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Rui Soares

Rui Soares

Abel já viu coisas piores, Marco sente as vacas irrequietas e Lúcia continua a fazer pão. Em S. Jorge, a terra treme — mas eles não saem

O barbeiro Abel ainda se lembra de sismos em que as paredes das casas caíam e, por isso, não está assustado. Mas Marco sente que estes sismos são diferentes e o comportamento das vacas demonstram-no.

É no silêncio da noite que Abel Baltazar mais sente a terra a tremer. Ouve primeiro um som que vem de dentro da ilha e quase ao mesmo tempo sente “aquele sopapo” e nada mexe mais lá em casa. “Dantes, ainda aguentava a terra a tremer um bocado grande. E, às vezes, levantava até o terreno, a gente via o caminho fazer vaga, como uma onda do mar, está a perceber?”. Agora não, conta ao Observador. Agora, “há aquela zoada, dá um esticão e para logo”.

O “dantes” são os vários sismos por que passou este barbeiro de Velas nos seus 79 anos de vida: em 1957, viu de perto o vulcão dos Capelinhos, no Faial, e sete anos depois sentiu São Jorge, a sua ilha, abanar com força. Mas agora tudo é diferente.

“Em 1957, amanhecia aqui e estava tudo preto, nem se podia deixar roupa na linha. A gente via, daqui de São Jorge, a lava a sair para cima.” E, nem uma década depois, o pesadelo voltou: “Aí, eu estava na tropa há um ano, era cozinheiro na Calheta, e ainda apanhei bastante. A zona mais afetada na altura foi Velas, a freguesia dos Rosais [onde nasceu] e aquela zona toda de Santo Amaro [onde vive desde os 7 anos], tudo por ali abaixo. O povo do concelho de Velas foi todo para a Calheta.” Tal como agora.

Abel Baltazar diz que já perdeu a maioria dos clientes, com a saída em massa das pessoas

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Qualquer um desses tempos passados foi “mais assustante”, lembra: “A gente via as paredes das casas caírem, as telhas caírem, as casas a abrirem fendas. Este, por ora, nem uma parede no chão nem fenda nem nada disso. Agora não sei isto o que vai fazer.”

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“Era uma escuridão, os animais estavam todos irrequietos”

Marco Bettencourt, 33 anos, é agricultor e tem os seus animais na freguesia onde vive Abel, Santo Amaro. Apesar de também só por a hipótese de sair como último recurso, os sinais que as vacas lhe têm dado assustam-no, nada está igual nos últimos dias. “Tenho medo, ninguém é super herói, só nos filmes”, começa por dizer, tentando arranjar uma explicação para o que tem sentido: “Não sei se é devido ao pressentimento dos animais ou não. Sei que este domingo foi o dia pior de ordenha de todos os anos em que tenho vacas… era uma escuridão, os animais todos irrequietos.”

O agricultor já não sabia como ler os últimos dois, três anos — “foi a Covid, é a guerra e agora isto…” –, e agora muito menos consegue explicar tudo o que aconteceu este domingo: “Os animais saltaram do pasto para fora, rebentaram com o fio, andavam no caminho.” Marco foi a correr para lá assim que uma pessoa lhe ligou a avisar que as vacas tinham fugido: “Quando cheguei lá, elas não queriam entrar no meu pasto, e era mesmo difícil, porque nem na casa de ordenha elas queriam entrar, é super assustador, e eu tenho medo.”

Marco Bettencourt não quer deixar os seus animais para trás

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E não é que a situação seja nova para ele, já houve sismos sentidos mesmo na zona onde tem os animais. É talvez, por isso, que o medo existe, mas com ele vem uma certeza: “Não vou deixar os animais para trás, serão a última coisa que deixo.”

Velas está vazia, mas a padaria de Urzelina continua a fazer o mesmo

O movimento, que já era menor desde a pandemia, caiu de um dia para o outro naquela ponta de São Jorge e Abel sente isso sempre que fecha a caixa ao fim do dia. Ainda assim, preferiu parar o corte que ia fazer quando começou a falar com o Observador. “Podes esperar um bocadinho?”, perguntou ao segundo cliente do dia (num período normal, já teria atendido seis ou sete pessoas à hora do almoço). Nesta altura, em Velas, os sismos são o mais importante de todos os assuntos e os poucos que decidiram ficar naquela parte da ilha não desligam.

