Numa altura em que ninguém estranha que um T0 com 60 metros quadrados em Campolide, Lisboa, custe mil euros por mês, e em que os imóveis disponíveis no mercado de arrendamento são tão poucos, tão caros e, em muitos casos, tão pouco habitáveis, o que não falta é quem comece a achar que um utensílio higiénico inventado há pelo menos três milénios é um luxo só acessível aos mais privilegiados.
É o que diz a descrição do apartamento referido no início deste artigo, a escassos metros da Praça de Espanha, mobilado, com ar condicionado, lugar de garagem, aquecedor de toalhas e, luxo dos luxos, banheira. E foi o que constatou L., de 23 anos, que em 2015 começou à procura de casa para arrendar em Lisboa — para poder finalmente sair do quarto “minúsculo” que alugava por 250 euros/mês, sem recibo, numa casa sem sala de estar na zona de Benfica, onde morava há dois anos com três desconhecidos.
“Demorei um ano e meio até encontrar casa, procurei em todas as plataformas que possa imaginar. A mais barata que vi foi um T0 de 25 metros quadrados perto da Ajuda”, recorda ao Observador. A renda era de 400 euros. Detalhe: a casa, um rés do chão com sala e kitchenette, não tinha base de duche, só um orifício no chão de cimento irregular a fazer as vezes de ralo, nem sanita. “No anúncio dizia que a pessoa que fosse para lá é que tinha de a instalar. 400 euros por aquela porcaria, imagine!”
Desde 2014, altura em que o mercado de arrendamento na capital começou a recuperar, depois das quebras registadas durante os anos da crise, o Índice de Rendas Residenciais já subiu 44% em Lisboa (e 14% no Porto), segundo dados da Confidencial Imobiliário, citados em outubro passado pela Sábado — e a tendência para 2018 é para que a escalada continue, em média 5% em todo o país. Também em Lisboa, o preço médio por quarto estacionou nos 355 euros/mês, informou recentemente a Uniplaces, plataforma de alojamento universitário presente em 36 cidades de 6 países. E, também desde 2014, em Portugal, o número de estabelecimentos de alojamento local registados passou de 13 mil para mais de 55 mil — 10.611 deles ficam em Lisboa.
O crescimento tão rápido que no passado dia 5 de janeiro, na Assembleia da República, foram discutidos quatro projetos de alteração à lei atualmente em vigor — o mais polémico de todos foi o proposto pelo PS, que quer fazer depender do aval dos vizinhos as licenças para novas unidades de alojamento local. Sem consenso, os deputados acabaram por passar as propostas à comissão de Ambiente, Descentralização, Poder Local e Habitação, onde deverão ser avaliadas durante os próximos 60 dias.
Dado o panorama, o que começa a ser não apenas estranho, mas mesmo raro, são histórias de arrendamentos a preços equilibrados. Mas que elas existem, existem. E L., que pode até ter passado pela experiêcncia surreal de ver uma casa sem banheira nem sanita, mas que desde outubro de 2016 vive num T3 mobilado na zona do Alto de São João por 350 euros por mês (sem recibos, daí a inicial em vez do nome completo), é apenas uma das pessoas que contaram a sua história ao Observador.
Para além da renda baixa, todas têm uma outra coisa em comum: nenhuma conseguiu o arrendamento pelos trâmites normais — é que as bagatelas ainda existem, mas raramente chegam ao mercado. Mais: poucas se sentem à vontade para dar a cara a falar sobre o assunto. Por um lado, assumem, têm receio de que os senhorios se apercebam de que estão a cobrar abaixo dos valores de mercado e resolvam atualizar as rendas. Por outro, não querem suscitar a inveja de quem não teve a mesma sorte: “Pode pôr um olhinho para afastar o mau olhado no artigo?”, foi a primeira coisa que uma delas disse assim que atendeu o telefone.
A renda custa 350 euros, mas um dos quartos fica para a mãe do senhorio
No caso de L. foi pura sorte: pediu ajuda a uma amiga que arrendou um T2 “mesmo impecável” em Xabregas por 500 euros, a amiga falou com a senhoria, que não tinha mais apartamentos disponíveis, mas um dia reparou que os inquilinos que moravam na porta em frente à sua, na zona do Alto de São João, estavam a fazer mudanças. “Falou com o senhorio e pôs-me em contacto com ele. Estava a pedir 420 euros, mas eu consegui baixar para os 350! Disse-lhe que estava a estudar, que o meu trabalho não pagava muito e que era mais ou menos sazonal, que era uma pessoa modesta e que lhe ia pagar sempre certinho, que não precisava de recibo se ele preferisse assim, e ele aceitou.”
