Aqui está ele. Foram meses e meses de negociações, recuos e volte-faces, mas, finalmente, os negociadores britânicos e europeus chegaram a um texto comum para a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) que conta com o apoio da primeira-ministra britânica, Theresa May. Foram meses de “sangue, suor e lágrimas”, como resume a BBC. Ou, por outras palavras, este acordo foi mesmo arrancado a ferros.
Mas tudo está bem quando acaba bem, não é verdade? Bom, talvez não. Porque este acordo ainda é apenas um acordo a nível técnico e não vale de nada se não tiver força política. E, para isso, May ainda vai ter de ultrapassar uma série de barreiras nesta corrida, cuja meta está bem fixa no dia 29 de março de 2019. Conseguirá manter-se firme até lá e assegurar um acordo para que o Brexit aconteça a bem?
Primeiro obstáculo: o Conselho de Ministros
Depois de assegurar o acordo a nível técnico, May tentou antecipar-se aos seus adversários, para evitar uma repetição do que aconteceu em julho. À altura, alguns dos seus ministros de peso, como Boris Johnson e David Davis, demitiram-se, em protesto contra o plano de Chequers, elaborado pela equipa da primeira-ministra. Deixaria o país com “um estatuto de colónia” da UE, declarou Johnson à altura.
Para prevenir ser apanhada de surpresa, May começou a chamar alguns ministros um a um ao número 10 de Downing Street, na tarde e noite desta terça-feira. O objetivo era o de lhes apresentar as mais de 400 páginas do documento aprovado e fazê-los pronunciar-se ali sobre o conteúdo do acordo. Em caso de discordância — ou de possível demissão — May ficaria logo a saber, em vez de ser surpreendida no Conselho de Ministros marcado para esta quarta-feira. E poderia tentar convencer os seus ministros em tempo recorde. A estratégia, diz a editora de política da BBC Laura Kuensseberg, é apenas uma: “Esperar que os ministros engulam as suas ansiedades e aprovem o plano”.
Só que esta não é uma barreira fácil de ultrapassar nesta corrida. As tensões dentro do Governo são muitas — como deixou a nu Jo Johnson, secretário de Estado dos Transportes (e irmão de Boris Johnson), que se demitiu este sábado. Alguns ministros já deixaram claras algumas das suas reservas, nos últimos dias, como Penny Mordaunt, responsável pela pasta do Desenvolvimento Internacional: “O trabalho do Conselho de Ministros é apresentar algo ao Parlamento que respeite o resultado do referendo”, avisou.
E a presidente da Câmara dos Comuns (que no Reino Unido tem assento no Conselho de Ministros), Andrea Leadsom, foi ainda mais longe. Este domingo, Leadsom reforçou o seu apoio à primeira-ministra, mas pôs o dedo na ferida ao explicar que era necessário definir bem os contornos da tal “rede de segurança”, conhecida como backstop, para impedir que haja uma fronteira rígida entre as duas Irlandas. O Reino Unido, explicou, “não pode ser colocado contra a sua vontade” nesta matéria.
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É claro que qualquer previsão sobre se os ministros se manterão fiéis a May ou não tem potencial para sair furada, até porque não é conhecido o conteúdo do documento que está em cima da mesa. Segundo os media britânicos, a proposta é a de criar um backstop temporário, a nível nacional (e não apenas para as Irlandas), através de um acordo comercial com a UE, mas que tenha “termos específicos” para a Irlanda do Norte. Mas ninguém sabe os pormenores — Que “termos específicos” são esses? Até quando dura o acordo? O Reino Unido tem poder para acabar com o backstop quando quiser? — e, todos sabemos, o diabo está sempre nos detalhes. As negociações ao longo da noite desta terça-feira têm, por isso, potencial para serem bicudas. Haverá, como disse uma fonte à editora de política da BBC, “muito espaço para artimanhas e confusão”.
Segundo obstáculo: a cimeira europeia
Imaginemos que a atleta May consegue ultrapassar o primeiro obstáculo desta corrida e garante que todos os seus ministros assinam por baixo. Ainda assim, não estará tudo resolvido. A bola passa para Bruxelas — e, recorde-se, no passado, os europeus também recusaram o plano de Chequers. A favor de May está o facto de, ao contrário de Chequers, este acordo ter sido negociado com a equipa técnica da Comissão Europeia, o que dá a entender que o mais certo é a UE dar luz verde ao plano.
Se for aprovado pelo Conselho de Ministros e pelos diplomatas europeus (que se reúnem também esta quarta-feira), tudo é posto em marcha para o acordo ser discutido — e provavelmente aprovado — numa cimeira europeia ainda este mês. Uma fonte da UE avançou ao Politico a possibilidade de se realizar a 25 de novembro.
As principais reservas dos europeus, contudo, podem surgir por receios de que este acordo não tenha pernas para andar quando voltar a Londres — já que, aí, terá de ser aprovado pelo Parlamento britânico. “Ainda não estamos lá”, avisou esta terça-feira um porta-voz de Michel Barnier, negociador principal da UE para o Brexit. “Isto já foi verdade uma vez, mas não significa nada” se May não conseguir garantir apoio total dos seus ministros e deputados, relembrou um representante europeu ao Politico, apontando para um acordo técnico conseguido no mês passado que acabou também ele por colapsar.
