Índice
Índice
O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) está num clima de paz com a procuradora-geral da República. Fala em “sinais positivos” da procuradora-geral mas exige que a líder do Ministério Público (MP) esteja “presente”, seja “o rosto” e tenha “uma visão estratégica”, de forma a que a magistratura se “adapte às exigência dos momento”.
Adão Carvalho, o seu presidente, defende uma avaliação interna do que tem corrido bem e mal na gestão que o MP tem feito dos grandes processos da criminalidade económico-financeira e diz mesmo que é necessário uma “auto-crítica dos diferentes departamentos do MP” para definir essa estratégia para o futuro.
Em entrevista ao Observador por ocasião do XII Congresso do SMMP, que decorrerá em Vilamoura entre os dias 25 e 26 de março, o procurador da República concorda com as duras críticas que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça teceu ao Parlamento pelas alterações de última hora à Estratégia Nacional Contra a Corrupção, diz que o maior problema é o alargamento dos impedimentos a que os juízes estão agora sujeitos e acrescenta que a Justiça penal perderá “tempo e qualidade”.
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça censurou de forma dura o poder político na semana passada, ao criticar a criação de novos “obstáculos à celeridade e eficácia da Justiça” com as alterações à última hora que foram feitas pelos partidos no Parlamento à Estratégia Nacional Contra a Corrupção. Concorda com as críticas do conselheiro Henrique Araújo?
A pressa nunca é boa conselheira. O stress final no Parlamento para a aprovar a Estratégia Contra a Corrupção levou os dois principais partidos a cometerem erros e a não ouvirem…
Está a referir-se ao PS e ao PSD?
Sim. O PS e o PSD acordaram a versão final das propostas que estão aqui em causa sem ouvirem ninguém — nem os magistrados, nem os advogados — sobre os aspetos inovadores, com as consequências que o presidente do Supremo assinalou.
As propostas foram aprovadas por unanimidade. Por exemplo, o alargamento dos recursos ordinários para o STJ e o fim da limitação de testemunhas serão os maiores danos?
Não serão os principais obstáculos. O que vai acontecer é que será permitido que bagatelas penais possam ter recurso para o Supremo. O único requisito para que esse recurso seja possível é que exista uma alteração da primeira decisão judicial em sede de segunda instância [Tribunal da Relação]. Ou seja, se a Relação mudar a decisão da primeira instância e aplicar uma pena de multa, por exemplo, será permitido o recurso para o STJ.
Que antes não era admitido?
Sim. Se, por um lado, se se quer ir ao encontro das exigências do Tribunal Constitucional de garantir um duplo recurso — que só pode ser mudado se houver uma condenação apenas em segunda instância. Por outro lado, tem de haver um equilíbrio entre as garantias de defesa dos arguidos e a necessidade de uma justiça eficiente e célere. Não se justifica que seja permitido o recurso de batelas penais para o Supremo, até porque a natureza do STJ é analisar questões de direito, e não matérias de facto.
Havia informações de que a autoria dessas ideias era do PSD.
Sim. Da proposta de lei do Governo não constavam estas propostas e outras, como por exemplo a alteração da responsabilidade criminal das pessoas coletivas. Antes uma empresa poderia ser acusada, caso se provasse que um seu representante tinha praticado uma ação ou omissão no sentido de prejudicar a empresa. Agora, será a sociedade que terá de escolher a pessoa que a representa — e que não pode ser quem já é arguido. Se não indicar alguém, terá de ser o tribunal a escolher. Provavelmente será escolhido alguém exterior à empresa. Agora imagine o tempo que isto demorará a resolver.
Dizia há pouco que havia outros obstáculos mais graves. Qual é o mais grave?
O mais flagrante é a alteração relativa aos impedimentos dos juízes. Além de tornar difícil a gestão dos recursos humanos (porque os impedimentos vão passar a ser em larga escala), não encontra, por outro lado, qualquer fundamentação legal — mesmo alguns professores de direito têm dificuldade em encontrar uma explicação. Por exemplo, um juiz de instrução que tenha alterado uma medida de coação de um arguido na fase de inquérito ou que tenha tomado uma simples decisão (admitir um recurso, alterar a urgência de determinado recurso, etc.) como juiz de turno, já não participa na instrução criminal ou no julgamento.
Temos um número suficiente de juízes para fazer a estas alterações?
Não, não temos. Isso vai abrigar a utilizar juízes de tribunais criminais locais, sendo que estes depois também ficarão impedidos. Nas comarcas mais pequenas, em que apenas há um juiz de instrução criminal, será necessário ir buscar juízes aos cíveis ou a outra jurisdição. Ou seja, os julgamentos poderão a ser liderados por magistrados que não são especializados.