O único senão do contrato, que segundo L. nem é assim tão mau quanto isso: um dos três quartos da casa está ocupado com as tralhas da mãe do senhorio, que entretanto se reformou e foi morar para Grândola, e só pode ser utilizado por ela. “Avisou-me logo que podia acontecer que a mãe tivesse de vir a Lisboa e de ficar cá em casa. O ano passado ficou cá duas vezes, esteve a fazer uns tratamentos no hospital, mas quase nem a via, ela ia à cozinha, tratava de fazer o almoço ou o jantar e voltava para o quarto. É muito querida, no final ainda fez questão de me dar 50 euros para ajudar nas contas”, conta a videógrafa e fotógrafa freelancer. Que garante que as cerejas e as travessas de arroz-doce que a vizinha da frente (a senhoria da amiga) lhe leva de vez em quando, a juntar à vista que tem sobre o Tejo, naquele edifício com elevador e porteira, são prós suficientes para anular o contra do quarto fechado.
A procura de Inês Ferreira, 32 anos, foi ainda mais demorada: ao todo, antes de arrendar o T1 com varanda onde hoje mora, em Alvalade, entre a Avenida de Roma e a dos Estados Unidos da América, visitou 20 casas. Quase assinou contrato numa delas, um T1 de 75 metros quadrados por 475 euros, em Sete Rios; chegou mesmo a mudar-se para outra. Garante que nunca visitou apartamentos com rendas muito caras, exatamente porque essa era uma das condições a que se impôs: “Tinha de ser num sítio seguro, com renda não muito alta e com contrato, para poder pedir dístico da EMEL”.
Da primeira vez, o negócio acabou por ruir de véspera, a escassas horas da assinatura, depois de o senhorio lhe ter enviado uma cópia do contrato: “A casa era dos anos 80 e tinha a cozinha equipada com eletrodomésticos da mesma altura. O contrato tinha uma cláusula a dizer que, se algum deles se avariasse, os encargos seriam assegurados por mim. E outra a dizer que só poderia rescindir nos 15 dias anteriores à renovação — e o contrato era de 4 anos”, recorda Inês, que trabalha no departamento de relações públicas de uma grande empresa nacional. Ainda pediu para que essas duas alíneas fossem alteradas, mas o ex-futuro-senhorio não gostou: “Ameaçou-me por escrito, deu a entender que arranjava forma de me despedir”.
À segunda, não só chegou a mudar-se como pagou à cabeça um mês de renda e outro de caução — 400 euros por um T1, também na zona de Alvalade, mas sem contrato. Apenas para se vir embora no fim do primeiro dia de limpezas, depois de ter apanhado um choque elétrico no frigorífico. “A casa não só não era nada de especial, como ainda tinha uma puxada de eletricidade para um barracão com o telhado todo podre no quintal, onde estava a máquina de lavar roupa. Um perigo. O choque que apanhei foi só a gota de água”, recorda.
A pessoa que tratava do arrendamento não só se recusou a devolver-lhe a caução, quando Inês se veio embora, como antes de chegarem a esse ponto a acusou várias vezes de querer mais do que aquilo que pagava. “Dizia-me coisas do estilo ‘Não sabes o que custa a vida, a casa perfeita não existe, pagas pouco não podes pôr defeitos’.”
Depois de tantos percalços, quando a tia lhe ligou a dizer que tinha acabado de ver um letreiro numa casa em Alvalade ainda hesitou antes de telefonar. Assim que viu o apartamento, de um quarto, disse que ficava com ele: “Era 475 euros, ofereci 400, ficou por 425. A senhoria tem várias casas em Lisboa e até quer ver-se livre delas, mas já me disse que só vende a minha quando eu sair. E também nunca aumentou a renda — estou lá há três anos. Fui com o meu pai, tenho ar de quem não parte nada, trabalho numa boa empresa, acho que tudo isso conta”.