O barbeiro acha que se poderia ter evitado esta fuga em massa, mas “eles [autoridades] andaram aqui com coisas e adiantaram demais” os cenários. E, por isso, acredita, “muitos foram para a Calheta — a vila de Velas não tem ninguém —, outros estão para o Pico, para o Faial, para São Miguel. Saiu tudo daqui para fora, essa gente, não sei porquê, eu por mim não acho razão nenhuma para abandonarmos o nosso lugar”.

Lúcia Azevedo vai continuar, até porque "a empresa não vai fechar"

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Abel mora na Ribeira do Homem, em Santo Amaro, uma das zonas de maior risco neste momento, “mais ainda do que Velas”, onde tem a sua barbearia: “Aqui nunca senti. Aliás, só senti um… ia na rua. Mas muito fraquito”. Poderá até vir a sair, admite, mas só se acontecer alguma coisa grave, como no ano passado, quando a mulher “estava cancerosa” e Abel foi para Lisboa com ela — ficou três meses e conheceu a cidade de uma ponta a outra: “Também sofri muito.” Por enquanto, não vê motivos.

Lúcia Azevedo concorda. A padeira, de 57 anos, trabalha em Urzelina e também não tem sentido nada.

E no trabalho — das 20h às 3h — pouco ou nada mudou: “Continua a fazer-se praticamente o normal, não digo que, aqui ou ali, não se vá reduzindo um bocadinho, mas é o normal”, assegura, enquanto traça o seu limite para sair: “A empresa não vai fechar por causa disto que temos.”

Mas também tem os seus medos: só dorme, por exemplo, quando há luz do dia. “Tenho mais receio de ser durante a noite. Só quando está a ficar claro é que eu durmo, não sei se tenho mais confiança por estar de dia”, conta ao Observador, dizendo que a conforta saber que, ao contrário do passado, estão sempre ali pessoas, cientistas, “a analisar e tudo”. “Das outras vezes não tinha, vinham uns abalos e, de repente, deu aquele forte de 80, eu era nova nessa altura.”

Marco, assim como Diogo Baptista, 27 anos, também não tem conseguido descansar bem à noite. O agricultor confessa que, “desde domingo da semana passada, [dorme] no sofá com a televisão muito baixinha para sentir os quadros a tremer”. E não há dia nenhum que “não dê dois ou três sismos às 6 da manhã”, conta. Nesse momento, apesar de ter o filho no Faial e o resto da família noutro concelho, “o sangue ferve na veia”, há o medo de “a casa cair em cima”.

Diogo Baptista não pensa em sair, mas já tomou medidas: tirou um armário de perto da cama para evitar um acidente durante a noite

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Há a sensação de que o que quer que aí venha será mau — “ou será um grande sismo ou uma erupção” — e alguns amigos de Marco, também agricultores, já lhe disseram que, “se for um vulcão, eles desistem, vão emigrar e pronto”.

Diogo é dono do café Flor Jardim, no centro de Velas, em frente à Câmara Municipal, e já tomou medidas para dormir mais descansado: “Em casa, tento por as coisas mais pesadas mais para baixo. Tenho um armário grande no quarto e puxei para um lado, para que, se acontecer alguma coisa, não caia em cima de mim quando estou a dormir.” Acredita que esta crise sísmica não é algo normal, mas não desiste: “Tenho cinco empregados e não vejo motivo bastante para ir embora.” Também não tem filhos e sabe que isso o ajudou a tomar essa decisão.

O pânico geral, diz, começou quando os governantes começaram a aparecer nos jornais a dizerem “para as pessoas saírem”: “Depois, no outro dia, já não era para saírem. As pessoas vão ouvindo isso, vendo os militares, montagem de camas por precaução… Para quem já está em pânico, ver isso ainda causa mais pânico.” Diogo aponta ainda um culpado pela desinformação: “Há uma vidente no Facebook — muitas pessoas acreditam no que ela diz — que vai dando palpites. Eu nunca vi nenhum direto dela”, remata.

“Estão aí geólogos, vulcanólogos, a equipa do CIVISA e em nenhum momento disseram que era necessário evacuar ou que havia o perigo iminente de uma erupção. A única coisa que pode acontecer é um sismo de maior intensidade, mas a gente vive nos Açores, estamos preparados para isso desde que me lembro. Viver nos Açores é isto”, diz, admitindo que ainda vale a pena manter o café aberto: “Durante o dia, na semana, os bancos e a câmara, pelo menos, estão a trabalhar. Mas não se vê ninguém entrar nos bancos. O café vai tendo movimento, porque há pessoas que ainda têm de vir cá, que são obrigadas. Mas 90% do movimento já não existe e ao fim de semana é pior. São os jornalistas e quem cá ficou.”

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