezinha para viver aqui no bairro”, foi como se referiu à tirada pouco feliz da presidente da Câmara —, abunda o lixo e as carcaças de carros, um deles completamente carbonizado.
“Temos uma mangueira ali atrás, se não fosse a gente a lavar a rua, para tirar a pulga, a miséria e o cheiro a mijo, não sei como seria. Vou para Almada e não vejo um papel no chão, gostava que os varredores que eles têm lá em baixo também viessem aqui ao bairro”, desabafa Justino Pinto, 48 anos, morador do Amarelo há quatro décadas.
“Estudei aqui, os meus filhos estudaram aqui e os meus netos vão estudar aqui. Este bairro é mais a fama que a farra. Há por aí muita droga, é verdade, mas droga há em todos os bairros, só se mete nela quem quer. Às vezes metem-se ali nos cafés a beber e depois há discussões, mas as pessoas não se andam aí a matar umas às outras”, diz o vendedor ambulante, pai de quatro filhos, entre os 7 e os 22 anos.
Gosta da vizinhança, que garante que é incomparavelmente melhor do que as de outros bairros sociais da margem sul, onde tem familiares a morar. O que não significa que deixe de apontar o dedo à autarquia e ao IHRU: para além da limpeza, faltam reparações aos apartamentos, cujas rendas são ajustadas aos vencimentos de quem lá mora — Carlos Justino paga pouco mais de 30 euros por mês, há quem tenha visto recentemente as rendas aumentarem para 300 ou 400 euros, garante um vizinho que entretanto se juntou à conversa. “O bairro está abandonado! Isto é para os pobres, é um bairro de lata, mas há pessoas aqui a ter de pagar 400 euros por mês”, acusa, exaltado.
“Eles vêm, mas demora. Demora mesmo”, explica Justino, cujo apartamento térreo precisa de portas e janelas novas, que já solicitou ao senhorio IHRU. “Já vieram tirar fotografias há dois anos, mas ainda não fizeram nada. Compreendo que tenham muitas casas, mas também não é assim tão difícil”, concede antes de juntar mais uma reclamação ao rol. “Diga lá à presidenta para virem aqui pôr lombas, isto parece que estão num rally, já foi uma pessoa atropelada, não morreu por pouco, e há tempos mataram aí um pincher”.
Edifícios vandalizados, tiros e corridas de motas
É hora de almoço, do interior do edifício onde Justino mora com a família, exala o cheiro a sopa acabada de fazer e os gritos de um casal de vizinhos, que a porta de casa fechada não consegue abafar. No interior, saltam à vista as caixas de correio vandalizadas, os interruptores arrancados, os vidros partidos e, uma vez mais, as plantas, as velharias e o lixo — há invólucros de barras de cereais e caixas de pastilhas num lance de escadas, luvas de látex e um par de boxers de criança, com elástico do jogo Fortnite, junto a uma janela.
Uma bilha de gás presa com correntes grossas e um cadeado e um apartamento protegido por uma segunda porta, de metal, com uma placa de alarme, fazem intuir que a convivência entre vizinhos pode não ser tão pacífica assim.
Luís, 24 anos, sai de casa ao telemóvel, de capacete debaixo do braço, e pede desculpa: não pode falar, tem de ir trabalhar. Minutos depois, encontramo-lo nas traseiras do prédio, com dois amigos, dentro de um carro com os pneus furados. “Temos bué carros, para vendermos as peças”, explica o mais falador deles, Ricardo. “Tenho 23 anos, moro aqui desde que nasci, foi sempre assim, só vejo é lixo”, acrescenta. “O meu trabalho é este, vendo uns carrinhos e ganho umas comissões”, justifica-se Luís.
Mora no bairro desde sempre, acabou o 9.º ano e, depois disso, ainda frequentou um curso de cozinha, mas acabou por desistir para ajudar a mãe no café da família, também dentro do Amarelo. Como ele, também os amigos não estudaram mais do que o obrigatório por lei, vivem no bairro com os pais, vão fazendo uns biscates e desafiando a polícia, em corridas de mota na “rua morta” mesmo ali ao lado, por onde quase ninguém passa, mas onde mora um agente da PSP.
“De vez em quando vêm aí e levam-nos as motas, ainda no outro dia foi uma CBR 125, uma Honda, mil euros… Estas motas não têm matrícula nem documentos, não podem andar na estrada, nem sequer estar aqui na rua. A bófia aparece, leva-as e nós não podemos fazer nada”, conta Ricardo, aparentemente despreocupado. “Peça à Câmara para pôr aí uma placa no mato a dizer ‘pode-se andar de mota’, para nós podermos fazer as nossas corridas à vontade”, acaba por pedir, para divertimento do grupo de amigos, que entretanto se avolumou.
Nenhum deles se sobressalta quando os gritos de uma vizinha, em trânsito de dentro para fora de um prédio vizinho, se tornam cada vez mais audíveis — “Está possuído! Possuíííííído! Anda cá, possuído!”.
“Isto é todos os dias, de manhã até à noite”, diz Luís. “Às vezes, quando não vem o dinheiro ao fim do mês, dão porrada nos carteiros, e às vezes há tiros, mas não temos medo. Só acho que devia haver mais coisas no bairro, aqui não há nada.”