Perdemos tempo e qualidade judicial.
Exato. E que não se diga que vamos fazer uma interpretação de acordo com o espírito da lei. Que juiz vai arriscar isso, sabendo que mais tarde o processo pode ser todo anulado por desrespeito das regras dos impedimentos?
“A Justiça trata de igual forma o processo mais simples e o processo mais complexo”
Tendo em conta que a justiça ficará ainda mais lenta, será que há uma falta de sensibilidade do poder político para perceber os perigos da discrepância que existe no tempo médio de resolução de um processo de criminalidade económico-financeira (mais de 10 anos) e um processo de criminalidade comum (cerca de um ano)?
Sem dúvida. O nosso processo penal trata de igual forma o processo mais simples (de injúrias e ofensas, por exemplo) e o processo mais complexo da área económico-financeira, com dezenas de volumes. Um sistema assim, de facto, não permite celeridade e eficácia. O que faria sentido é que se investisse mais na resolução de casos mais complexos.
Faria sentido a criação de um tribunal especializado de julgamento para os casos mais complexos?
Sim, embora entenda que não é uma prioridade. Seria importante porque se poderia reunir nesse novo tribunal um conjunto de de serviços de apoio, nomeadamente de consultores técnicos, para ajudar os juízes a ficarem mais bem informados sobre questões técnicas complexas que marcam muitos desses casos. Além disso, permitiria uma maior especialização da Justiça para combater uma criminalidade muito específica em que, muitas vezes, os arguidos são os maiores especialistas do país nas respetivas áreas.
O modelo de três juízes isolados e um, no máximo dois procuradores a tentarem entenderem factos altamente complexos não funciona neste tipo de criminalidade. Funciona apenas para a criminalidade comum. É preciso que exista um rasgo e uma estratégia até do próprio Ministério Público (MP) para se preparar para estes grandes casos. Se queremos uma justiça igual para todos, temos de preparar o MP para dar uma resposta com qualidade e eficiência.
O MP tem a sua quota-parte de responsabilidades nos atrasos dos grandes casos do crime económico, com investigações muito demoradas. O MP tem de ser mais pragmático e deduzir acusações para o processo penal que existe — e não para aquele que gostaria que existisse?
É uma questão de estratégia. O MP não estava bem preparado para combater a grande criminalidade económico-financeira…
Agora já tem experiência ao fim de quase 20 anos consecutivos a combater este tipo de casos, até com algum sucesso.
Precisamente. É preciso agora avaliar o que aconteceu, como é que os grandes casos foram tratados. Independentemente do sucesso e insucesso, era importante que existisse uma análise profunda dos casos concretos que já transitaram em julgado entre os colegas que acompanham a investigação e os colegas que estão na fase seguinte [instrução, julgamento e recursos] para retirar daí ilações para o futuro.
Isso é um trabalho da Procuradoria-Geral da República?
Isso é um trabalho para implementar a partir de cima, do topo da hierarquia. Mas há aqui um trabalho de auto-crítica dos diferentes departamentos do MP que tem de ser feito. Para quê? Para se preparar uma estratégia de como estes processos podem ser trabalhados pelo futuro. E porquê? O nosso sistema impõe que determinados cidadãos que tenham praticado um conjunto de crimes têm de ser julgados por todos os crimes ao mesmo tempo.
Mas nós sabemos que isso faz com que se não faça justiça em tempo razoável. Por isso, temos de fazer opções em termos de estratégia processual, definindo concretamente o que é o objeto central do processo e tratando à parte aquilo que não é prioritário. Sem prejuízo, claro, do cumprimento dos critérios de legalidade.
“Se o líder não tiver uma visão estratégica, o MP não se adapta às exigências do momento”
Há pouco falou da necessidade da liderança do MP estabelecer uma estratégia para combater o crime económico. A procuradora-geral da República (PGR) tem contribuído para essa mudança de cultura? Lucília Gago tem sido ultra-discreta.
Os últimos tempos têm dados sinais mais positivos. Mas, em vez de analisar o passado, prefiro falar do futuro. Um PGR tem de definir uma estratégia, tem de estar presente e tem de ser o rosto do MP. O procurador-geral é o principal responsável do MP e tem de ter uma visão para a nossa magistratura.
Depreende-se das suas palavras que Lucília Gago não foi nada disso até agora.