Confiança e estabilidade — o que conta para os senhorios que mantêm as rendas baixas
Conta mesmo, garante ao Observador Helena Gouveia, 41 anos, proprietária de um T2 em Benfica. Quando em junho passado as inquilinas que tinha há anos saíram e teve de pôr novamente a casa a alugar, vários mediadores imobiliários lhe disseram que podia pedir “tranquilamente” 800 euros ou mais por mês. Podia, mas preferiu não o fazer: “Chateia-me um bocado contribuir para a especulação do mercado. E quero ter uma pessoa de confiança na casa. Até podia pedir mais, mas se esse aumento fizesse com que a casa demorasse um ou dois meses a alugar não compensava, ia demorar um ano a recuperar esse dinheiro. Já para não dizer que, se aumentares muito as rendas, crias uma situação em que a pessoa à primeira oportunidade que tiver vai sair. E eu queria um arrendamento longo, não de curta duração. Não queria ter chatices a pôr anúncios, mostrar a casa, tratar de contratos”.
Costumava cobrar 600 euros, em junho pôs um anúncio no OLX a pedir 675 por mês. Percebeu rapidamente o estado caótico sete-cães-a-um-osso do mercado de arrendamento em Lisboa: “Postei o anúncio às 19h00, passei a hora de jantar a atender telefonemas. O rapaz que lá está agora ligou-me passados 10 minutos, andava à procura de casa há sete meses. Lembro-me de uma senhora que era mãe e queria um apartamento para o filho; já se notava um certo desespero, dizia que era funcionária pública e que o marido era militar, que o IRS deles era assim e assado…”.
A necessidade de arranjar uma casa é tão grande que, em vez de ter tentado regatear o preço, o novo candidato a inquilino ofereceu-se para lhe pagar ainda mais: 700 euros por mês. “O rapaz não era português, trabalhava a recibos verdes e não tinha fiador. Aceitei, foi uma espécie de compensação, mas a proposta por cima surpreendeu-me completamente, não estava nada à espera”, diz Helena. Que também garante que, apesar de ter decidido não alinhar no jogo da escalada de rendas, isso não quer dizer que nunca o fará no futuro: “Não sou nenhuma militante da justiça, não sou investidora, também moro numa casa arrendada. Se o meu senhorio para o ano me aumentar a renda, vou ter de fazer o mesmo”.
O caso de uma outra senhoria, que prefere manter-se no anonimato, é ainda mais extremo: é a própria inquilina que, com medo de ser trocada por outro que pague mais, lhe pede para subir a renda. “A rapariga que lá está em casa, amiga de um amigo, já me ligou várias vezes a pedir para lhe aumentar a renda. Arrendei-lhe o apartamento, um T1 mobilado e equipado na freguesia de São João, com garagem, há um ano e meio, por 450 euros. Não ganho nada, é o valor do empréstimo mais o do condomínio”, explica ao Observador. “Não o faço por solidariedade, mas porque não quero ter as chatices associadas a esta maluqueira que aí vem — sim, porque já todos vimos este filme, este tipo de mercado simplesmente não é sustentável e a determinada altura vai rebentar e ficar tudo baratíssimo. Sobretudo esses T1 e T2 que estão a ser feitos de propósito, e que daqui a uns anos vão estar a ser arrendados por 15 euros por noite”, completa.
No mesmo prédio, onde todas as casas são de igual dimensão e tipologia, diz que tem vizinhos a alugarem os mesmos apartamentos de um quarto por 650 e 700 euros e pelo menos um deles a cobrar à noite, no Airbnb. “Tenho consciência de que podia estar a fazer mais dinheiro, mas para isso também ia ter mais chatices. Quando cobras preços disparatados entras num clima de risco: ou alugas a turistas e tens de pôr uma empresa a tratar do assunto, ou arriscas-te a que não te paguem — ou que te dêem cabo das coisas. Prefiro assim. O meu marido, que também tem a casa de solteiro a alugar, faz o mesmo: tem lá uma pessoa que lhe paga pouco, mas em quem ele confia. Não tirou nada do apartamento: deixou lá mobília, livros, CD’s, tudo. Até peças do [escultor João] Cutileiro lá tem”, explica.