A favor deste acordo, contudo, está o facto de May estar a dar o corpo às balas por ele, relembra uma fonte europeia ao Guardian: “Ela pôs o seu peso político todo nisto, portanto penso que ela está convencida de que conseguiu um bom acordo”, afirmou. O segundo obstáculo, por isso, deverá ser relativamente fácil de ultrapassar. Mas e depois?
Terceiro obstáculo: os unionistas
Imaginemos que tudo isto corre bem à primeira-ministra britânica. Apoio do Conselho de Ministros? Check. Acordo aprovado em cimeira europeia? Check. Temos acordo final para o Reino Unido sair a bem e para o Brexit se concretizar sem danos de maior? Não exatamente. Isto porque, depois do apoio técnico e político, qualquer acordo tem de ser aprovado na Câmara dos Comuns britânica. E, aqui, May pode não ter a vida nada facilitada.
É claro que tudo depende dos pormenores do acordo, sobretudo no que diz respeito à questão da fronteira na Irlanda, mas os primeiros sinais são de algum ceticismo. A começar pelos aliados irlandeses unionistas, do Partido Unionista Democrático (DUP na sigla original).
O DUP tem deixado claro que qualquer rede de segurança criada tem de ser aplicada a nível nacional, de forma a que não haja distinções entre as regras que se aplicam à Irlanda do Norte e as que se aplicam ao resto do Reino Unido. Os sinais que têm surgido sobre este primeiro acordo mostram que May parece ter tido isso em conta, ao acordar um backstop nacional. Mas também há notícias dos tais “termos específicos” para a Irlanda do Norte, o que deixa o DUP de pé atrás.
“Quaisquer que sejam os acordos, não podem tratar a Irlanda do Norte de forma diferente. Pelo que temos ouvido, não tem sido esse o caso. Em segundo lugar, esses acordos têm de ser temporários. E, terceiro, a possibilidade de abandonar esses acordos tem de estar na mão do Governo britânico, não da UE nem de nenhum órgão independente”, resumiu o porta-voz do partido para o Brexit, Sammy Wilson, esta terça-feira. E, poucas horas depois, o líder parlamentar do partido, Nigel Dodds, deitava ainda mais achas na fogueira: “Com base nos princípios constitucionais, opomo-nos a que as nossas leis sejam feitas por Bruxelas em vez de Westminster ou Belfast”, declarou. “Essa é uma linha vermelha fundamental.”
Quarto obstáculo: os eurocéticos — e os trabalhistas
De acordo com uma fonte parlamentar, se May ultrapassar as duas primeiras barreiras, o acordo poderá mesmo ser votado nos Comuns a 10 de dezembro, ainda antes do Natal. Se a primeira-ministra tiver conseguido garantir o apoio dos aliados unionistas, tem a vida mais facilitada. Mas está longe de ter o problema resolvido, já que pode mesmo vir a enfrentar um motim dentro do seu próprio Partido Conservador e ver o seu acordo chumbado pelos seus deputados.
O tiro de partida já foi dado pelos mais eurocéticos: Jacob Rees-Mogg e Boris Johnson. Os dois apressaram-se a reagir esta terça-feira, deixando claro que não apoiam o acordo que tem sido falado, muito embora desconheçam ainda os pormenores. Johnson repetiu as ideias de que este acordo deixa o Reino Unido como um “Estado vassalo” perante Bruxelas, ao ter de aplicar as regras do mercado comum aduaneiro, mesmo que de forma temporária. “Espero que o Conselho de Ministros o bloqueie. Se não o fizer, o Parlamento irá bloqueá-lo”, prometeu Rees-Mogg.
A alternativa, explicou o deputado, é apenas uma: “O acordo só passará se tiver o apoio total do Partido Trabalhista.” É claro que tudo depende, por um lado, de quantos tories seguem o repto de Rees-Mogg e deitam abaixo o acordo conseguido por May. E, por outro, mesmo que sejam demasiados para o gosto da primeira-ministra, está longe de ser óbvio que consegue virar-se para o outro lado e convencer o Labour de Jeremy Corbyn.
“Vamos olhar para os detalhes do que foi acordado quando estiverem disponíveis, mas, pelo que sabemos da forma caótica como estas negociações foram geridas, é pouco provável que este seja um bom acordo para o país”, avisou logo o líder trabalhista esta terça-feira, relembrando que “se o acordo não cumprir as nossas exigências, então votaremos contra ele”.
A probabilidade de Corbyn querer estender a mão a May é, por isso, muito baixa — e, portanto, o mais certo é que ela tente antes dar tudo por tudo para convencer os eurocéticos do Partido Conservador. Este obstáculo, o último de todos, representará a batalha da sua vida política. E, caso saia derrotada, o Reino Unido estará em terra de ninguém. Saída sem acordo, novo referendo ao Brexit, novas eleições? Tudo isto são opções em cima da mesa. Nesta corrida contra o tempo que é o Brexit, vale mesmo tudo.