Preferia não fazer esse tipo de considerações. Precisa mesmo de ter uma visão estratégica. O MP depende do procurador-geral nesse sentido. Se o líder não tiver uma estratégia, o MP não se consegue adaptar às exigências do momento e isso é essencial para que consigamos prestar um serviço de qualidade aos cidadãos.
O primeiro-ministro escolheu Catarina Sarmento e Castro, atual secretária de Estado dos Antigos Combatentes, para ministra da Justiça. Trata-se de uma professora de Direito, antiga juíza do Tribunal Constitucional. Que comentário faz a esta escolha?
O sindicato desconhece o conhecimento que a recém indigitada ministra da Justiça tem da área e igualmente as razões que estiveram subjacentes à sua escolha. Entendemos que, no imediato, deve tomar um profundo conhecimento do setor e efetuar uma avaliação dos problemas, sendo essencial para isso ouvir os representantes da Justiça. Deve trabalhar com estes agentes no sentido de encontrar as reformas adequadas.
O setor da Justiça teve o privilégio de ter apenas duas ministras entre 2011 e 2022. A ministra Francisca van Dunem não ‘rasgou o trabalho’ que a ministra Paula Teixeira da Cruz, com a exceção de alguns recuos no mapa judiciário. Essa estabilidade beneficiou o setor?
Sim. A pior coisa que pode acontecer é que cada governo promova uma reforma total sempre que chega. Isso não aconteceu com a Justiça.
Tem algum dogma que o ministro da Justiça tenha de ser alguém das profissões jurídicas ou alguém da área do Direito? Como a Justiça tem muitos problemas de gestão e de organização, há quem diga que precisa mais de um gestor do que um jurista.
Não vejo nenhum problema se for alguém que saiba ouvir as pessoas da Justiça e que esteja rodeado de quem conhece o setor. A realidade da Justiça é muito particular e exige um conhecimento profundo mas não vejo nenhum obstáculo por si só que impeça a nomeação de um não jurista.
“Há que quebrar da excessiva dependência da máquina do Estado por parte da Justiça administrativa.
Os tribunais administrativos têm um tempo médio de resolução de 927 dias na primeira instância, 1015 dias na segunda instância e 363 dias no Supremo. Estes dados são uma autêntica mancha na Justiça portuguesa. Como é que se resolve este problema?
Com um grande investimento em mais magistrados, em mais funcionários e com maior qualidade. Garantindo também alguma independência em relação à máquina administrativa. Ou seja, os tribunais têm de depender dos seus próprios serviços e não da máquina da administração — que é quem está do outro lado e quem é demandado nos processos administrativos. Isso não faz sentido.
Há também o problema do sistema informático verdadeiramente anacrónico, que é preciso mudar. E também temos de ter formas simplificadas de processo para determinadas situações para agilizar a justiça administrativa. Finalmente, há um grande lobby da arbitragem. Se calhar por isso é que os governos não têm grande vontade de lutar contra este lobby e apostar numa melhoria da resposta dos tribunais administrativo-fiscais.
O presidente do Supremo defende que a jurisdição administrativo-fiscal deveria deixar de ser autónoma, sendo incorporada na jurisdição comum. Assim, seria extinto o Supremo Tribunal Administrativo e o conselho de gestão e disciplinar próprio. Concorda com essa fusão?
Essa não é a questão essencial porque os problemas passariam de uma jurisdição autónoma para os tribunais comuns. A mudança essencial passa por cortar com a excessiva dependência da máquina do Estado. E aqui, como o Estado é a entidade demandada, não tem muito interesse em que as coisas seja céleres. Quanto mais tempo demorarem os processos, mais o Estado consegue, no caso dos processos tributários, manter do seu lado o dinheiro.
O PSD chegou a propor, na sua reforma da Justiça, a eliminação da obrigatoriedade de prestar uma caução para contestar execuções fiscais. A eliminação dessa obrigatoriedade faz sentido? Devemos reforçar os direitos do contribuintes em sede de justiça tributária?
Compreendo que impugnar uma determinada decisão nos tribunais administrativos e fiscais seja um esforço incomportável para muitos contribuintes. Contudo, não penso que essa seja uma forma de resolver o problema. O que temos é de dotar a máquina administrativa e fiscal de maior agilidade. Sem isso, vamos continuar a problemas de celeridade e, em vez de ser o Estado a ficar com o dinheiro, ficará o contribuinte, sendo que, no caso de a impugnação vir a ser declarada improcedente mais tarde, poderemos ter problemas em executar esse mesmo contribuinte para que o Estado consiga arrecadar o imposto devido.