Um T4 em Arroios por 600 euros? Sim, é possível. E não são 600 euros por pessoa
Foi depois de passar dois anos a dividir uma sala de estar por 240 euros por mês mais despesas; de viver outros tantos num quarto esconso que só tinha espaço para uma cama, uma mesa de cabeceira e um cubo do Ikea, “para pôr camisolas”; e de ter pelo menos cinco visitas canceladas trinta minutos antes da hora prevista, porque entretanto as casas já tinham sido arrendadas; que M., jornalista, 24 anos, decidiu juntar-se a outras duas amigas na procura por um T3 no centro de Lisboa. “Sozinha estava a ser muito difícil, e entretanto elas, que estavam à procura juntas, perceberam que havia mais T3 disponíveis do que T2. Na altura, em setembro de 2015, nenhuma de nós estava numa situação de urgência, portanto fomos só vendo”, recorda.
Por indicação de um conhecido, acabaram a visitar um apartamento ligeiramente maior, um T8, na zona de Arroios. “Estava em obras, tinha muitas divisões, muito pequeninas. Foi a própria senhoria que nos mostrou a casa e nos explicou as alterações que ia fazer e onde ia abrir paredes, para ficar com quatro quartos. Na altura disse-nos logo que a renda ia ser de 600 euros. E nós perguntámos: ‘Mas o quê?! 600 euros a cada uma?!’ Disse-nos que não, que era a casa toda e fartou-se de rir, tem mais casas, vive disto, diz que opta por ter pessoas de confiança a cobrar muito”, conta M. Que, juntamente com as amigas, se apressou a fechar negócio, claro: “Há casas do mesmo género por 2.500 euros, foi mesmo um achado. Hoje em dia tudo aquilo que vês com um mínimo de qualidade ou são Airbnb’s ou quartos com casa de banho na Baixa por 650 euros. Cheguei a ver quartos com beliches onde o senhorio cobrava 250 euros por cama. E uma das pessoas que vive comigo viu marquises pelo mesmo preço”.
Ana Geraldo, engenheira zootécnica, 35 anos, também tem histórias parecidas para contar. Durante cinco meses, em 2016, andou à procura de casa para arrendar no centro de Lisboa: “Todos os dias me assustava. Acho que o pior que vi foi um anúncio de um apartamento onde conseguias estar sentada na sanita a mexer a comida no fogão — custava 400 euros por mês. E também me lembro muito bem de um T0 + 1 na Graça, em que o mais um era um cubículo onde cabia um guarda-fatos e mais nada, por 500”.
Ao fim de algum tempo, descobriu que a irmã de uma amiga também andava à procura de casa e propôs-lhe que arrendassem juntas. Quando ela lhe respondeu que queria ir viver sozinha, não desanimou. “Pensei mesmo: ‘Dá-lhe uns meses’. E foi o que aconteceu, em agosto telefonou-me e começámos a procurar casa para as duas. No final de setembro uma amiga dela disse-lhe que ia sair da casa onde vivia há seis anos com o namorado, na Penha de França. Tinham tido um bebé e decidido comprar”.
Assim que entrou no apartamento, da década de 50, com pé direito alto, quatro quartos, duas casas de banho, cozinha com open space e uma vista sobre Lisboa e não só que vai do Cristo-Rei ao Monte Agudo, passando pela Ponte 25 de Abril, pela Almirante Reis e pelas Amoreiras, a engenheira zootécnica diz que se apaixonou. Quando ouviu o preço, então, soube que era para a vida toda: 600 euros por mês, a dividir pelas duas. “Não faço ideia de quantos metros quadrados tem, mas demos uma festa onde estiveram 40 pessoas na sala, dá para ter mais ou menos uma ideia do tamanho. A senhoria é emigrante em França, tem 40 e poucos anos e herdou a casa. O que nos explicou foi que era mais importante para ela não ficar sem inquilinos durante alguns meses e arrendar a pessoas de confiança do que aproveitar para subir o preço. Até porque diz que aquele é o valor que considera justo pela casa”, justifica Ana Geraldo.
O objetivo de outra proprietária ouvida pelo Observador é que o negócio seja sustentável: “Parece-me obsceno o caminho que isto está a tomar. E não é só no mercado de arrendamento. Este ano, ofereceram-nos o dobro do que pagámos pela nossa casa, na Ajuda, há apenas três anos. Custou-nos 105 mil euros, quiseram comprá-la por 210 mil. O meu marido ficou todo entusiasmado, mas onde em Lisboa é que hoje vou conseguir comprar um T2 com arrecadação e vista de rio por 210 mil euros?! É impossível. Isto só pode mesmo estourar.”