Muitos cidadãos comuns não recorrem das decisões do Fisco ou porque não querem ter chatices com o Estado ou porque simplesmente não têm dinheiro para depositarem a tal caução obrigatória para puderem reclamar. Isso é uma forte restrição no acesso à Justiça?
Essa caução corresponderá ao valor do imposto que está no centro do litígio e que o Estado considera devido. Se o conflito for resolvido de forma célere e útil, não haverá uma grande prejuízo para o contribuinte. A manter-se tudo como está, há, de facto, um grande desequilíbrio porque os contribuintes (nomeadamente empresas) ficam muito sem tempo sem o acesso a fundos que, às vezes, são fundamentais para a sua subsistência.
Outra questão é o acesso aos tribunais administrativos e fiscais e isso tem a ver com o apoio judiciário. Este apoio é hoje em dia apenas e só para os indigentes. Vale a pena refletir se não será melhor alargamos os mecanismos do apoio judiciário.
“Devemos pensar no alargamento do apoio judiciário à classe média”
Pegando nesse tema das custas. Recentemente, o presidente da Associação Sindical dos Juízes referiu o valor das custas de um determinado recurso do Tribunal Constitucional (TC): cerca de 20 mil euros. Um valor incomportável para a esmagadora maioria dos portugueses. Temos de reformar as fórmulas de cálculo das das taxas de justiça?
Temos de começar por compreender o valor das custas no TC. Em primeiro lugar, serve para desincentivar o uso abusivo do recurso para o Constitucional. Por outro lado, os tribunais comuns também conhecem matérias constitucionais. Logo, tem de se esgotar todas as instâncias antes de chegarmos ao patamar do Constitucional.
É verdade, contudo, que este sistema acaba por beneficiar quem tem poder económico. Quem tem esse poder pode interpor recursos atrás de recursos, reclamação atrás de reclamação porque não tem a preocupação com o valor das custas. Essa matéria, contudo, tem ser tratada ao nível do apoio judiciário. Eventualmente podemos pensar num sistema em que o acesso ao apoio também dependa da complexidade do processo e da pena aplicável.
De uma forma simples, defende o alargamento do apoio judiciário para a classe média, é isso?
Sim. Temos de permitir que um cidadão médio também possa beneficiar do apoio judiciário em determinadas circunstâncias.
O sindicato tem defendido a criação de um corpo próprio de funcionários para o Ministério Público. Quais os fundamentos para essa proposta?
Em primeiro lugar, temos funções e um trabalho claramente distinto dos magistrados judiciais. Por outro lado, temos um serviço de proximidade com os cidadãos que inclui o apoio judiciário. Esse atendimento ao público faz com que o perfil dos funcionários tenha de ser diferente. Por exemplo, na área laboral, os serviços do MP lidam com cidadãos que estão em situações aflitivas: desempregados e até com créditos laborais em atraso. É importante que os funcionários tenham uma formação específica para saber lidar com isso.
A ação penal acaba por ser a que tem maior diferença.
Sim. No inquérito, o funcionário tem quase competências de um órgão de polícia criminal: faz inquirições, interrogatórios ou diligências de prova. Por exemplo, muitas vezes acontece que é transferido um funcionário judicial que não tem a mínima preparação fazer este serviço. Também acontece o inverso: um funcionário que já está no MP há muito tempo, é obrigado a ir para um tribunal para efeitos de promoção ou por conveniência de serviço — e perde-se o know-how.
Em suma, a nossa proposta tem um objetivo central: aumentar a qualidade do serviço prestado pelo MP, dotando-o de uma carreira própria de funcionários com qualidade, e com alguma autonomia, de forma a que o MP possa assumir efetivamente a direção do inquérito.
Como é que se financiaria a criação desse corpo de funcionários?
O orçamento do Ministério da Justiça terá necessariamente de ser aumentado para termos mais funcionários judiciais em geral porque estes são muito poucos. Esta ideia passaria pela separação da carreira entre os funcionários judiciais e os funcionários do MP. Aqueles que estão no MP teriam a possibilidade de optar e garantir alguma estabilidade na sua carreira. É que hoje em dia os funcionários que estão no MP só conseguem progredir na carreira para terem melhores condições se, em determinado ponto do seu percurso, pedirem a transferência para os tribunais. O que faz com que percamos os nossos melhores funcionários.
Para terminar, pedia-lhe um comentário à abertura do processo judicial por parte do Conselho Superior da Magistratura ao juiz Ivo Rosa.
Cabe ao Conselho, e a alguém que se sinta lesado, avaliar se há matéria disciplinar para atuar. Se o Conselho entendeu que este era o momento, tenho que respeitar. Sei que tomará a decisão que for a mais correta.